Novo Ensino Médio e
as estranhas relações entre governo, fundações e associações empresariais
“O
estranho, o que está fora do lugar, é o MEC de Lula defendê-la”. A frase é do
professor Daniel Cara e se refere à reforma educacional que originou o Novo
Ensino Médio – NEM. Realmente, parece haver algo muito estranho, pois a
concepção dessas mudanças foi feita e implementada nos governos de Michel Temer
e Jair Bolsonaro, com os quais o atual governo não compactua. E mais do que uma
divergência de orientações políticas, o NEM tem se revelado um fracasso no
cotidiano escolar. Tanto é que, no último 15 de março, uma legião de professores,
pesquisadores, pais e alunos saiu pelas ruas pedindo sua revogação. “Ninguém
que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade escolar,
defende a reforma do Ensino Médio. Portanto, professores, formadores de
professores, pesquisadores, estudantes e suas entidades e movimentos querem a
revogação”, completa Cara.
Então,
o que há entre o MEC de gestões passadas com a gestão atual? “Não tem como
negar, o MEC defende – ainda que sem coragem – o NEM”, reconhece o Cara, em
entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O
professor, que também integrou a equipe de transição do governo Lula, revela
que, enquanto quem está com o pé na escola não aceita o NEM, “do outro lado, há
fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de educação e,
infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula” insistindo no modelo.
“A atual gestão do MEC é devedora do programa e de relações estabelecidas com
fundações e associações empresariais”, diz Cara.
O
mais terrível é que o setor privado parece estar dando as cartas num jogo que
era para ser do poder público. “Prefiro pensar que não é verdade, mas há
relatos de servidores de carreira que denunciam que a ocupação de alguns cargos
de confiança passou e passa pelo crivo ou pela indicação de dirigentes
burocratas de fundações e associações empresariais sediadas em São Paulo”,
lamenta o professor. Ele ainda explica que “há uma questão de autoria em jogo”.
“A reforma do Ensino Médio é a primeira e única política integral e exclusivamente
elaborada por associações e fundações empresariais e seus burocratas. Os
objetivos da reforma são muitos, mas os centrais são: concretizar uma nova
função social à escola, transformando-a em um espaço de formação do indivíduo
neoliberal, aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo (...) e reduzir
custos com profissionais da educação”, detalha.
No
entanto, o professor Daniel Cara lembra que isso ainda não é tudo. Além de
todas essas questões de fundo que não têm aparecido nos debates públicos sobre
o NEM, ele destaca que os itinerários formativos são um caos, além de
aumentarem a desigualdade entre as escolas que não são capazes de oferecer
todos os itinerários a seus alunos. Para ele, se nada for feito, num futuro bem
próximo pagaremos um preço alto por esse desmonte da escola e das políticas
públicas em educação. “O esvaziamento da escola por políticas como a reforma do
Ensino Médio facilita a ocorrência de casos como o ataque à Escola Estadual
Thomazia Montoro, em São Paulo, que resultou em uma morte e cinco feridos. O
estudante era de Ensino Fundamental, mas sem dúvida que a lógica de
esvaziamento de políticas públicas colabora com esses ataques mobilizados pelo
extremismo de direita”, acrescenta o professor.
LEIA
A ENTREVISTA:
• O que fazer com o Novo Ensino Médio –
NEM?
Daniel
Cara – Não existe alternativa. É preciso revogar e estabelecer um novo modelo,
factível às redes públicas. Algo que o NEM não é.
• Como construir esse processo de
revogação do NEM? Quem são os atores nesse processo?
Daniel
Cara – Ninguém que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade
escolar, defende a reforma do Ensino Médio, que estabeleceu o NEM. Portanto,
professores, formadores de professores, pesquisadores, estudantes e suas
entidades e movimentos querem a revogação do NEM.
Do
outro lado, há fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de
educação e, infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula. Nesse
momento, não tem como negar, o MEC defende – ainda que sem coragem – o NEM.
Diante
desse quadro, o processo de revogação deve ser feito por um projeto de lei de
elaboração coletiva que altere, em primeiro lugar, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional. Isso é fundamental para desconstruir o NEM,
principalmente os itinerários formativos, absurdo maior dessa reforma.
• Quais as mudanças previstas para o Exame
Nacional do Ensino Médio – Enem? Por que elas não devem ser implementadas?
Daniel
Cara – Segundo o desejo do ministro [da Educação, Camilo Santana], dos
secretários estaduais de educação e das associações e fundações empresariais
que atuam na educação, o Enem deve ser pautado pelos itinerários formativos. Se
isso ocorrer, vamos cristalizar a reforma do Ensino Médio porque toda a
indústria do vestibular vai se voltar para ela. E esse movimento, de busca pela
revogação do NEM, será praticamente irreversível.
Por
isso, o MEC não revoga o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino
Médio feito pelo governo Jair Bolsonaro, porque quer manter o prazo de mudar o
Enem e, por consequência, cristalizar o NEM em 2024. Esse é o objetivo até aqui
de Camilo Santana. E é triste ver o governo Bolsonaro pautando o governo Lula.
• Que questões de fundo há nas frentes que
ainda defendem o NEM?
Daniel
Cara – Nesse momento, há uma questão de autoria em jogo. A reforma do Ensino
Médio é a primeira e única política integral e exclusivamente elaborada por
associações e fundações empresariais e seus burocratas. Os objetivos da reforma
são muitos, mas os centrais são: em primeiro lugar, concretizar uma nova função
social à escola, transformando-a em um espaço de formação do indivíduo
neoliberal, aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo. Em segundo
lugar, reduzir custos com profissionais da educação.
Nesse
último caso, a lógica é simples: se qualquer professor pode dar qualquer área
nos itinerários, os secretários estaduais não precisam mais fazer concursos de
professores especialistas. Diminui a demanda.
Além
disso, a reforma gera desigualdades, por exemplo, ao não ofertar todos os
itinerários em todas as escolas. Isso prejudicará a democratização da Educação
Superior. O Brasil não tem as mínimas condições de implementar a reforma. E se
os itinerários formativos fossem facultativos na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e não fossem a base do Enem, eu duvido que sobreviveriam mais
de um ano. Por isso, hoje, são obrigatórios.
• Ao longo do desenho dessa reforma do
Ensino Médio, a matéria passou pelo Conselho Nacional de Educação e outros
fóruns do tipo. Qual foi a manifestação desses fóruns e como têm se posicionado
atualmente?
Daniel
Cara – Ainda são órgãos pautados pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Ou seja, defendem a reforma. Veja, o estranho, o que está fora do lugar, é o
MEC de Lula defendê-la.
• Como podemos compreender todo o processo
de construção do NEM e evitar que isso volte a acontecer na construção e
implementação de uma outra proposta?
Daniel
Cara – Defendendo a democracia. O NEM jamais seria proposto, apresentado por
Medida Provisória e aprovado fora do contexto do golpe de 2016, liderado por
Michel Temer, e nunca seria implementado se não fosse o governo Jair Bolsonaro,
que inclusive fez uso da pandemia para acelerar a implementação do NEM.
• O que as mobilizações e pressões da
comunidade escolar têm revelado sobre a imposição de reformas nos modelos de
ensino, como o NEM?
Daniel
Cara – O que tem sido revelado é o caos e o desalento. Toda a comunidade
escolar rejeita o NEM. Quem consegue fazer algo, faz escapando ou tendo que
burlar a reforma. Mas não pode permanecer assim, é insustentável, por isso é
preciso revogá-lá.
• Por que demorou três meses para o
governo se manifestar sobre o tema, ainda assim propondo uma consulta pública
nacional? O que a atual gestão do MEC pensa do NEM?
Daniel
Cara – A atual gestão do MEC é devedora do programa e de relações estabelecidas
com fundações e associações empresariais. Prefiro pensar que não é verdade, mas
há relatos de servidores de carreira que denunciam que a ocupação de alguns
cargos de confiança passou e passa pelo crivo ou pela indicação de dirigentes
burocratas de fundações e associações empresariais sediadas em São Paulo. Se
isso de fato ocorreu, é lamentável, pois significa que estamos vivendo uma
continuidade do governo Temer em pleno governo Lula.
Diante
desse quadro, já é possível cravar que o MEC abriu consulta pública graças à
pressão que fizemos. Caso contrário, seguiria tocando a reforma. Agora, a
consulta pública é homologatória. Não foi feita para mudarmos o modelo.
• O senhor defende que seja enviado ao
“Congresso Nacional um projeto de lei para substituir o equívoco dos
itinerários formativos por áreas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional”. Gostaria que detalhasse quais são esses equívocos. Por que esses
itinerários têm sido apontados como um dos piores aspectos do NEM?
Daniel
Cara – Em primeiro lugar, os itinerários formativos dão problema em todos os
países que optaram por esse modelo. Adiantar a escolha da profissão aos 15 ou
16 anos é equivocado. Em segundo lugar, o Brasil não está preparado para
implementar o modelo. A questão é simples: as escolas não têm condições de
ofertar todos os itinerários e, se não faz isso, prejudica os alunos.
• O senhor também tem apontado que é
fundamental implementar as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs do Ensino
Médio de 2012, que nunca foram efetivadas. Que diretrizes são essas? E por que
não saem do papel?
Daniel
Cara – As DCNs foram elaboradas no governo Dilma e nunca foram tiradas do papel
porque exigem esforço de prioridade ao ensino médio. O NEM foi imposto porque
se quis, também, evitar as DCNs de 2012.
Acesse
aqui as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs do Ensino Médio de 2012.
• De modo geral, melhorar a educação no
Brasil deve passar essencialmente pelo quê?
Daniel
Cara – Financiamento adequado da educação, valorização dos profissionais e
gestão democrática. A agenda jamais cumprida no Brasil.
• O governo federal está a completar 100
dias. Qual sua análise dos movimentos na área da educação nesse período?
Daniel
Cara – Em 100 dias, ainda não sabemos ao que o MEC veio. Meu colega de
transição governamental, Alexandre Schneider, concorda comigo. Ele publicou um
artigo n’O Globo cujo título é “À espera do Ministério da Educação”. Tenho
divergências com o Schneider, o que é salutar, mas, nesse caso, concordo com o
título.
• Deseja acrescentar algo?
Daniel
Cara – O esvaziamento da escola por políticas, como a reforma do Ensino Médio,
facilita a ocorrência de casos como o ataque à Escola Estadual Thomazia
Montoro, em São Paulo, que resultou em uma morte e cinco feridos. O estudante
era de Ensino Fundamental, mas sem dúvida que a lógica de esvaziamento de
políticas públicas colabora com esses ataques mobilizados pelo extremismo de
direita fascista e neonazista e pela cultura de ódio, especialmente contra as
mulheres.
Os desafios da Educação diante da
necropolítica. pOR Vicente Thiago Freire Brazil
"O
covarde ataque de assassinou uma professora de 71 anos, feriu mais cinco outros
docentes e estudantes em São Paulo é sintomático de um tempo. Somente o
espírito público de serviço à sociedade por meio da educação mantém alguém
septuagenária em atividade em sala de aula. A mão que esfaqueou aquela idosa
até à monstruosa morte foi de um jovem, mas as digitais são de uma política
genocida que, desde sempre, escolheu a Educação como vítima prioritária",
escreve Vicente Thiago Freire Brazil, professor da Universidade Estadual do
Ceará e doutor em Filosofia.
<<<
Eis o artigo.
A
Educação – e aqui nomeio-a com letra maiúscula para frisar que não estou a
falar de um modelo, segmento ou proposta específica, mas da operação reflexiva
de fundamento coletivo que demarca certa noção de humanidade – tem sido
violentamente atacada no atual cenário político brasileiro. A sistematicidade
desta violência contra a Educação – e todos os agentes que a constituem – pode
ser observada de modo multifatorial: alteração dos dispositivos das políticas
educacionais, construção social de um ambiente adverso ao processo educacional
em si que se materializa no desenvolvimento da política do ódio contra os
atores partícipes da causa educativa.
A
autopropagandeada reforma para estabelecimento de um “Novo” Ensino Médio não
passa de um processo de esterilização de futuros. A ilusão mais difundida do
NEM – e como um educador cearense, não há abreviatura/onomatopeia melhor para
expressar meu desprezo por essa política deseducacional – é aquela que vende a
liberdade discente de escolha de itinerários. Se na letra morta da legislação
tudo ganha brilho e cores, na experiência fática do chão da sala de aula o que
testemunhamos é o futuro de milhares de jovens da Educação Pública – friso este
enorme segmento, pois as instituições privadas fizeram apenas adequações
cosméticas ao NEM – sendo abortado pois não existem opções muito menos autonomia
para escolhas. É preciso revogar o NEM já!
O
covarde ataque de assassinou uma professora de 71 anos, feriu mais cinco outros
docentes e estudantes em São Paulo é sintomático de um tempo. Somente o
espírito público de serviço à sociedade por meio da educação mantém alguém
septuagenária em atividade em sala de aula. A mão que esfaqueou aquela idosa
até à monstruosa morte foi de um jovem, mas as digitais são de uma política
genocida que, desde sempre, escolheu a Educação como vítima prioritária. Como
educadores não queremos mais armas, nem mais ódio, acreditamos na potência
humanizadora da Educação, por isso, neste momento tão decisivo da história
brasileira, nós educadores continuaremos a defender o educar como um ato de
coragem, como a maior desobediência civil que alguém pode ter contra uma
política da morte.
Fonte:
Entrevista especial com Daniel Cara, em IHU OnLine
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