quinta-feira, 30 de março de 2023

Quais são as cores dos orixás? Graças às religiões de matrizes africanas, Salvador se tornou divino panteão colorido

Ao acordar, Orlando coloca seus colares de contas brancas de proteção, na Liberdade. Alguns quilômetros dali, na Barra, Olivia também não sai de casa sem antes colocar seu guia amarelo ouro. Na sexta-feira, ambos se vestem de branco. Não precisa ser adepto do candomblé para saber que nossos personagens são devotos de Oxalá e Oxum, respectivamente, somente pelas cores de seus guias. Se Salvador tivesse que ter uma cor predominante, qual seria? Se depender do nosso cotidiano influenciado pelo candomblé, a resposta seria: depende do seu axé. Se você é de Ogum, certamente a capital é azul marinho. Iansã? Vermelho! Salvador é um grande guia onde as cores significam proteção e devoção deste panteão de deuses africanos.

No aniversário de 474 anos de nossa colorida capital, nada melhor que visitar um terreiro histórico que abraça todas as cores: A Casa de Oxumarê. O orixá que rege a casa e protege o líder religioso Bàbá Pecê é representado por um arco-íris, que colore o teto do barracão principal, tombado como patrimônio público. Contudo, a casa muda sua cor predominante a cada festejo para reverenciar uma divindade específica. No dia em que visitamos a casa, o terreiro iniciava os preparativos para homenagear Iemanjá. Era como a festa do Rio Vermelho de forma compacta, onde as pessoas vestem o azul cor de mar para referenciar a Deusa das Águas. No terreiro, o azul, verde e branco predominavam.

Isso mesmo. O verde também é da Rainha das Águas. Muitos acham que Iemanjá é apenas o azul do mar (e do peixe), mas não é apenas isto. O candomblé é natureza e, por conta disso, leva as cores dos elementos sagrados de cada um. Iemanjá, por exemplo, é representada pelo azul, mas também pelo verde do mar soteropolitano, além do branco, que são as espumas salgadas. Basta pensar que as cores que costumamos vestir em homenagem aos nossos orixás são referências a elementos naturais de cada divindade.

“Vamos pensar que o candomblé é natureza. E natureza é cor. Então, cada orixá, devido a sua ligação com a natureza, leva sua cor que pode ser diferente em cada nação, seja Ketu, Angola ou Jeje, por exemplo. Por que Iansã é vermelho? Por conta do fogo! Oxum é amarelo pelo metal ouro. É a harmonia entre cor, candomblé e natureza. Aqui, Oxumarê juntou todos neste arco-íris. Temos a referência com as cores dos orixás que vieram da África, mas foi em Salvador que as cores se juntaram, pois aqui as nações e os orixás de diferentes pontos da África se encontram.", disse Bàbá Pecê.

Pecê se referiu à junção de orixás em Salvador. Na África, antes do processo da escravidão, os orixás eram cultuados em algumas regiões africanas, sendo desconhecidas em outros trechos. Era como se Ogum fosse referenciado em Pirajá, mas desconhecido em Brotas, nas suas devidas proporções. Com a escravização, diferentes etnias aportaram em Salvador. Mesmo com uma característica própria, os terreiros mais antigos abraçaram todas as nações e deuses num único barracão, incluindo suas respectivas cores. É como se todas as cores de diferentes nações aportassem em Salvador, como um arco-íris.

Nos terreiros, principalmente os mais tradicionais, existe o Orià, uma espécie de escultura sagrada que representa todas as nações. Quando há uma festa específica, o Orià recebe as cores do orixá homenageado. “Nas terras africanas, de onde nossos ancestrais foram arrancados do seio de suas famílias e trazidos para o Brasil na condição de escravizados, cada cidade possuía a predominância de culto a uma divindade, e uma vez eles estando aqui, não tinham outra opção a não ser compartilharem o espaço e fazer desta Casa um lugar de culto a todas as divindades”, completa Bàbá.

Para Pecê, as cores do candomblé se tornaram referência e costume de Salvador, ditando nosso jeito de se vestir. “O soteropolitano gosta do colorido, das cores fortes que vimos na África”, diz. Ele ainda revela um segredo:  “Quando Ana Maria Braga esteve aqui, me perguntou sobre as cores dos orixás, como se vestir durante a semana. Falei tudo e até hoje ela se veste com as cores da cada orixá, de acordo com o dia da semana. As cores do terreiro estão no cotidiano. Sexta vestimos o branco buscando a paz de Oxalá. No final do ano, me ligam para saber qual o orixá do ano novo, justamente para se vestir com as cores dele. Está na cultura do soteropolitano”, conta.

•        Sincretismo

As cores também tiveram fortes influências no sincretismo religioso de Salvador. No processo de associação das divindades africanas com os santos católicos, nem sempre as características e semelhanças de cada um foram levadas em consideração, justamente pelo fato de nem todos os africanos que vieram escravizados falavam a língua portuguesa. Isso pode, inclusive, explicar o motivo de Ogum ser representado por Santo Antônio em Salvador, ao invés de São Jorge, comum em outros estados.

Segundo alguns estudos, incluindo Pierre Verger no livro Orixás, a explicação para Ogum ser um santo casamenteiro tem a ver com uma imagem que ficava na Igreja da Barra. Foi atribuída a este objeto sacro um milagre por conta da destruição de navios invasores. Este Santo Antônio acabou ganhando patente de capitão da marinha com honras militares, incluindo espada e uma manta… Azul marinho! Se encaixou perfeitamente.

Esta relação colorida também ajudou os terreiros de Salvador nos tempos em que ainda era proibido cultuar deuses africanos. Muitos faziam altares com as cores de Santa Bárbara, por exemplo, com imagens da santa católica, mas aquela cor já era o bastante para associar com Iansã  sem a necessidade de sua imagem.

Para o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, a cor hoje é vista como uma associação bem próxima do cotidiano do soteropolitano e seu santo de axé, mas também foi uma forma de burlar o preconceito com as religiões de matrizes africanas. Se vestir de branco, por exemplo, foi uma forma de cultuar Oxalá na sexta-feira, enquanto os católicos pensavam se tratar do Senhor do Bonfim.

“Falar de cores na história do candomblé em Salvador é muito importante e marcante. O sincretismo foi foi uma estratégica dos negros e negras escravizados continuarem cultuando a sua fé, ligando o orixá e seu vodum a um determinado santo católico para burlar o clima hostil. A cor, sem dúvida, foi determinante. Mas, na sua essência, a relação de cores com o panteão são elementos na natureza que representam o caminho de determinada divindade. Não precisa ser somente da natureza. O nosso sangue vermelho é domínio de Exu, por exemplo”, conta Leonel.

•        Guias

Outra referência importante entre cor, orixá e Salvador são as guias que muitos soteropolitanos carregam no pescoço. É uma forma de identificação e devoção. É difícil alguém não identificar um filho de santo ao avistar os fios de contas, conhecidos como guias ou Ìlèkè, no pescoço. Ele carrega ali não apenas a cor do seu orixá, mas uma proteção contra qualquer mal.  E, assim como já foi dito, cada miçanga representa o elemento da natureza do seu protetor.

“Tem gente que compra as guias e nem é do candomblé. Pergunta qual a cor de determinado orixá e pega para buscar proteção e porque acha bonito o baiano usar. É bem comum o turista levar como lembrança da Bahia, pois vê muita gente com a guia no pescoço. Sempre pergunta pra mim: ‘protege mesmo?’.  Eu digo que sim, né? Quero vender…” disse um vendedor da Feira de São Joaquim, meio desconfiado e pedindo pra não revelar seu nome. Ele tem medo de represália na igreja. “Sou evangélico, velho”, completa.

A não ser que você seja roqueiro ou gótico, vestir preto na sexta-feira é quase um sacrilégio em Salvador. Obviamente, também tem relação com o candomblé. Fora em alguns detalhes, é raro ver a cor preta nos cultos de matrizes africanas. Vale salientar que não estamos falando de raça, mas da cor em si e sua representação na religião. Neste caso, a cor branca é predominante até no luto, por uma explicação que chega a ser quase científica: o branco representa a  "cor da luz", pois  reflete todas as cores do espectro.

“Claro que a gente não está falando da raça negra, estamos falando de cor. O branco representa luz, paz e até luto. São todas as cores reunidas. É a cor que mais deve ser usada. Por isso, se identifica adeptos das religiões de matrizes africanas com suas vestimentas brancas. [a baiana de acarajé, por exemplo]. Quem mais representa esta cor é o Orixá maior, Orixalá, né? Olha a importância desta cor, que leva o equilíbrio e a paz, né? É a tranquilidade pra gente seguir a vida. Em contraponto, a cor preta é ausência de luz, por isso não é utilizado”, completa Leonel.

Afinal, qual a cor predominante de Salvador, esta jovem senhora de 474 anos? Depende, meu filho. Depende do seu orixá… “Como diz a música, a cor dessa cidade sou eu, né? Quem faz esta cidade é seu povo. O que importa é trazer a cor que te traga paz e proteção. Precisamos”, aconselha Bàbá Pecê. Axé!

•        As cores dos orixás

Exu: colares de contas vermelho e preto / dia da semana: segunda-feira

Ogum: colares de contas azul escuro (podendo ser de vidro) ou verde / dia da semana: terça-feira

Oxóssi: colares de contas azul-esverdeadas / dia da semana: quinta-feira

Ossain: colares de contas verde e branco / dia da semana: sábado

Xangô: colares de contas vermelho e branco / dia da semana: quarta-feira

Yansã: colares de vidro grená  / dia da semana: quarta-feira

Oxum: colares de contas amarelo ouro (podendo ser de vidro)  / dia da semana: sábado

Iemanjá: colares de vidro transparente, de contas verde ou azul-claro / sábado

Oxumarê: colares de vidro Amarelo e verde (também representa o arco-íris)  / terça

Omolu:  colares de contas marrom com listras pretas e brancas ou pequenos discos pretos / segunda-feira

Nanã: colares de vidro branco com listra azul / segunda-feira ou sábado

Oxalá: colares de contas branco / sexta-feira

 

       Como os daltônicos enxergam Salvador, cidade marcada pelas cores

 

Imagine aquele pôr do sol espetacular em algum ponto da orla de Salvador. Na cidade, há até quem bata palma para a cena de tirar o fôlego. Agora, se você acredita que todo mundo enxerga os tons da paisagem da mesma forma, está enganado. Os daltônicos possuem uma percepção única das cores e não vêem da mesma forma nem entre si. Em uma cidade tão marcada pelo colorido, como é o cotidiano de quem conta com o privilégio e a solitude de um olhar exclusivo?

O corretor de seguros Roberto Gonçalves, 53, não entendia quando os colegas de trabalho tiravam sarro de suas roupas coloridas. Outras situações do dia a dia também o deixavam confuso. Ele tem dificuldade em enxergar as sinalizações luminosas que indicam se uma vaga está ou não disponível nos estacionamentos, por exemplo. Certo de que não tinha com o que se preocupar, sempre ignorou os sinais.

A possibilidade de ser daltônico só apareceu há cinco anos, quando foi renovar a sua carteira de habilitação. Em um dos testes, a médica percebeu que Roberto não enxergava um ponto luminoso colorido e indicou que ele fosse ao oftalmologista. Na consulta, uma especialista realizou testes que são facilmente encontrados na internet. Um círculo com vários pontinhos coloridos e um número de outro tom no centro.

O Teste de Ishihara é utilizado para a detecção do daltonismo. Pessoas com visão normal conseguem distinguir os números 5, 16 e 2.

 “Quando a médica perguntou qual era o número eu perguntei se ela queria que eu contasse todas as bolinhas”, relembra o consultor com bom humor. Por ser daltônico, ele não foi capaz de enxergar com clareza o número no centro da figura. Nesse momento, com mais de 40 anos de vida, ele descobriu o distúrbio visual que impacta na sua percepção de tons verde, vermelho e laranja. Foi como se uma chave tivesse sido virada e muitos momentos da vida passaram a fazer sentido.

 “Quando criança, não via a diferença entre laranja e cor de abóbora, por exemplo, mas nunca exprimi essas dúvidas”, conta. Por ter vivido longos anos sem saber que tinha um distúrbio de visão, Roberto criou seu próprio universo. “A criança vai adaptando a vida ao redor dela em cima do que ela enxerga. Então isso vai desde a roupa que não combina, sem se dar conta que está usando algo incomum”, analisa.

Depois que recebeu o diagnóstico, Roberto Gonçalves continuou enxergando tudo em sua volta, mas saber que possui uma visão própria de Salvador, trouxe mais poesia para sua vida.

“Quando eu estou olhando para o pôr do sol hoje, me sinto extremamente privilegiado porque o que eu estou vendo é só meu, ninguém nunca vai enxergar igual”, diz.

•        O que é daltonismo?

Especialistas e daltônicos concordam que o termo "deficiência" não é o mais correto para definir a condição. Isso porque o daltonismo não influencia a funcionalidade da visão dos pacientes, como explica Rodrigo Dahia, oftalmologista do Itaigara Memorial e especialista em neuro-oftalmologia.

“Daltonismo é um termo utilizado para se referir aos distúrbios congênitos de visão de cores, ou seja, não é uma condição progressivo e não evolui com o tempo”, esclarece.

O especialista alerta que não existe “cura milagrosa” para o distúrbio, apenas óculos com filtros específicos que, pela diferença de saturação, facilitam que o paciente perceba a diferença de tons, mas não as cores.

Entre as pessoas daltônicas existem vários graus e tipos. O simulador online Color Blindness dá dimensão de como os daltônicos enxergam a depender do tipo de distúrbio.

Roberto Gonçalves, assim como a maioria dos daltônicos, é tricromata, ou seja, tem todos os receptores de cor, mas não as identificam com clareza. As tonalidades de vermelho, verde e azul são as mais afetadas. Existe ainda o tipo dicromático - em que a pessoa não possui um receptor, o que impede a identificação de algum tom - e o acromático, quando a pessoa daltônica só enxerga tons de branco, preto e cinza.

O daltonismo acromático é considerado raro, mas a Organização Mundial da Saúde estima que existam cerca de 350 milhões de daltônicos no mundo - a maioria homens. Como a condição genética é recessiva e ligada ao cromossomo sexual X, o transtorno só afeta mulheres que recebem o gene do pai e da mãe.

“Os cones são células especializadas responsáveis pela visão de cores. São três tipos de cones e cada um deles consegue enxergar melhor determinada cor: vermelho, verde e azul. Todas as outras cores que vemos no mundo são conjunção de estímulos. O amarelo, por exemplo, é uma mistura que estimula todos os cones e será interpretada pelo cérebro”, explica Rodrigo Dahia.

•        Descoberta

É comum que o diagnóstico de daltonismo seja feito ainda na infância, quando as crianças apresentam dificuldades na percepção de cores na escola. Mas a disseminação de informações sobre o distúrbio facilita que muita gente descubra ac ondição em casa. É o caso do analista de sistemas Paulo Henrique Alves, 33, que aos 25 anos, por curiosidade, decidiu fazer o teste de Ishihara pela internet - o mesmo formado por bolinhas que Roberto realizou no consultório.

“Tenho um tio que é daltônico e, em uma brincadeira, pesquisei o teste na internet para testar com ele. Para minha surpresa, percebi que eu também não enxergava os número”, relembra o analista de sistema. Desde o episódio, em 2015, Paulo nunca foi a um especialista, mas acredita que seja tricromático, já que tem dificuldades em perceber cores como verde, marrom, vermelho e azul.

O analista de sistemas escolheu voltar para a capital baiana quando o trabalho em Belo Horizonte (MG), se tornou remoto. "Toda a minha família é da Bahia e eu sentia falta do mar e de olhar o horizonte sem fim", diz. Prova de quem mesmo com tonalidades diferentes, Salvador continua irresistível.

Por terem nascido com o distúrbio, os daltônicos não possuem referência própria das cores. Enxergam o que seus olhos alcançam e é isso que conhecem. Para Paulo Henrique, não há reclamações sobre os tons que formam a cidade que o acolhe. "Para mim tudo está lindo. O sol no final d atarde, o azul do céu sem nuvens, o mar...", divaga sabendo que as belezas da cidade são incontáveis.

 

Fonte: Correio

 

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