A delicada luta
pelo saneamento indígena
É
genocídio sim, Justiça para o povo Yanomami! Esse deve ser o mantra a ecoar por
todos os cantos do Brasil e do planeta. O mundo assistiu perplexo às imagens
que vieram a público em janeiro último: 570 crianças Yanomami com menos de 5
anos mortas por causas evitáveis: diarreia, desnutrição, malária, verminoses.
Esses números, que não incluem adultos e mulheres, podem ser maiores devido a
subnotificação e configuram uma crise humanitária sem precedentes, um cenário
de genocídio promovido por organizações criminosas, setores empresariais
envolvidos com a lavagem do ouro, com a conivência de agentes do Estado e
incentivo, sobretudo nos últimos quatro anos, do poder público, particularmente
da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Os crimes, as formas de violência, cada
vez mais acintosas, comprometem a continuidade física e cultural do Povo
Yanomami e a integridade do seu território, do ecossistema, consubstancial à
sua existência.
Os
povos indígenas apresentam modos de vida específicos e os respectivos contextos
socioambientais são determinantes para tornar suas demandas relacionadas à
soberania alimentar, à água e ao manejo dos resíduos bastante variáveis. É
comum a compreensão de que a natureza e o ser humano são uma coisa só: a terra,
as águas e tudo o que vive. Os povos indígenas se consideram parte da natureza,
não seus proprietários. Desde a chegada dos colonizadores encontram-se
ameaçados pelo sistema econômico e expostos a ações desumanas, revestidas de
impulsionadoras do desenvolvimento. Grande parte da sociedade insiste em
caracterizá-los de forma simplista e preconceituosa, sem procurar, de fato,
compreendê-los, entender seus modos de vida distintos e diversos.
Os
desafios para implementação de políticas públicas que contemplem os povos
indígenas são muitos, se relacionam à posse e usufruto exclusivo de suas terras
e territórios, à saúde, à educação, à garantia do acesso à água com a proteção
dos rios, pelo reconhecimento e condições de trabalho adequadas dos
profissionais de saúde indígena, dos agentes indígenas de saúde (AIS) e de
saneamento (AISAN), dentre outras necessidades e direitos. Antes de se falar em
demandas de saneamento básico para povos indígenas, é preciso refletir sobre o
que exatamente são essas necessidades, a quem interessa saber e por quê. Partindo-se
do pressuposto de que esses povos indígenas priorizam a vida em coletividade e
que suas demandas são representadas por um conjunto de necessidades muito
variáveis, a depender de como vivem, ações de saneamento podem assumir formas
diferentes. Vão das estruturas coletivas convencionais – como as redes de água
e esgoto e as unidades de tratamento – até as práticas tradicionais bastante
dependentes da disponibilidade e do manejo das águas.
Quando
se opta pelo saneamento convencional – demanda daqueles que o adotaram, ou a
ele foram submetidos –, é reconhecida a dificuldade de o manter. As falhas são
de técnicas procedentes de outras experiências, difíceis de serem assimiladas
pela diferença cultural. No caso das práticas ancestrais, passadas de geração
em geração, a posse da terra representa o ponto central para o seu manejo. Sem
a homologação, demarcação e proteção das terras indígenas, sem políticas
públicas permanentes e estruturantes asseguradas pelo Estado, sem o apoio da
comunidade internacional à garantia de seus direitos, sem a possibilidade de
serem protagonistas da própria história, os povos indígenas estão condenados à
expropriação, em amplo sentido, e à reprodução – mesmo que gradual – de ações
convencionais, ditadas pelos padrões impostos pela sociedade.
As
ações voltadas ao saneamento básico para povos indígenas são primordiais para
os que se encontram em terras indígenas e para aqueles que se identificam como
indígenas, mesmo morando em outros ambientes e condições, tais como retomadas,
acampamentos e comunidades urbanas. E são primordiais ao resto da humanidade,
pelo impacto positivo da sua associação à preservação dos ecossistemas. A
natureza está sob constante e crescente ameaça, tornando-se cada vez mais
evidentes os efeitos nefastos causados pelo desmatamento, poluição e degradação
oriundos da grilagem de terras, do garimpo ilegal, da caça e pesca ilegal, da
pecuária, do agronegócio (monocultivos), da mineração em larga escala, do
narcotráfico e das obras de infraestrutura. É notório que a insalubridade
ambiental cresceu em ritmo acelerado nos últimos anos, de 2016 a 2022,
particularmente, fomentada por um governo que deveria combatê-la e proteger a
vida.
Assim,
os povos indígenas necessitam protagonizar as discussões e decisões relativas
às suas demandas de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e
manejo de águas pluviais, e todos os aspectos que as integram aos distintos
modos de vida, para que possam usufruir do direito de manter suas identidades e
culturas. A conservação das práticas tradicionais de saneamento, com o apoio do
Estado, deve ser um direito dos povos indígenas. A proteção e promoção dos
direitos fundamentais e coletivos dos povos indígenas deve nortear as políticas
públicas. O Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), aprovado em 2019,
aponta as diferenças entre as demandas indígenas e as demais populações rurais,
a partir do conhecimento possibilitado pelo subprojeto “Perspectivas do
Saneamento Básico para as Populações Indígenas no Brasil” e recomenda a
elaboração de um programa específico, que contemple suas formas de organização
e as suas reais necessidades. A saúde e o saneamento são indissociáveis.
O
ONDAS repercute a recomendação do Programa Nacional de Saneamento Rural, de
implementação de um “Programa Nacional de Saneamento Indígena” com garantia e
efetiva participação dos povos indígenas, de forma a respeitar a sua cultura, o
modo de se viver nos territórios e a relação de respeito com a água que se
traduz não só na defesa do direito à água, mas com o direito da água e dos bens
comuns. O não acesso à água com qualidade, como assistimos nos territórios
Yanomami, provoca a destituição das condições de se produzir e de se viver.
Afirmamos a defesa das terras indígenas, do garimpo zero, do desmatamento zero,
em defesa do saneamento básico, da saúde indígena e dos bens comuns. Urge
acabar com essas práticas ecocidas e genocidas.
Saneamento: não basta extinguir a Funasa.
Por Gabriel Brito
Logo
em seu primeiro dia útil, o governo federal e o ministério da Saúde anunciaram
a intenção de fechar a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), autarquia criada em
1991 cuja finalidade é a promoção de saneamento. Tarefa dividida entre
ministérios diferentes, a partir do tamanho das cidades, a fundação se tornou entreposto
das trocas de favores da política parlamentar fisiológica, o que motivou a
decisão do governo Lula.
Mas,
apesar da boa intenção, a iniciativa por si só não é garantia de nada. Cerca de
metade da população do país carece de saneamento básico e, diante da urgência
em se fazer uma transição para uma modelo de vida mais sustentável, a questão
seguirá na ordem do dia. Centralizar e racionalizar as ações das quais a Funasa
se incumbia nos ministérios da Saúde e das Cidades é boa iniciativa. Porém,
afastar pactos e interesses escusos desta questão estrutural é o grande
desafio.
“É
uma instituição que sem dúvida nenhuma cumpriu e ainda cumpre um papel
importante na arquitetura do saneamento do Brasil. Se confirmada sua extinção,
esperamos que essa tradição continue a positivamente influenciar o setor”,
contextualiza Leo Heller, ex-relator da ONU pelo Direito à Água Potável e ao
Saneamento, em entrevista ao Outra Saúde.
É
ele quem faz as ponderações que abrem este texto. A questão do saneamento
precisa ser melhor direcionada no país e se não o foi até agora não se tratou
de alguma condição inerente à autarquia. Como ressalta o engenheiro civil e
mestre em Saneamento, o órgão tem contribuições positivas, que o Estado
brasileiro, tomado por ideologia privatizante desde sua fundação, em 1991, não
colocou em prática por falta de interesse, para não falar de práticas nada
republicanas.
“Por
exemplo, quando um parlamentar resolve fazer uma obra de 1 milhão de reais na
cidade X do estado Y, cabe perguntar em que medida essa obra é prioritária, se
está dentro de um contexto de planejamento ou não. De fato, as emendas
parlamentares têm sido muito nocivas a um possível planejamento de prioridades
do governo federal e a atuação da Funasa tem sido muito pautada por elas. Isso
é negativo, mas não é exatamente culpa da Fundação. É um modelo de atuação
política que foi criado”.
Como
se vê, aqui também estamos diante de problema semelhante a todo o campo da
saúde no ultimo período: a bizarra substituição da política pública coordenada
e planejada pela lógica individualista e fisiológica das emendas parlamentares,
diretamente ligadas a relações de conveniência de seus portadores. A seguir
assim, não há milagre à vista.
Leo
Heller, que lançou recentemente o livro Os direitos humanos à água e ao
saneamento, aponta caminhos. Alguns até já elaborados pelo Estado. Falta, como
dito acima, boa fé dos gestores políticos. “É fundamental haver o respeito ao
planejamento que já temos, o Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico). O
governo tem feito revisões periódicas do Plansab, mas tem uma distância entre o
que é o plano, que defendo, por ser bem elaborado e, claro, o que se faz. Mas
ele precisa sair dos arquivos do governo; definitivamente, o Plansab não tem
orientado decisões, ações, prioridades”.
Ainda
nesse sentido, Heller condena enfaticamente os projetos privatizantes no setor,
em especial o Marco do Saneamento, criado em 2020 pelo governo Bolsonaro e mais
uma das reformas emplacadas pelos neoliberais. Até aqui, nenhum avanço na questão.
Afinal, a experiência mundial já permite afirmar o fracasso deste dogma na
questão do saneamento, que apenas intensifica exclusão social.
E,
também neste campo, a avanço da política pública não satisfaria “apenas” o
direito humano e constitucional ao saneamento. Trata-se de gatilho de
desenvolvimento econômico democratizante. “Está tudo interligado: a questão
sanitária não está descolada de desenvolvimento econômico, integração social e
geração de emprego e renda. Mas isso só será potencializado se o saneamento for
encarado como um direito humano”.
Leia
a entrevista completa com Leo Heller no Outra Saúde
• Como analisa o fechamento da Funasa?
Foi
uma recomendação da comissão de transição de governo, da área da saúde, depois
de certa análise de arquitetura institucional, uma vez que a Funasa, dentro do
Ministério da Saúde, trabalhava basicamente com saneamento, sobretudo em
municípios menores e área rural.
A
minha impressão é de que a equipe de transição identificou uma distorção das
funções da Funasa no âmbito do Ministério. Haveria, eu penso, outras
alternativas, como por exemplo transferi-la para o Ministério das Cidades ou o
ministério que tivesse mais afinidade com o tema.
A
decisão foi uma das alternativas dentre outras. O que me parece fundamental é
não perder de vista que ela fazia basicamente saneamento em municípios menores,
mas havia uma intenção de que passasse a coordenar e atuar muito fortemente no
saneamento rural. Nesse aspecto, parece-me positivo não haver uma fragmentação
das ações de saneamento como havia antes, isto é, saneamento rural no
Ministério da Saúde e urbano no Ministério das Cidades. Isso não é salutar para
uma política de saneamento de caráter nacional.
Portanto,
com ou sem Funasa, transferir as ações de saneamento para o mesmo ministério em
que estão as demais ações de saneamento parece um passo positivo. Há uma maior
chance de coordenação, integração e isso pode ser feito perfeitamente com o
concurso de alguns técnicos com experiência acumulada, que estão na FUNASA
atualmente. Em síntese, eu não julgo nem positiva nem negativamente. Fechar a
Funasa é uma dentre outras possibilidades.
O
importante é monitorar o que vai acontecer e garantir que o saneamento rural de
fato seja uma prioridade. A palavra é essa: prioridade no campo do saneamento
no Brasil, porque a população rural é aquela que foi deixada à margem pelas
últimas décadas na política de saneamento do Brasil. Hoje nós temos um projeto
nacional de saneamento rural desenhado, muito bem feito, muito participativo. É
momento de colocá-lo em prática. E repito: deve-se fazer isso com a experiência
acumulada no Governo Federal e na própria Funasa.
• Qual a importância da Fundação à luz de
sua concepção, em 1991, e qual seu balanço histórico?
Ao
longo desses 32 anos a Funasa foi mudando. Ela se origina no SESP (Serviço
Especial de Saúde Pública, criado em 1942), cuja função era promover saneamento
em locais estratégicos do país, onde havia maior preocupação com a saúde
pública. Depois se transformou em Fundação SESP na década de 1960. A FUNASA vem
no governo Collor, quando a Fundação SESP foi extinta e fundida com a SUCAM
(Superintendência de Campanhas de Saúde Pública).
A
Funasa dá sequência às ações desses órgãos, ao lado de municípios. Teve papel
muito importante em fortalecer a gestão municipal do saneamento, inaugurou no
país a ideia de criação dos serviços autônomos, das autarquias municipais de
saneamento. Ela ajudou a organizar algumas e participou da gestão dessas
autarquias em cidades de médio porte, principalmente no Sudeste e Nordeste. Foi
uma atuação muito importante, porque esse modelo das autarquias ainda hoje é
muito interessante na gestão do saneamento.
A
partir do governo Lula. se estabeleceu um pacto entre o Ministério das Cidades
e a FUNASA de um recorte para cidades até 50 mil habitantes: em cidades com
populações inferiores a isso, ela atuaria; em superiores, entraria o Ministério
das Cidades. A FUNASA carrega uma tradição importante de serviços municipais,
teve uma ação importante também no campo da tecnologia apropriada e da
tecnologia social, trouxe algumas experiências inclusive internacionais ao
Brasil.
É
muito difícil saber em que medida que a fundação hoje é a mesma do início.
Houve renovação dos quadros e ela vinha atuando com convênios, com os
municípios, transferindo-lhes recursos, em especial do Orçamento Geral da
União. Ela é uma mediadora entre o recurso federal e o município que o aplica;
claro que ela faz também um monitoramento, um acompanhamento dessa aplicação,
mas não tem mais a atuação que já teve, quando ela própria organizava o serviço
de saneamento e participava da execução de ações. Isso tem ficado muito por
conta dos municípios.
Mas
é uma instituição que sem dúvida nenhuma cumpriu e ainda cumpre um papel
importante na arquitetura do saneamento do Brasil. Se confirmada sua extinção,
esperamos que essa tradição continue a positivamente influenciar o setor.
• Uma crítica, talvez a principal, que
fundamenta sua extinção é que a Fundação se tornou uma moeda política para
negociações fisiológicas e manejo de verbas de emendas parlamentares, que
produzem uma descoordenação de suas funções essenciais. Como você vê isso?
Existem
tradições boas e ruins na Fundação. Ela ser um espaço de clientelismo, partidos
conservadores a almejarem porque através dela há transferência de recurso,
espaço para campanhas políticas é ruim,
claro. Eu acho difícil generalizar e dizer que a FUNASA é só isso. Tem uma
parte boa, têm pessoas comprometidos.
Mas
o que tem sido um grande problema – neste e em outros espaços de governo – são
as emendas, em especial as emendas impositivas. As emendas ignoram totalmente
uma perspectiva de política pública, de visão mais ampliada, e no caso do
saneamento isso fica visível.
Por
exemplo, quando um parlamentar resolve fazer uma obra de 1 milhão de reais na
cidade X do estado Y, cabe perguntar em que medida essa obra é prioritária, se
está dentro de um contexto de planejamento ou não. De fato, as emendas têm sido
muito nocivas a um possível planejamento de prioridades do governo federal e a
atuação da FUNASA tem sido muito pautada pelas emendas parlamentares. Isso é
negativo, mas não é exatamente culpa da Fundação. É um modelo de atuação
política que foi criado. Acontece também no Ministério da Integração e do
Desenvolvimento Regional, e no Ministério das Cidades em cidades com de
populações de maior porte…
A
palavra é pesada, mas tal prática é um câncer na área de saneamento.
Onde
fica o Plansab (Plano Nacional de Saneamento)? A alocação de recursos, onerosos
ou não onerosos, não deveria ser pautada por critérios estabelecidos em um
plano nacional? Mas o que vemos é uma dinâmica, de ver quem consegue emplacar
uma emenda parlamentar no congresso. Um deputado, um senador, que quer colocar
saneamento no seu município, onde tem maior chance de obter votos e promover
seu nome. Isso é uma grande distorção. Sempre me posicionei contra essa prática
das emendas parlamentares e infelizmente a FUNASA se viu envolvida nesse
processo.
• Considerando o seu alerta de que este
desvio de finalidade não é exclusivo à Funasa, e tem a ver com a dinâmica de
reprodução política vigente, como a política de saneamento, uma das maiores
necessidades estruturais do país, precisa ser direcionada pelo atual governo?
Algumas
transformações são essenciais. Primeiro, precisa ter uma boa coordenação:
saneamento ainda é muito disperso em diferentes ministérios e nos diferentes
níveis subnacionais – federal, governos estaduais e municipais. Tão pouca
coordenação não faz bem pra um setor que tem tantos déficits, em um país com tanta
diversidade, com tanta complexidade, com muita coisa a ser superada.
Segundo:
planejamento. É fundamental haver o respeito ao planejamento que já temos, o
Plansab. O governo tem feito revisões periódicas do Plansab, mas tem uma
distância entre o que é o plano, que defendo, por ser bem elaborado e, claro, o
que se faz. Mas ele precisa sair dos arquivos do governo; definitivamente, o
Plansab não tem orientado decisões, ações, prioridades.
Para
dar um exemplo, o Plansab prevê três programas para implementação da política
de saneamento: integrado, rural e estruturante. Não tem havido nenhum tipo de
orientação das ações do Governo Federal, segundo esses três programas.
O
programa de saneamento rural foi elaborado, formulado, mas está no papel. O
saneamento estruturante, que é muito importante e foi uma das grandes inovações
do Plansab, não tem tido prioridade. Significaria fortalecer o gestor, o
regulador, dar mais eficiência aos sistemas, controlar perdas, investir em
ciência e tecnologia para ganhar inovação no setor, investir em planejamento,
em controle social.
Tudo
isso está nesse guarda-chuva do chamado saneamento estruturante e está
totalmente fora do radar das políticas de saneamento e seu planejamento.
Coordenação
e planejamento são centrais na medida em que se paute a política de saneamento
dessa forma, com as devidas atualizações. Nós teríamos muito mais eficiência e
efetividade no uso do recurso público.
• No meio disso, tivemos o Marco do
Saneamento Básico, criado em 2020, entendido por muitos como mais uma pauta
neoliberal encampada pelo Estado. O Marco já tem alguma contribuição visível
para a expansão do saneamento no país?
A
Lei 14.026 não foi exatamente uma inovação, um “novo marco”, pois apenas faz
alterações no marco que já existia desde 2007. É uma lei que tem uma um caráter
absolutamente enviesado, é ideológico. Uma lei que foi feita para proteger as
empresas privadas, substituir, sufocar as empresas públicas, principalmente as
companhias estaduais, e substitui-las pela prestação privada. É um modelo que
carece de evidência internacional de ser o melhor. Ao contrário, é um modelo
fracassado em várias partes do mundo.
É
um novo modelo de saneamento que vai trazer muitos retrocessos, não vai ajudar.
A gente já está vendo em alguns estados problemas nos processos de
privatização, no Rio de Janeiro, em Alagoas, já têm algumas denúncias surgindo,
problemas aparecendo nesse processo de privatização em massa, em larga escala.
Nenhum lugar do mundo está fazendo isso hoje. Foi feito nos anos 90. A Lei é uma
aposta muito sustentada na política neoliberal do ministro Guedes, muito
apoiada por lobbys empresariais e a mídia corporativa, que comprou esse
discurso, fez campanha a favor e conseguiu prevalecer na Câmara e no Senado.
É
um retrocesso. Nós ainda vamos penar muito com as consequências desse marco e
eu espero que o Governo Federal procure minimamente neutralizar seus efeitos,
olhando para as populações excluídas do país, coisa que a privatização não
fará.
• Você acabou de lançar Os Direitos
Humanos à Água e ao Saneamento, robusto volume de 600 páginas que discute tais
questões de forma multifacetada. O que pode comentar deste trabalho e quais são
suas contribuições, à luz do que debatemos nesta entrevista?
Esse
livro foi lançado inicialmente em inglês, depois no Brasil pela Fundação
Oswaldo Cruz; agora nós estamos num processo de lançar uma edição na Espanha e
no México. Ele é fruto de reflexões que eu fiz quando fui relator especial para
os direitos humanos, com atualizações e revisões de alguns relatórios que eu
produzi durante esse meu mandato nas Nações Unidas.
A
ideia do livro é trazer o conceito dos direitos humanos à água e ao saneamento,
mostrando como pode ser apropriado nas políticas públicas. Ao nos apropriarmos
de tais conceitos, a política pública passa a enxergar determinadas faces da
realidade que não enxerga tradicionalmente, usando outro tipo de marco
conceitual.
Por
exemplo, desigualdades: colocamos a necessidade de garantir o direito de
populações que tem baixa capacidade de pagamento pelos serviços ou que são
invisíveis aos olhos das políticas públicas, como pessoas que vivem em situação
de rua.
Também
trazemos alguns elementos que orientam a política, como a ideia da
responsabilização, da avaliação, da regulação pautada pelos direitos humanos. A
pretensão do livro é contribuir para a área do saneamento, mas não apenas ela,
e sim também dos direitos humanos, das políticas públicas, mostrando novas
possibilidades, de caráter mais social.
Eu
tenho visto que este é um conceito que vem ganhando o espaço nacional e
internacional. Um exemplo que eu daria é a criação do Ondas, o Observatório
Nacional para os Direitos da Água e Saneamento, uma organização não
governamental que tem mostrado muitas possibilidades quando se utiliza esse
marco na crítica e na identificação de boas práticas em políticas públicas.
Minha esperança é que o livro contribua para esse debate, para que as políticas
públicas tenham uma outra orientação.
Ainda
estamos distantes disso no Brasil, sequer conseguimos mudar a Constituição para
reconhecer tais direitos. Tem PECs tramitando, mas não foram votadas e o livro
traz uma perspectiva muito interessante no sentido de pautar as políticas
públicas de uma maneira nova.
• Por fim, para além de seu caráter de
direito humano essencial, uma política bem coordenada de saneamento não poderia
ser um catalisador econômico capaz de contribuir para a superação de nossa
atual crise social?
Eu
não vejo incompatibilidade entre o saneamento ser considerado um direito humano
e contribuir para os aspectos colocados na pergunta. Ao implementar saneamento
com base na visão dos direitos humanos nós vamos ter um serviço mais inclusivo,
com menos populações deixadas para trás, com menos marginalização, com mais
transparência. Somente para ficar num exemplo, um princípio dos direitos
humanos é de que, quando há um conflito pelo uso da água, a prioridade é para o
consumo humano, em detrimento de outros usos como irrigação, indústrias,
mineração.
Essa
guinada na concepção do saneamento potencializa muitos benefícios, como na
saúde, ambiente, geração de emprego. Isso é natural quando se trata esse setor
com prioridade, pois ele é muito intensivo em uso de mão de obra. Gera
conforto, desenvolvimento urbano, enfim, tem muitas áreas das políticas
públicas que são muito beneficiadas quando se dá este tipo de prioridade.
Uma
leitura muito interessante que tem sido feita é sobre os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030, delineada pela ONU. Nesta agenda, há
estudos e documentos a demonstrar que quando se prioriza essa área tem-se um
benefício para quase todos os outros 17 objetivos do desenvolvimento
sustentável: combate à pobreza, melhoria da saúde, cidades inclusivas, geração
de empregos… Isso está bem documentado, bem estudado. Está tudo interligado: a
questão sanitária não está descolada de desenvolvimento econômico, integração
social e geração de emprego e renda. Mas isso só será potencializado se o
saneamento for encarado como um direito humano.
Fonte:
Ondas — Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento/Outra Saúde
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