Quais são as cores
dos orixás? Graças às religiões de matrizes africanas, Salvador se tornou
divino panteão colorido
Ao
acordar, Orlando coloca seus colares de contas brancas de proteção, na
Liberdade. Alguns quilômetros dali, na Barra, Olivia também não sai de casa sem
antes colocar seu guia amarelo ouro. Na sexta-feira, ambos se vestem de branco.
Não precisa ser adepto do candomblé para saber que nossos personagens são
devotos de Oxalá e Oxum, respectivamente, somente pelas cores de seus guias. Se
Salvador tivesse que ter uma cor predominante, qual seria? Se depender do nosso
cotidiano influenciado pelo candomblé, a resposta seria: depende do seu axé. Se
você é de Ogum, certamente a capital é azul marinho. Iansã? Vermelho! Salvador
é um grande guia onde as cores significam proteção e devoção deste panteão de
deuses africanos.
No
aniversário de 474 anos de nossa colorida capital, nada melhor que visitar um
terreiro histórico que abraça todas as cores: A Casa de Oxumarê. O orixá que
rege a casa e protege o líder religioso Bàbá Pecê é representado por um
arco-íris, que colore o teto do barracão principal, tombado como patrimônio
público. Contudo, a casa muda sua cor predominante a cada festejo para reverenciar
uma divindade específica. No dia em que visitamos a casa, o terreiro iniciava
os preparativos para homenagear Iemanjá. Era como a festa do Rio Vermelho de
forma compacta, onde as pessoas vestem o azul cor de mar para referenciar a
Deusa das Águas. No terreiro, o azul, verde e branco predominavam.
Isso
mesmo. O verde também é da Rainha das Águas. Muitos acham que Iemanjá é apenas
o azul do mar (e do peixe), mas não é apenas isto. O candomblé é natureza e,
por conta disso, leva as cores dos elementos sagrados de cada um. Iemanjá, por
exemplo, é representada pelo azul, mas também pelo verde do mar soteropolitano,
além do branco, que são as espumas salgadas. Basta pensar que as cores que
costumamos vestir em homenagem aos nossos orixás são referências a elementos
naturais de cada divindade.
“Vamos
pensar que o candomblé é natureza. E natureza é cor. Então, cada orixá, devido
a sua ligação com a natureza, leva sua cor que pode ser diferente em cada
nação, seja Ketu, Angola ou Jeje, por exemplo. Por que Iansã é vermelho? Por
conta do fogo! Oxum é amarelo pelo metal ouro. É a harmonia entre cor,
candomblé e natureza. Aqui, Oxumarê juntou todos neste arco-íris. Temos a
referência com as cores dos orixás que vieram da África, mas foi em Salvador
que as cores se juntaram, pois aqui as nações e os orixás de diferentes pontos
da África se encontram.", disse Bàbá Pecê.
Pecê
se referiu à junção de orixás em Salvador. Na África, antes do processo da
escravidão, os orixás eram cultuados em algumas regiões africanas, sendo
desconhecidas em outros trechos. Era como se Ogum fosse referenciado em Pirajá,
mas desconhecido em Brotas, nas suas devidas proporções. Com a escravização,
diferentes etnias aportaram em Salvador. Mesmo com uma característica própria,
os terreiros mais antigos abraçaram todas as nações e deuses num único
barracão, incluindo suas respectivas cores. É como se todas as cores de
diferentes nações aportassem em Salvador, como um arco-íris.
Nos
terreiros, principalmente os mais tradicionais, existe o Oriàṣẹ,
uma espécie de escultura sagrada que representa todas as nações. Quando há uma
festa específica, o Oriàṣẹ
recebe as cores do orixá homenageado. “Nas terras africanas, de onde nossos
ancestrais foram arrancados do seio de suas famílias e trazidos para o Brasil
na condição de escravizados, cada cidade possuía a predominância de culto a uma
divindade, e uma vez eles estando aqui, não tinham outra opção a não ser
compartilharem o espaço e fazer desta Casa um lugar de culto a todas as
divindades”, completa Bàbá.
Para
Pecê, as cores do candomblé se tornaram referência e costume de Salvador,
ditando nosso jeito de se vestir. “O soteropolitano gosta do colorido, das
cores fortes que vimos na África”, diz. Ele ainda revela um segredo: “Quando Ana Maria Braga esteve aqui, me
perguntou sobre as cores dos orixás, como se vestir durante a semana. Falei
tudo e até hoje ela se veste com as cores da cada orixá, de acordo com o dia da
semana. As cores do terreiro estão no cotidiano. Sexta vestimos o branco
buscando a paz de Oxalá. No final do ano, me ligam para saber qual o orixá do
ano novo, justamente para se vestir com as cores dele. Está na cultura do
soteropolitano”, conta.
• Sincretismo
As
cores também tiveram fortes influências no sincretismo religioso de Salvador.
No processo de associação das divindades africanas com os santos católicos, nem
sempre as características e semelhanças de cada um foram levadas em
consideração, justamente pelo fato de nem todos os africanos que vieram
escravizados falavam a língua portuguesa. Isso pode, inclusive, explicar o
motivo de Ogum ser representado por Santo Antônio em Salvador, ao invés de São
Jorge, comum em outros estados.
Segundo
alguns estudos, incluindo Pierre Verger no livro Orixás, a explicação para Ogum
ser um santo casamenteiro tem a ver com uma imagem que ficava na Igreja da
Barra. Foi atribuída a este objeto sacro um milagre por conta da destruição de
navios invasores. Este Santo Antônio acabou ganhando patente de capitão da
marinha com honras militares, incluindo espada e uma manta… Azul marinho! Se
encaixou perfeitamente.
Esta
relação colorida também ajudou os terreiros de Salvador nos tempos em que ainda
era proibido cultuar deuses africanos. Muitos faziam altares com as cores de
Santa Bárbara, por exemplo, com imagens da santa católica, mas aquela cor já
era o bastante para associar com Iansã
sem a necessidade de sua imagem.
Para
o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia
(AFA), Leonel Monteiro, a cor hoje é vista como uma associação bem próxima do
cotidiano do soteropolitano e seu santo de axé, mas também foi uma forma de
burlar o preconceito com as religiões de matrizes africanas. Se vestir de
branco, por exemplo, foi uma forma de cultuar Oxalá na sexta-feira, enquanto os
católicos pensavam se tratar do Senhor do Bonfim.
“Falar
de cores na história do candomblé em Salvador é muito importante e marcante. O
sincretismo foi foi uma estratégica dos negros e negras escravizados
continuarem cultuando a sua fé, ligando o orixá e seu vodum a um determinado
santo católico para burlar o clima hostil. A cor, sem dúvida, foi determinante.
Mas, na sua essência, a relação de cores com o panteão são elementos na
natureza que representam o caminho de determinada divindade. Não precisa ser somente
da natureza. O nosso sangue vermelho é domínio de Exu, por exemplo”, conta
Leonel.
• Guias
Outra
referência importante entre cor, orixá e Salvador são as guias que muitos
soteropolitanos carregam no pescoço. É uma forma de identificação e devoção. É
difícil alguém não identificar um filho de santo ao avistar os fios de contas,
conhecidos como guias ou Ìlèkè, no pescoço. Ele carrega ali não apenas a cor do
seu orixá, mas uma proteção contra qualquer mal. E, assim como já foi dito, cada miçanga
representa o elemento da natureza do seu protetor.
“Tem
gente que compra as guias e nem é do candomblé. Pergunta qual a cor de
determinado orixá e pega para buscar proteção e porque acha bonito o baiano
usar. É bem comum o turista levar como lembrança da Bahia, pois vê muita gente
com a guia no pescoço. Sempre pergunta pra mim: ‘protege mesmo?’. Eu digo que sim, né? Quero vender…” disse um
vendedor da Feira de São Joaquim, meio desconfiado e pedindo pra não revelar
seu nome. Ele tem medo de represália na igreja. “Sou evangélico, velho”,
completa.
A
não ser que você seja roqueiro ou gótico, vestir preto na sexta-feira é quase
um sacrilégio em Salvador. Obviamente, também tem relação com o candomblé. Fora
em alguns detalhes, é raro ver a cor preta nos cultos de matrizes africanas.
Vale salientar que não estamos falando de raça, mas da cor em si e sua
representação na religião. Neste caso, a cor branca é predominante até no luto,
por uma explicação que chega a ser quase científica: o branco representa a "cor da luz", pois reflete todas as cores do espectro.
“Claro
que a gente não está falando da raça negra, estamos falando de cor. O branco
representa luz, paz e até luto. São todas as cores reunidas. É a cor que mais
deve ser usada. Por isso, se identifica adeptos das religiões de matrizes
africanas com suas vestimentas brancas. [a baiana de acarajé, por exemplo].
Quem mais representa esta cor é o Orixá maior, Orixalá, né? Olha a importância
desta cor, que leva o equilíbrio e a paz, né? É a tranquilidade pra gente seguir
a vida. Em contraponto, a cor preta é ausência de luz, por isso não é
utilizado”, completa Leonel.
Afinal,
qual a cor predominante de Salvador, esta jovem senhora de 474 anos? Depende,
meu filho. Depende do seu orixá… “Como diz a música, a cor dessa cidade sou eu,
né? Quem faz esta cidade é seu povo. O que importa é trazer a cor que te traga
paz e proteção. Precisamos”, aconselha Bàbá Pecê. Axé!
• As cores dos orixás
Exu:
colares de contas vermelho e preto / dia da semana: segunda-feira
Ogum:
colares de contas azul escuro (podendo ser de vidro) ou verde / dia da semana:
terça-feira
Oxóssi:
colares de contas azul-esverdeadas / dia da semana: quinta-feira
Ossain:
colares de contas verde e branco / dia da semana: sábado
Xangô:
colares de contas vermelho e branco / dia da semana: quarta-feira
Yansã:
colares de vidro grená / dia da semana:
quarta-feira
Oxum:
colares de contas amarelo ouro (podendo ser de vidro) / dia da semana: sábado
Iemanjá:
colares de vidro transparente, de contas verde ou azul-claro / sábado
Oxumarê:
colares de vidro Amarelo e verde (também representa o arco-íris) / terça
Omolu: colares de contas marrom com listras pretas e
brancas ou pequenos discos pretos / segunda-feira
Nanã:
colares de vidro branco com listra azul / segunda-feira ou sábado
Oxalá:
colares de contas branco / sexta-feira
Como os daltônicos enxergam Salvador,
cidade marcada pelas cores
Imagine
aquele pôr do sol espetacular em algum ponto da orla de Salvador. Na cidade, há
até quem bata palma para a cena de tirar o fôlego. Agora, se você acredita que
todo mundo enxerga os tons da paisagem da mesma forma, está enganado. Os
daltônicos possuem uma percepção única das cores e não vêem da mesma forma nem
entre si. Em uma cidade tão marcada pelo colorido, como é o cotidiano de quem
conta com o privilégio e a solitude de um olhar exclusivo?
O
corretor de seguros Roberto Gonçalves, 53, não entendia quando os colegas de
trabalho tiravam sarro de suas roupas coloridas. Outras situações do dia a dia
também o deixavam confuso. Ele tem dificuldade em enxergar as sinalizações
luminosas que indicam se uma vaga está ou não disponível nos estacionamentos,
por exemplo. Certo de que não tinha com o que se preocupar, sempre ignorou os
sinais.
A
possibilidade de ser daltônico só apareceu há cinco anos, quando foi renovar a
sua carteira de habilitação. Em um dos testes, a médica percebeu que Roberto
não enxergava um ponto luminoso colorido e indicou que ele fosse ao
oftalmologista. Na consulta, uma especialista realizou testes que são
facilmente encontrados na internet. Um círculo com vários pontinhos coloridos e
um número de outro tom no centro.
O
Teste de Ishihara é utilizado para a detecção do daltonismo. Pessoas com visão
normal conseguem distinguir os números 5, 16 e 2.
“Quando a médica perguntou qual era o número
eu perguntei se ela queria que eu contasse todas as bolinhas”, relembra o
consultor com bom humor. Por ser daltônico, ele não foi capaz de enxergar com
clareza o número no centro da figura. Nesse momento, com mais de 40 anos de
vida, ele descobriu o distúrbio visual que impacta na sua percepção de tons
verde, vermelho e laranja. Foi como se uma chave tivesse sido virada e muitos
momentos da vida passaram a fazer sentido.
“Quando criança, não via a diferença entre
laranja e cor de abóbora, por exemplo, mas nunca exprimi essas dúvidas”, conta.
Por ter vivido longos anos sem saber que tinha um distúrbio de visão, Roberto
criou seu próprio universo. “A criança vai adaptando a vida ao redor dela em
cima do que ela enxerga. Então isso vai desde a roupa que não combina, sem se
dar conta que está usando algo incomum”, analisa.
Depois
que recebeu o diagnóstico, Roberto Gonçalves continuou enxergando tudo em sua
volta, mas saber que possui uma visão própria de Salvador, trouxe mais poesia
para sua vida.
“Quando
eu estou olhando para o pôr do sol hoje, me sinto extremamente privilegiado
porque o que eu estou vendo é só meu, ninguém nunca vai enxergar igual”, diz.
• O que é daltonismo?
Especialistas
e daltônicos concordam que o termo "deficiência" não é o mais correto
para definir a condição. Isso porque o daltonismo não influencia a
funcionalidade da visão dos pacientes, como explica Rodrigo Dahia,
oftalmologista do Itaigara Memorial e especialista em neuro-oftalmologia.
“Daltonismo
é um termo utilizado para se referir aos distúrbios congênitos de visão de
cores, ou seja, não é uma condição progressivo e não evolui com o tempo”,
esclarece.
O
especialista alerta que não existe “cura milagrosa” para o distúrbio, apenas
óculos com filtros específicos que, pela diferença de saturação, facilitam que
o paciente perceba a diferença de tons, mas não as cores.
Entre
as pessoas daltônicas existem vários graus e tipos. O simulador online Color
Blindness dá dimensão de como os daltônicos enxergam a depender do tipo de
distúrbio.
Roberto
Gonçalves, assim como a maioria dos daltônicos, é tricromata, ou seja, tem
todos os receptores de cor, mas não as identificam com clareza. As tonalidades
de vermelho, verde e azul são as mais afetadas. Existe ainda o tipo dicromático
- em que a pessoa não possui um receptor, o que impede a identificação de algum
tom - e o acromático, quando a pessoa daltônica só enxerga tons de branco,
preto e cinza.
O
daltonismo acromático é considerado raro, mas a Organização Mundial da Saúde
estima que existam cerca de 350 milhões de daltônicos no mundo - a maioria
homens. Como a condição genética é recessiva e ligada ao cromossomo sexual X, o
transtorno só afeta mulheres que recebem o gene do pai e da mãe.
“Os
cones são células especializadas responsáveis pela visão de cores. São três
tipos de cones e cada um deles consegue enxergar melhor determinada cor:
vermelho, verde e azul. Todas as outras cores que vemos no mundo são conjunção
de estímulos. O amarelo, por exemplo, é uma mistura que estimula todos os cones
e será interpretada pelo cérebro”, explica Rodrigo Dahia.
• Descoberta
É
comum que o diagnóstico de daltonismo seja feito ainda na infância, quando as
crianças apresentam dificuldades na percepção de cores na escola. Mas a
disseminação de informações sobre o distúrbio facilita que muita gente descubra
ac ondição em casa. É o caso do analista de sistemas Paulo Henrique Alves, 33,
que aos 25 anos, por curiosidade, decidiu fazer o teste de Ishihara pela
internet - o mesmo formado por bolinhas que Roberto realizou no consultório.
“Tenho
um tio que é daltônico e, em uma brincadeira, pesquisei o teste na internet
para testar com ele. Para minha surpresa, percebi que eu também não enxergava
os número”, relembra o analista de sistema. Desde o episódio, em 2015, Paulo
nunca foi a um especialista, mas acredita que seja tricromático, já que tem
dificuldades em perceber cores como verde, marrom, vermelho e azul.
O
analista de sistemas escolheu voltar para a capital baiana quando o trabalho em
Belo Horizonte (MG), se tornou remoto. "Toda a minha família é da Bahia e
eu sentia falta do mar e de olhar o horizonte sem fim", diz. Prova de quem
mesmo com tonalidades diferentes, Salvador continua irresistível.
Por
terem nascido com o distúrbio, os daltônicos não possuem referência própria das
cores. Enxergam o que seus olhos alcançam e é isso que conhecem. Para Paulo
Henrique, não há reclamações sobre os tons que formam a cidade que o acolhe.
"Para mim tudo está lindo. O sol no final d atarde, o azul do céu sem
nuvens, o mar...", divaga sabendo que as belezas da cidade são
incontáveis.
Fonte:
Correio
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