A história do
marcante Carnaval de 1919, o primeiro após a pandemia da gripe espanhola
Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
navios vindos da Europa trouxeram, junto aos passageiros, a gripe espanhola,
causada por um subtipo do vírus influenza e que marcaria a história moderna
como a pior pandemia antes da chegada da covid-19.
"No
mundo, a gripe espanhola pode ter matado 50 milhões de pessoas, muito mais do
que a Primeira Guerra Mundial, que teve oito milhões de mortos", diz Maria
Cecília Barreto Amorim Pilla, professora do curso de História da PUC-PR
(Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
Já
no Brasil, estima-se que as mortes causadas pela pandemia possam ter chegado a
35 mil. O Estado que mais sofreu foi o Rio de Janeiro, capital no Brasil na
época, onde morreram cerca de 15 mil pessoas.
Assim
como vimos em 2020, hospitais ficaram lotados e grandes eventos como
campeonatos de futebol foram cancelados. Carnaval, então, nem pensar.
Mas
quando o ano de 1918 terminou, aqueles que sobreviveram já haviam criado
imunidade contra a doença, e aos poucos, os casos foram diminuindo.
Foi
chegada a hora de "tirar o atraso" e celebrar tudo que não havia sido
possível nos anos anteriores - pelas chuvas que marcaram o Carnaval de 1916 e
1917, pela crise econômica e clima de guerra em 1918, e principalmente pela
doença que tirou tantas vidas.
No
primeiro dia de março começou a festa que o escritor Ruy Castro define como
"a grande desforra contra a peste que dizimara a cidade".
Uma
estimativa feita pelo jornal A Noite a época apontava que o Carnaval de 1919
levou cerca de 400 mil pessoas ao Centro do Rio de Janeiro.
"Hoje
sabemos que a 'Espanhola' foi embora em fins de novembro daquele ano e não
voltou. Mas eles, que a viveram, não sabiam se ela voltaria ou não - o Carnaval
de 1919 podia ser o seu último. Era uma atmosfera de fim do mundo. O negócio
então era aproveitar ao máximo", disse Ruy Castro em entrevista à BBC em
julho de 2020.
·
Dias de festa com lembrança da peste
Em
1919, os blocos carnavalescos de rua como conhecemos hoje ainda não existiam.
Mas grandes grupos chamados de sociedades, — que eram estabelecidos geralmente
pela elite, mas com grande acompanhamento popular— levavam milhares de pessoas
às ruas, principalmente na capital, o Rio de Janeiro.
Diferentes
também das grandes escolas de samba atuais, as sociedades não adotavam um tema
único para as apresentações, mas desfilavam diferentes histórias, não
necessariamente conectadas umas as outras. Entre os temas dos desfiles, alguns
dos grupos adotaram a memória dolorosa da peste como sátira.
"A
maior sociedade da época, chamada de Democráticos, fez um carro alegórico com
uma grande xícara, e nela estava escrito 'chá da meia-noite'", diz Pilla.
A
professora explica que o "chá da meia-noite" fazia referência a um
boato popular que corria na época.
Dizia-se
que na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, que estava lotada por
tantos pacientes infectados com o vírus, aqueles que estavam em estado grave,
mas sem sinais de que morreriam em breve, recebiam o tal chá com veneno, em uma
espécie de eutanásia forçada.
"Outras
referências apareceram, como um carro alegórico com um tônico capilar, por
causa da perda de cabelo causada pela gripe espanhola, alguns com alusões a
supostos medicamentos milagrosos, à venda de galinhas para fazer canja,
considerada também como um remédio. Uma sociedade de tamanho médio, a 'Zuavos',
chegou a desfilar pela Avenida Rio Branco, uma carroça similar a que levava os
corpos de mortos pelo vírus", diz o jornalista David Butter, que escreveu
o livro De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919.
·
As marcas deixadas pelo Carnaval de 1919
Há,
ainda, certa memória popular construída por cronistas sobre o Carnaval de 1919.
A imagem passada por autores como Nelson Rodrigues e Mário Filho é da festa
menos conservadora que já havia ocorrido até então, inclusive em termos de
liberação sexual.
Para
Butter, a visão é mais mítica do que factual. "No início do século, em
1910 muitas das práticas que são citadas sobre o Carnaval de 19, como assédios
de grupos de homens direcionados a mulheres e funcionamento de prostíbulos já
aconteciam. Uma mudança no código de vestimenta das mulheres também era algo
que já estava em curso."
Mas
isso não quer dizer que a festa não tenha deixado marcas. "Ele pode ter
sido uma preview de toda a sensacional década de 20 no Rio. Na cidade, o
Carnaval, que começou em 1603, quando saíram à rua os primeiros fantasiados, já
era uma maravilha no século XIX --- há muita literatura a respeito. O que aconteceu
é que o Carnaval de 1919 foi especial, assim como tinha sido em 1912, quando,
por causa da morte do Barão do Rio Branco, o Rio teve dois Carnavais", diz
Ruy Castro.
Uma
diferença, aponta David com base na sua pesquisa para o livro, é que o Carnaval
desse ano teve a presença de muitos mais grupos do que os anteriores.
"Grupos
femininos, novas sociedades de diferentes tamanhos e inclusive o Cordão do Bola
Preta, bloco mais antigo do Rio de Janeiro, começou ali."
"Também
teve um lado sombrio que pouco se fala, com a ocorrência de estupros, muitas
crianças desaparecidas e crimes violentos em consequência dessa loucura, do
êxtase", diz Pilla.
·
O Carnaval de 2022 pode ser comparado com 1919?
Apesar
de mais de um século ter se passado, é possível traçar alguns paralelos. As
escolas de samba perderam importantes integrantes devido à covid-19, como
Laíla, diretor de Carnaval da Beija-Flor, Maurina Feitosa de Carvalho,
presidente da escola de samba 28 de Setembro, Marco Diniz, diretor de harmonia
da Grande Rio, e os sambistas Carlinhos Sebá e Nelson Sargento.
Pela
memória recente da covid-19, assim como foi feito com a gripe espanhola,
algumas escolas desfilarão temáticas relacionadas à pandemia. Os enredos das
escolas Viradouro, São Clemente e Rosas de Ouro são alguns dos que trarão
referências. Os carros de Vai-Vai e X9 Paulistana também devem trazer
homenagens a membros que faleceram da doença.
"Outro
ponto é que para quem ficou em casa nos últimos dois anos e gosta do Carnaval,
a mesma saudade da festa que estava presente em 1919 aparece agora", diz
Butter.
"Por
outro lado, não estamos vivendo nem de longe o que passou em 1919, que foi
completo, com os grupos, sociedades, ranchos, festas em coretos, todas as
expressões possíveis de um Carnaval que durou quatro dias. Agora, não temos
hoje um carnaval completo e oficial desde 2020 pré-pandêmico", completa.
Fonte:
BBC News Brasil
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