Paulo Kliass:
Terrorismo financeiro e crime de usura
No
próximo mês de maio será o aniversário de 20 anos da promulgação da Emenda
Constitucional nº 40. Porém, ao contrário de comemorar, as forças progressistas
e populares deveriam aproveitar a data para reforçar o debate, mais necessário
do que nunca, a respeito da hegemonia exercida pelo poder do financismo sobre o
conjunto de nossa sociedade.
A
dominação do sistema financeiro sobre os demais setores se materializa por meio
da extração de rendimentos que não guardam quase nenhuma relação direta com a
produção de bens ou com a oferta de serviços essenciais para a maioria da
população. Operando no vácuo oferecido pelas quatro décadas de reinado quase
absoluto das ideias do chamado Consenso de Washington e do auge do
neoliberalismo em todo o planeta, o povo da finança conseguiu emplacar medidas
e regimes de políticas públicas muito importantes para os seus próprios
interesses.
Assim
foi o caso da implementação das políticas de austeridade fiscal e de arrocho
monetário, por meio da completa autonomia concedida de fato à autoridade
monetária (apenas em 2021 foi votada a independência de jure do Banco Central).
Assim foi com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar
nº 101/2000) e a institucionalização da armadilha conceitual de superávit
primário como meta de política econômica. Assim foi com a Emenda Constitucional
nº 95 de 2016, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal, o teto de gastos e a
impossibilidade de elevação de despesas primárias por 20 longos anos.
• Império do terrorismo financeiro
Durante
esse período todo, o Brasil chegou a ocupar por muito tempo o lugar de campeão
do mundo em termos de taxas de juros, a exemplo do que ocorre atualmente com a
Selic nos estratosféricos 13,75%. Com isso, a drenagem sistemática e ordinária
de recursos orçamentários para os setores do topo da pirâmide da desigualdade
se converteu em norma elogiada nos grandes meios de comunicação e aceita de
forma passiva pelo conjunto da sociedade. Os números são escandalosos. Desde o
momento em que o Tesouro Nacional começou a divulgar oficialmente a
contabilização do pagamento de juros da dívida pública (janeiro de 1997) até
janeiro de 2023, o total de recursos destinados a esta rubrica alcançou o
impressionante valor de R$ 8,3 trilhões. Uma loucura!
Esse
verdadeiro quadro de apropriação privada de dinheiro público assume a fantasia
de terrorismo financeiro explícito sempre que a regra passa por algum risco de
ser questionada ou transformada. São os períodos em que sai a campo uma
operação de guerra junto aos meios de comunicação, às lideranças políticas e
aos formadores de opinião para impedir que esse modelo, que assegura o dreno
constante de recursos do Estado em favor do capital parasita, venha a sofrer
alterações. O momento vivido agora é mais um exemplo de tal estratégia em
movimento, uma vez que a Emenda Constitucional 103, aquela da transição de
governo, abriu a possibilidade de revogação do teto de gastos, desde que seja
aprovada uma legislação tratando do chamado “arcabouço fiscal” para ser
colocada em seu lugar. O financismo treme de medo e sai desesperado com as
conhecidas ameaças de chantagem. Seus porta-vozes lançam a sabotagem explícita
contra o governo e voltam a denunciar o que chamam de gastança e de populismo,
anunciando pela enésima vez o risco de o Brasil quebrar de vez. Não por acaso,
a grande imprensa tem chamado o tema de “âncora fiscal”, onde a imagem de uma
política fiscal amarrada e imobilizada nas profundezas do oceano retrata bem a
forma como encaram o fenômeno.
Porém,
um aspecto ainda pouco discutido entre nós refere-se à questão dos juros
praticados pelas instituições bancárias e financeiras de forma geral. Para além
da definição da taxa oficial de juros por meio do Comitê de Política Monetária
(COPOM), a diretoria do Banco Central (BC) também deveria ser responsável por
regular e fiscalizar as atividades das empresas sob sua jurisdição. Dentre
essas atribuições encontra-se, obviamente, o acompanhamento dos spreads
praticados pelos bancos em suas operações de crédito e empréstimo, bem como as
tarifas cobradas de seus clientes pelos serviços prestados. Mas trata-se de
temas para os quais a autoridade sempre fez cara de paisagem, confirmando-se o
conhecido fenômeno da captura das direções de agências reguladoras pelos
interesses das empresas reguladas.
• Juros elevados: crime de usura
Ocorre
que sempre houve pairando no ar um dispositivo constitucional que causava um
certo incômodo na tecnocracia conivente com uma espécie de normalização desta
prática espoliativa de juros. Apesar de nunca ter sido levado às últimas
consequências, sempre havia um risco potencial. Refiro-me ao art. 192 da
Constituição Federal, aliás o único que compõe o Capítulo IV (Do Sistema
Financeiro Nacional), integrante do Título VII (Da Ordem Econômica e
Financeira). O artigo, na verdade, estabelecia a necessidade de uma lei
complementar que ordenasse e definisse o funcionamento do sistema financeiro nacional.
No entanto, havia um último parágrafo que tratava da questão dos juros. O texto
era o seguinte:
(…)
§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras
remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite
será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos
termos que a lei determinar. (…) [GN]
Apesar
do rigor e da clareza de intenção do constituinte a esse respeito, a regra
nunca foi aplicada. O dispositivo permaneceu no corpo constitucional por quase
15 anos, de outubro de 1988 a maio de 2003, sem que nenhuma das incontáveis
situações em que houve o efetivo e flagrante desrespeito a esse limite de juros
reais no mercado financeiro tivesse sido penalizada ou impugnada. Em 1997, o
senador José Serra (PSDB/SP) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional
(PEC nº 21) que transfigurava completamente o art. 192 e eliminava seu § 3º,
justamente este aqui de cima que tratava do crime de usura. O texto tramitou
por um período longo e a matéria foi promulgada apenas em maio de 2003, por
meio da Emenda Constitucional nº 40.
Com
toda a certeza não foi mera coincidência que a retirada de tal dispositivo da
Constituição tenha ocorrido durante o primeiro mandato do presidente Lula,
quando a área econômica de seu governo era dominada por Antonio Palocci no
Ministério da Fazenda e por Henrique Meirelles no BC. Tratava-se de uma
duplinha dinâmica que operava fielmente para agradar aos interesses do
financismo e que se sujeitava, com orgulho e felicidade estampada no rosto, às
orientações gerais das políticas de austeridade emanadas do establishment.
• Mudança no art.192: estrada aberta para
juros espoliativos
Com
isso, o sistema financeiro tem podido operar com os juros e os spreads que bem
entendesse ao longo dos últimos 20 anos. Tendo em vista a ausência da
tipificação de crime de usura na cobrança abusiva dos encargos financeiros das
operações de crédito, a maioria da sociedade acaba tendo que se render às
vontades do oligopólio que domina o financismo em nossas terras. A
regulamentação necessária da matéria, prevista na nova redação do art.192,
nunca foi efetuada e o caminho segue livre e aberto para a prática de exploração
de todos os setores que recorram ao sistema financeiro para satisfazer as suas
necessidades. Enfim, nada parece intimidar o povo da finança, ainda mais com o
agravante de que vivemos em um mundo cada vez mais financeirizado.
Apesar
disso, houve uma tentativa pontual e localizada durante o início da pandemia,
quando o Senado votou uma proposta (PL 1166/20) que propunha a limitação dos
juros nas operações com cartão de crédito e cheque especial. Mas ela era
pensada para vigorar apenas durante a vigência do estado de calamidade pública,
decretado à época. Porém, a Câmara dos Deputados não deu prosseguimento à
tramitação, que está paralisada e descontextualizada. Por outro lado, a
Comissão de Participação Legislativa da casa também aprovou um texto que
procura regulamentar o art. 192, mas o PLP 104/22 segue esquecido nas gavetas
da burocracia do parlamento.
Enfim,
o que parece ficar claro é que segue inatacável a dominação do financismo. Seja
pela colocação em prática da estratégia de terrorismo financeiro no plano
macro, seja pela cobrança de juros típicos de usura no plano micro, é
fundamental que esse poder desproporcional seja freado e regulamentado. Além da
necessária explicitação da vontade política por parte do governo em trilhar
esse caminho, é importante que existam leis e instituições públicas que sejam
orientadas a operar segundo os interesses da maioria da sociedade.
Caso
nada seja feito nesse sentido, é bem capaz que passemos mais duas décadas sem
regulamentar o art. 192 e a tipificação do crime de usura para juros
exagerados. É passada a hora de reduzirmos o poder do financismo e de
eliminarmos os obstáculos para a implementação de um projeto de desenvolvimento
social e econômico, com objetivo de reduzir as desigualdades e estimular a
sustentabilidade. Mas para isso, a sociedade brasileira precisa decidir para
onde deverão ser direcionados, com prioridade, os recursos públicos. Na direção
do caixa das instituições do sistema financeiro ou rumo a projetos de
investimento público de interesse nacional?
Os bancos centrais bolem com fogo. Por
Antonio Martins
“O
Crédit Suisse é grande demais para ser salvo” e sua eventual quebra poderia
significar um novo “momento Lehman Brothers”. O economista Nouriel Roubini,
famoso por ter previsto a grande crise financeira de 2008, fez o alerta esta
manhã, em entrevista à Agência Bloomberg. As ações do banco suíço – que tem
vasta atuação global e é visto pelos mercados como uma das poucas “instituições
financeiras sistematicamente importantes” do mundo – estavam despencando.
Roubini referia-se ao colapso do banco norte-americano que desencadeou o
travamento do mercado global de crédito, há 15 anos.
A
onda de desconfiança atingia também dois grandes bancos franceses (Société
Génerale e BNP Paribas) e um alemão (Deutsche Bank). O Brasil parecia
suscetível à tempestade: o economista-chefe de Itaú, Mário Mesquita, admitia
pela primeira vez que é preciso atentar para os riscos de um choque de crédito.
O que desencadeou a tormenta, num céu até há pouco marcado pela continuidade
das altas exuberantes das bolsas de valores e por uma onda de otimismo dos
governos do Ocidente, animados com as chances de triunfar sobre a Rússia, na
Ucrânia?
Agora,
parece não restarem dúvidas de que as quebras estão relacionadas com a alta dos
juros, nos EUA e na Europa. A partir de março de 2022, o Fed (BC dos EUA)
elevou-as no ritmo mais rápido desde a grande escalada dos anos 1980. No centro
do sistema, elas ainda são negativas, em termos reais (estão abaixo da
inflação), mas um texto do economista Michael Hudson permite compreender as
razões imediatas do choque.
Instituições
financeiras de todo o mundo foram inundadas, entre 2008 e 2022, com uma
torrente incomum de depósitos. Para evitar desvalorizações, e diante da
paralisia dos investimentos produtivos, compraram em massa títulos públicos,
num período em que os juros permaneceram muito baixos. A partir do ano passado,
estes papéis sofreram forte desvalorização, pois é muito mais rentável adquirir
títulos novos, que embutem taxas de juros bem mais elevadas. Se confrontadas
com turbulências, estas instituições veem-se forçadas a vender a qualquer preço
os papéis indesejados. Sofrem prejuízos vultosos, passam a ser vistas com
desconfiança pelos depositantes, perdem rapidamente ativos e ficam à beira da
insolvência.
O
problema é agravado, acrescenta Paul Craig Roberts, outro economista
norte-americano, porque, desde 2008, o grande cassino financeiro global
agigantou-se como nunca e qualquer perda pode ser devastadora. Roberts
refere-se em especial ao mercado de “derivativos”, onde se aposta sobre o preço
futuro de qualquer produto real (o petróleo, a soja, a carne) ou índice (a
relação entre duas moedas, a taxa de juros, o crescimento do PIB). Só os cinco
maiores bancos dos EUA detêm derivativos estimados em 188 trilhões de dólares,
ou duas vezes o PIB de todos os países do mundo. Há quem acredite que o valor
dos derivativos em negociação já ultrapassou 1 quatrilhão de dólares. Uma
variação mínima numa cotação pode produzir um prejuízo insuportável e desencadear
as perdas de que são vítimas agora os bancos norte-americanos e europeus.
Mas
por que os bancos centrais do Ocidente alteraram abruptamente suas taxas de
juros? Novamente é Michael Roberts quem explica. A partir de 2008, os BCs
inundaram os mercados financeiros de dinheiro barato. Primeiro, para salvar os
bancos. Em seguida, e durante 13 anos, emitindo dinheiro a partir do nada, em
favor da oligarquia financeira que controla a maior parte dos títulos da dívida
pública. Os juros, evidentemente, despencaram. A política foi chamada de
quantitative easing. A justificativa era o chamado trickle down, ou
gotejamento. O dinheiro despejado no topo da pirâmide social tenderia a correr
para as arestas, dizia-se. O resultado foi o surgimento de um abismo de desigualdade,
que hoje faz os cerca de 2 mil bilionários do mundo concentrarem mais riqueza
que 60% da população planetária.
Esta
política começou a dar sinais de esgotamento na virada da década – em especial
após a pandemia de covid-19. O sinal mais evidente foi o aquecimento dos
mercados de trabalho. Tendo recebido dos Estados alguma transferência direta de
dinheiro (nos EUA, cheques de 2 mil dólares), parte dos assalariados desistiu
de trabalhar, num fenômeno conhecido como “a grande demissão”. O diretor-geral
do Fed, Jerome Powell, referiu-se explicitamente às dificuldades dos
empresários, ao testemunhar, na semana passada, a um comitê do Senado
norte-americano. Ele anunciou uma elevação mais rápida dos juros, até que os
custos dos salários ficassem “sob controle”.
O
aumento das taxas de juros é frequentemente apresentado como necessário para
“reduzir a inflação”. No blog The next recession, o economista Michael Roberts
demonstra, com base em inúmeros estudos internacionais, que esta relação ou é
completamente falsa, ou no máximo muito indireta. Um trabalho do Banco Central
Europeu demonstra, por exemplo, que é necessário elevar as taxas de juros em 1
ponto percentual para obter queda de inflação de apenas 0,1 ponto. O que motiva
o Fed é promover a queda dos salários e o aumento dos lucros.
Num
texto publicado nesta terça-feira, a revista Economist vai além. Lembra que ao
resgatar, nesta segunda-feira (13/3), os três bancos norte-americanos
quebrados, o Fed abriu, para todo o sistema bancário, uma linha de crédito
favorecida e salvadora. Por meio dela, o BC dos EUA compra os papéis
desvalorizados em poder dos bancos privados pelo valor de face – assumindo,
portanto, as perdas. Significa mais uma vez, como afirmou o senador Bernie
Sanders naquele mesmo dia, “o socialismo para os ricos e o individualismo mais
cru para todos os demais”. Mas significa, também, que o Fed pode estar
cogitando manter a elevação dos juros que golpeia os salários – já que
estendeu, para a oligarquia financeira, uma rede de proteção tecida com
dinheiro público…
O
alastramento da crise para países europeus mostra o risco desta estratégia para
o próprio sistema. É possível que os bancos centrais tenham brincado com fogo
além da conta. Os próximos dias dirão.
O
ponto positivo é que há alternativas. A procuradora norte-americana Ellen
Brown, uma crítica refinada da arquitetura financeira atual, nota: os bancos
não estão condenados a servir à oligarquia financeira. Um sistema bancário
baseado em instituições públicas pode, perfeitamente, financiar um novo padrão
de desenvolvimento – baseado em garantia de serviços públicos de excelência e
renovação da infraestrutura. Há inúmeros exemplos, diz Brown, que cita os
bancos públicos da China e, no passado, as próprias políticas do Fed – por
exemplo, sob a presidência de Franklin Roosevelt.
O
debate chegará ao Brasil. Talvez, como de costume, a partir de um ponto de
vista enviesado e interesseiro. Na edição de hoje do Valor, Mário Mesquita, o
economista-chefe do Itaú, propõe não reduzir os juros brasileiros – há muito os
maiores do mundo e o dobro dos que vigoram nos países que vêm a seguir. “Seria
muito arriscado”, diz ele…
Fonte:
Outras Palavras
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