quarta-feira, 29 de março de 2023

Paulo Kliass: Terrorismo financeiro e crime de usura

No próximo mês de maio será o aniversário de 20 anos da promulgação da Emenda Constitucional nº 40. Porém, ao contrário de comemorar, as forças progressistas e populares deveriam aproveitar a data para reforçar o debate, mais necessário do que nunca, a respeito da hegemonia exercida pelo poder do financismo sobre o conjunto de nossa sociedade.

A dominação do sistema financeiro sobre os demais setores se materializa por meio da extração de rendimentos que não guardam quase nenhuma relação direta com a produção de bens ou com a oferta de serviços essenciais para a maioria da população. Operando no vácuo oferecido pelas quatro décadas de reinado quase absoluto das ideias do chamado Consenso de Washington e do auge do neoliberalismo em todo o planeta, o povo da finança conseguiu emplacar medidas e regimes de políticas públicas muito importantes para os seus próprios interesses.

Assim foi o caso da implementação das políticas de austeridade fiscal e de arrocho monetário, por meio da completa autonomia concedida de fato à autoridade monetária (apenas em 2021 foi votada a independência de jure do Banco Central). Assim foi com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) e a institucionalização da armadilha conceitual de superávit primário como meta de política econômica. Assim foi com a Emenda Constitucional nº 95 de 2016, que estabeleceu o Novo Regime Fiscal, o teto de gastos e a impossibilidade de elevação de despesas primárias por 20 longos anos.

•        Império do terrorismo financeiro

Durante esse período todo, o Brasil chegou a ocupar por muito tempo o lugar de campeão do mundo em termos de taxas de juros, a exemplo do que ocorre atualmente com a Selic nos estratosféricos 13,75%. Com isso, a drenagem sistemática e ordinária de recursos orçamentários para os setores do topo da pirâmide da desigualdade se converteu em norma elogiada nos grandes meios de comunicação e aceita de forma passiva pelo conjunto da sociedade. Os números são escandalosos. Desde o momento em que o Tesouro Nacional começou a divulgar oficialmente a contabilização do pagamento de juros da dívida pública (janeiro de 1997) até janeiro de 2023, o total de recursos destinados a esta rubrica alcançou o impressionante valor de R$ 8,3 trilhões. Uma loucura!

Esse verdadeiro quadro de apropriação privada de dinheiro público assume a fantasia de terrorismo financeiro explícito sempre que a regra passa por algum risco de ser questionada ou transformada. São os períodos em que sai a campo uma operação de guerra junto aos meios de comunicação, às lideranças políticas e aos formadores de opinião para impedir que esse modelo, que assegura o dreno constante de recursos do Estado em favor do capital parasita, venha a sofrer alterações. O momento vivido agora é mais um exemplo de tal estratégia em movimento, uma vez que a Emenda Constitucional 103, aquela da transição de governo, abriu a possibilidade de revogação do teto de gastos, desde que seja aprovada uma legislação tratando do chamado “arcabouço fiscal” para ser colocada em seu lugar. O financismo treme de medo e sai desesperado com as conhecidas ameaças de chantagem. Seus porta-vozes lançam a sabotagem explícita contra o governo e voltam a denunciar o que chamam de gastança e de populismo, anunciando pela enésima vez o risco de o Brasil quebrar de vez. Não por acaso, a grande imprensa tem chamado o tema de “âncora fiscal”, onde a imagem de uma política fiscal amarrada e imobilizada nas profundezas do oceano retrata bem a forma como encaram o fenômeno.

Porém, um aspecto ainda pouco discutido entre nós refere-se à questão dos juros praticados pelas instituições bancárias e financeiras de forma geral. Para além da definição da taxa oficial de juros por meio do Comitê de Política Monetária (COPOM), a diretoria do Banco Central (BC) também deveria ser responsável por regular e fiscalizar as atividades das empresas sob sua jurisdição. Dentre essas atribuições encontra-se, obviamente, o acompanhamento dos spreads praticados pelos bancos em suas operações de crédito e empréstimo, bem como as tarifas cobradas de seus clientes pelos serviços prestados. Mas trata-se de temas para os quais a autoridade sempre fez cara de paisagem, confirmando-se o conhecido fenômeno da captura das direções de agências reguladoras pelos interesses das empresas reguladas.

•        Juros elevados: crime de usura

Ocorre que sempre houve pairando no ar um dispositivo constitucional que causava um certo incômodo na tecnocracia conivente com uma espécie de normalização desta prática espoliativa de juros. Apesar de nunca ter sido levado às últimas consequências, sempre havia um risco potencial. Refiro-me ao art. 192 da Constituição Federal, aliás o único que compõe o Capítulo IV (Do Sistema Financeiro Nacional), integrante do Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira). O artigo, na verdade, estabelecia a necessidade de uma lei complementar que ordenasse e definisse o funcionamento do sistema financeiro nacional. No entanto, havia um último parágrafo que tratava da questão dos juros. O texto era o seguinte:

(…) § 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. (…) [GN]

Apesar do rigor e da clareza de intenção do constituinte a esse respeito, a regra nunca foi aplicada. O dispositivo permaneceu no corpo constitucional por quase 15 anos, de outubro de 1988 a maio de 2003, sem que nenhuma das incontáveis situações em que houve o efetivo e flagrante desrespeito a esse limite de juros reais no mercado financeiro tivesse sido penalizada ou impugnada. Em 1997, o senador José Serra (PSDB/SP) apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 21) que transfigurava completamente o art. 192 e eliminava seu § 3º, justamente este aqui de cima que tratava do crime de usura. O texto tramitou por um período longo e a matéria foi promulgada apenas em maio de 2003, por meio da Emenda Constitucional nº 40.

Com toda a certeza não foi mera coincidência que a retirada de tal dispositivo da Constituição tenha ocorrido durante o primeiro mandato do presidente Lula, quando a área econômica de seu governo era dominada por Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e por Henrique Meirelles no BC. Tratava-se de uma duplinha dinâmica que operava fielmente para agradar aos interesses do financismo e que se sujeitava, com orgulho e felicidade estampada no rosto, às orientações gerais das políticas de austeridade emanadas do establishment.

•        Mudança no art.192: estrada aberta para juros espoliativos

Com isso, o sistema financeiro tem podido operar com os juros e os spreads que bem entendesse ao longo dos últimos 20 anos. Tendo em vista a ausência da tipificação de crime de usura na cobrança abusiva dos encargos financeiros das operações de crédito, a maioria da sociedade acaba tendo que se render às vontades do oligopólio que domina o financismo em nossas terras. A regulamentação necessária da matéria, prevista na nova redação do art.192, nunca foi efetuada e o caminho segue livre e aberto para a prática de exploração de todos os setores que recorram ao sistema financeiro para satisfazer as suas necessidades. Enfim, nada parece intimidar o povo da finança, ainda mais com o agravante de que vivemos em um mundo cada vez mais financeirizado.

Apesar disso, houve uma tentativa pontual e localizada durante o início da pandemia, quando o Senado votou uma proposta (PL 1166/20) que propunha a limitação dos juros nas operações com cartão de crédito e cheque especial. Mas ela era pensada para vigorar apenas durante a vigência do estado de calamidade pública, decretado à época. Porém, a Câmara dos Deputados não deu prosseguimento à tramitação, que está paralisada e descontextualizada. Por outro lado, a Comissão de Participação Legislativa da casa também aprovou um texto que procura regulamentar o art. 192, mas o PLP 104/22 segue esquecido nas gavetas da burocracia do parlamento.

Enfim, o que parece ficar claro é que segue inatacável a dominação do financismo. Seja pela colocação em prática da estratégia de terrorismo financeiro no plano macro, seja pela cobrança de juros típicos de usura no plano micro, é fundamental que esse poder desproporcional seja freado e regulamentado. Além da necessária explicitação da vontade política por parte do governo em trilhar esse caminho, é importante que existam leis e instituições públicas que sejam orientadas a operar segundo os interesses da maioria da sociedade.

Caso nada seja feito nesse sentido, é bem capaz que passemos mais duas décadas sem regulamentar o art. 192 e a tipificação do crime de usura para juros exagerados. É passada a hora de reduzirmos o poder do financismo e de eliminarmos os obstáculos para a implementação de um projeto de desenvolvimento social e econômico, com objetivo de reduzir as desigualdades e estimular a sustentabilidade. Mas para isso, a sociedade brasileira precisa decidir para onde deverão ser direcionados, com prioridade, os recursos públicos. Na direção do caixa das instituições do sistema financeiro ou rumo a projetos de investimento público de interesse nacional?

 

       Os bancos centrais bolem com fogo. Por Antonio Martins

 

“O Crédit Suisse é grande demais para ser salvo” e sua eventual quebra poderia significar um novo “momento Lehman Brothers”. O economista Nouriel Roubini, famoso por ter previsto a grande crise financeira de 2008, fez o alerta esta manhã, em entrevista à Agência Bloomberg. As ações do banco suíço – que tem vasta atuação global e é visto pelos mercados como uma das poucas “instituições financeiras sistematicamente importantes” do mundo – estavam despencando. Roubini referia-se ao colapso do banco norte-americano que desencadeou o travamento do mercado global de crédito, há 15 anos.

A onda de desconfiança atingia também dois grandes bancos franceses (Société Génerale e BNP Paribas) e um alemão (Deutsche Bank). O Brasil parecia suscetível à tempestade: o economista-chefe de Itaú, Mário Mesquita, admitia pela primeira vez que é preciso atentar para os riscos de um choque de crédito. O que desencadeou a tormenta, num céu até há pouco marcado pela continuidade das altas exuberantes das bolsas de valores e por uma onda de otimismo dos governos do Ocidente, animados com as chances de triunfar sobre a Rússia, na Ucrânia?

Agora, parece não restarem dúvidas de que as quebras estão relacionadas com a alta dos juros, nos EUA e na Europa. A partir de março de 2022, o Fed (BC dos EUA) elevou-as no ritmo mais rápido desde a grande escalada dos anos 1980. No centro do sistema, elas ainda são negativas, em termos reais (estão abaixo da inflação), mas um texto do economista Michael Hudson permite compreender as razões imediatas do choque.

Instituições financeiras de todo o mundo foram inundadas, entre 2008 e 2022, com uma torrente incomum de depósitos. Para evitar desvalorizações, e diante da paralisia dos investimentos produtivos, compraram em massa títulos públicos, num período em que os juros permaneceram muito baixos. A partir do ano passado, estes papéis sofreram forte desvalorização, pois é muito mais rentável adquirir títulos novos, que embutem taxas de juros bem mais elevadas. Se confrontadas com turbulências, estas instituições veem-se forçadas a vender a qualquer preço os papéis indesejados. Sofrem prejuízos vultosos, passam a ser vistas com desconfiança pelos depositantes, perdem rapidamente ativos e ficam à beira da insolvência.

O problema é agravado, acrescenta Paul Craig Roberts, outro economista norte-americano, porque, desde 2008, o grande cassino financeiro global agigantou-se como nunca e qualquer perda pode ser devastadora. Roberts refere-se em especial ao mercado de “derivativos”, onde se aposta sobre o preço futuro de qualquer produto real (o petróleo, a soja, a carne) ou índice (a relação entre duas moedas, a taxa de juros, o crescimento do PIB). Só os cinco maiores bancos dos EUA detêm derivativos estimados em 188 trilhões de dólares, ou duas vezes o PIB de todos os países do mundo. Há quem acredite que o valor dos derivativos em negociação já ultrapassou 1 quatrilhão de dólares. Uma variação mínima numa cotação pode produzir um prejuízo insuportável e desencadear as perdas de que são vítimas agora os bancos norte-americanos e europeus.

Mas por que os bancos centrais do Ocidente alteraram abruptamente suas taxas de juros? Novamente é Michael Roberts quem explica. A partir de 2008, os BCs inundaram os mercados financeiros de dinheiro barato. Primeiro, para salvar os bancos. Em seguida, e durante 13 anos, emitindo dinheiro a partir do nada, em favor da oligarquia financeira que controla a maior parte dos títulos da dívida pública. Os juros, evidentemente, despencaram. A política foi chamada de quantitative easing. A justificativa era o chamado trickle down, ou gotejamento. O dinheiro despejado no topo da pirâmide social tenderia a correr para as arestas, dizia-se. O resultado foi o surgimento de um abismo de desigualdade, que hoje faz os cerca de 2 mil bilionários do mundo concentrarem mais riqueza que 60% da população planetária.

Esta política começou a dar sinais de esgotamento na virada da década – em especial após a pandemia de covid-19. O sinal mais evidente foi o aquecimento dos mercados de trabalho. Tendo recebido dos Estados alguma transferência direta de dinheiro (nos EUA, cheques de 2 mil dólares), parte dos assalariados desistiu de trabalhar, num fenômeno conhecido como “a grande demissão”. O diretor-geral do Fed, Jerome Powell, referiu-se explicitamente às dificuldades dos empresários, ao testemunhar, na semana passada, a um comitê do Senado norte-americano. Ele anunciou uma elevação mais rápida dos juros, até que os custos dos salários ficassem “sob controle”.

O aumento das taxas de juros é frequentemente apresentado como necessário para “reduzir a inflação”. No blog The next recession, o economista Michael Roberts demonstra, com base em inúmeros estudos internacionais, que esta relação ou é completamente falsa, ou no máximo muito indireta. Um trabalho do Banco Central Europeu demonstra, por exemplo, que é necessário elevar as taxas de juros em 1 ponto percentual para obter queda de inflação de apenas 0,1 ponto. O que motiva o Fed é promover a queda dos salários e o aumento dos lucros.

Num texto publicado nesta terça-feira, a revista Economist vai além. Lembra que ao resgatar, nesta segunda-feira (13/3), os três bancos norte-americanos quebrados, o Fed abriu, para todo o sistema bancário, uma linha de crédito favorecida e salvadora. Por meio dela, o BC dos EUA compra os papéis desvalorizados em poder dos bancos privados pelo valor de face – assumindo, portanto, as perdas. Significa mais uma vez, como afirmou o senador Bernie Sanders naquele mesmo dia, “o socialismo para os ricos e o individualismo mais cru para todos os demais”. Mas significa, também, que o Fed pode estar cogitando manter a elevação dos juros que golpeia os salários – já que estendeu, para a oligarquia financeira, uma rede de proteção tecida com dinheiro público…

O alastramento da crise para países europeus mostra o risco desta estratégia para o próprio sistema. É possível que os bancos centrais tenham brincado com fogo além da conta. Os próximos dias dirão.

O ponto positivo é que há alternativas. A procuradora norte-americana Ellen Brown, uma crítica refinada da arquitetura financeira atual, nota: os bancos não estão condenados a servir à oligarquia financeira. Um sistema bancário baseado em instituições públicas pode, perfeitamente, financiar um novo padrão de desenvolvimento – baseado em garantia de serviços públicos de excelência e renovação da infraestrutura. Há inúmeros exemplos, diz Brown, que cita os bancos públicos da China e, no passado, as próprias políticas do Fed – por exemplo, sob a presidência de Franklin Roosevelt.

O debate chegará ao Brasil. Talvez, como de costume, a partir de um ponto de vista enviesado e interesseiro. Na edição de hoje do Valor, Mário Mesquita, o economista-chefe do Itaú, propõe não reduzir os juros brasileiros – há muito os maiores do mundo e o dobro dos que vigoram nos países que vêm a seguir. “Seria muito arriscado”, diz ele…

 

Fonte: Outras Palavras

 

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