Xi Jinping e o
setor privado na China
“Tudo está pronto, exceto o vento do Oriente”.
A frase, do Romance dos Três Reinos, de Luo Guanzhong, significa
que tudo está preparado, exceto o crucial. Poderia ser atribuída à mensagem do
governo chinês nas “Duas Sessões”, como é popularmente conhecida a celebração
anual do Congresso Nacional do Povo e da Conferência Política Consultiva do
Povo, em Pequim. Esse ano, o evento político mais importante do ano teve maior
relevância, por confirmar os resultados do 20º Congresso do Partido Comunista
Chinês, de outubro de 2022. Em especial, com a votação unânime de Xi Jinping
como presidente da China pelo terceiro mandato, assim como seu posto de
secretário-geral do PCCh e presidente da Comissão Militar Central.
Muitos
temas atravessaram o evento. Mas o “crucial” ausente para novo regime que
orbita ao redor de Xi é um novum aequilibrium entre segurança
e desenvolvimento econômico. A China transita de uma economia da prosperidade
para uma sorte de economia da segurança. A preponderância dada à segurança
de Estado por sobre o mero enriquecimento ficou marcada no 20º
Congresso, alterando as coordenadas das eras que sobrevieram desde as reformas
de abertura em 1978. De Deng Xiaoping a Hu Jintao, o desenvolvimento econômico
era o centro de gravidade que subordinava a política externa chinesa. Com Xi
Jinping, a segurança nacional e a projeção de poder no estrangeiro se tornam um
fundamento para o crescimento econômico da China. Nesse tom, Xi exibiu as
trombetas de Marte no Parlamento, afirmando que transformaria o Exército de
Libertação Popular numa “grande muralha de aço” capaz de salvaguardar o
desenvolvimento econômico, a segurança e a soberania nacional, e nomeou
um general sancionado
pelos Estados Unidos, Li Shangfu, como Ministro da Defesa. Qin Gang, novo
chanceler que substitui Wang Yi, disse que os diplomatas chineses têm que
"dançar com lobos" para defender seu país, e que os EUA deveriam
"pisar no freio" em sua escalada contra a China, caso a administração
Biden queira evitar um conflito aberto.
A
projeção internacional vai além das armas. A mediação por parte
da China de um acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irã, as duas
principais potências do Oriente Médio, retrata um novo papel do gigante
asiático. A velha “estratégia de 24 caracteres”, segundo a qual Pequim deveria
aguardar seu momento, ocultar sua força e não assumir posições de liderança
internacional, chega definitivamente ao fim, não apenas em termos militares,
mas no tabuleiro diplomático das potências.
Entretanto,
falamos de novo equilíbrio entre segurança e desenvolvimento, porque a economia
é um problema crucial para Xi. Em outras palavras, a economia deve
orientar-se ao robustecimento da segurança do Estado. Assim o define Xi
Jinping como nova orientação estatal, na medida em que "a segurança é a
base do desenvolvimento, e a estabilidade é o pré-requisito para a
prosperidade". O setor privado chinês, nesse plano, está convocado a
seguir enriquecendo-se e acumular capital, mas em sintonia com o projeto de
incremento da segurança do Estado. Em outras palavras, o blueprint de
Xi Jinping é favorecer todos os empresários privados que colaborarem com o
desenvolvimento da tecnologia de ponta necessária para que a República Popular
dependa menos do estrangeiro e possa solucionar seus próprios problemas de
segurança interna e externa, este grande “crucial ausente”.
A
China apenas se recupera dos danos causados pela pandemia e pela política da
Covid-zero, que levaram os índices de crescimento econômico às taxas mais
baixas desde 1979, provocando a revolta mais importante de seu mandato, a dos
operários da Foxconn de Zhengzhou. A quebra dos bancos comerciais
norte-americanos, Sillicon Valley Bank e Signature Bank, as maiores falências
de instituições financeiras desde o Washington Mutual na crise de 2008, e os
resgates estatais a bancos como o Crédit Suisse, lançaram uma onda de incerteza
econômica sobre o setor bancário global, também sobre a China. A disputa
tecnológica da China com o imperialismo estadunidense diminuiu drasticamente o
acesso das empresas chinesas aos insumos avançados para o desenvolvimento de
semicondutores e da tecnologia de inteligência artificial. Nesse cenário, o
governo chinês deve aprumar o curso da política econômica e aprofundar a
relação com os agentes capitalistas privados, nacionais e estrangeiros, para
alavancar o objetivo de 5% do PIB para 2023.
Com
efeito, na divisão de tarefas para as Duas Sessões, a economia ganhou destaque
apesar da nova ênfase na segurança, e foi acompanhada de sugestivos apelos ao
setor privado do capital chinês. Li Qiang, que substituiu Li Keqiang como novo
premier, modulou uma mensagem mais conciliatória que Xi Jinping e Qin Gang.
Concentrando-se na economia, afirmou que a China e os EUA estavam intimamente
ligados em benefício de ambos os lados, e que a colaboração mútua é benfazeja a
ambos.
Mais
instrutivo ainda foi o discurso dirigido aos empresários. Tranquilizou a
comunidade empresarial chinesa, e buscou aliviar as preocupações sobre um
suposto retrocesso da administração Xi nas relações com os capitalistas
privados. "Os governos em todos os níveis deveriam fazer amizade com os
empresários, construir um ambiente de negócios amigável e preocupar-se com os
empresários privados", disse ele, acrescentando que o governo chinês
tem sempre apoiado o setor privado, e falar que a China está desencorajando os
empresários privados é "inapropriado". Xi Jinping atuou no mesmo
acorde. Como noticiou o South China Morning Post, Xi encenou uma
ofensiva de encantos aos capitalistas durante sessão parlamentar, tratando-os
como "um de nós", ao mesmo tempo em que se comprometeu a intensificar a
orientação política de desenvolvimento do setor privado.
Nisso
vamos enfatizar a análise. Ao contrário da visão que pinta uma China “voltada
contra o setor privado”, o renovado pacto do governo com os capitalistas é um
aprofundamento da orientação do Partido Comunista Chinês. A comunhão com o
capital para o incremento da segurança estatal mostra uma longa tendência
estrutural de avanço do setor privado na China sob a supervisão e apoio de Xi
Jinping.
·
Crescimento do setor privado chinês em dados
Há
uma vasta corrente de opinião entre analistas econômicos ligados ao mainstream que
interpreta, de maneira um tanto unilateral, a política de Xi tendente ao
fortalecimento dos principais oligopólios estatais em setores estratégicos da
China com uma espécie de marginalização do setor privado. As medidas de
restrição regulatória em 2021 contra determinados segmentos (plataformas
de e-commerce, e materiais educativos, por exemplo) veio para
avivar o lume dessa tese, que tem um de seus expoentes o sinólogo australiano
Nicholas Lardy, autor em 2019 do livro “The State Strikes Back: the End of
Economic Reform in China?”. Dentro desse espectro se encontram não apenas
os críticos liberais da China, mas também aqueles que louvam a China como o
suposto “socialismo do século XXI”, como Elias Jabbour (com quem já
debatemos aqui). Na disputa
geopolítica sino-estadunidense, enquanto os primeiros costumam sustentar a
política de contenção chinesa por parte do imperialismo norte-americano, os
segundos respaldam a burocracia bonapartista do PCCh na busca pela
multipolaridade capitalista.
Aproximações
dessa natureza absolutizar um aspecto real da política de Pequim, extinguindo a
relação que estabelece com a totalidade da orientação do PCCh. Xi Jinping
prometeu, de fato, tornar “mais fortes, maiores e melhores” os 100 yangqi -
ou conglomerados de empresas estatais que receberam poderes monopolistas sobre
setores-chave, que vão desde petróleo e gás até bancos e telecomunicações.
Dentro desse horizonte, como explicam os autores Gunther Schubert e Thomas
Heberer (2021) em seu State-business relations under Xi Jinping:
steering the private sector and private entrepreneurs, as empresas de
propriedade estatal mais poderosas - que encabeçam a projeção internacional de
poder econômico da China, embora não exclusivamente - são encorajadas pelos
governos locais a investir nas empresas privadas, para deter certo quantum de
ativos dessas empresas, que variam segundo a situação e o lugar. O objetivo é
elevar a capacidade de inovação das empresas de propriedade estatal, enquanto
muitas empresas privadas enxergam com bons olhos a relação próxima com as
gigantes estatais, que acumulam recursos e concentração tecnológica.
A
ênfase em fortalecer determinadas empresas estatais, entretanto, corre em
paralelo com o incentivo ao desenvolvimento do setor privado em uma ampla gama
de segmentos, em especial em setores de energia, defesa, biotecnologia,
semicondutores, inteligência artificial, robótica e tecnologia quântica. São os
setores em que Xi Jinping concentra esforços para diminuir a brecha em relação ao
poderio norte-americano, e que substituíram em grau de hierarquia a importância
que as plataformas do comércio digital possuíam, entre 2014 e 2020 (Alibaba,
Tencent, JD.com, Meituan, Pinduoduo, entre outras). Fruto dessa orientação
estatal a China veio avançando em investigação de tecnologias críticas,
chegando a liderar em 37 de 44 dessas tecnologias segundo informe do Instituto
Australiano de Política Estratégica (ASPI), superando distintos rivais
ocidentais.
Como
mostra uma pesquisa detalhada de Tianlei Huang e
Nicolas Verón, para o Instituto Bruegel, isso leva a uma dinâmica em que as
maiores empresas do setor privado da China estejam se expandindo mais
rapidamente do que as empresas estatais. No estudo publicado em 2021, os
autores argumentam que na era Xi Jinping: “O setor privado da China cresceu
significativamente tanto em termos absolutos quanto como proporção das maiores
empresas do país, medido pela receita ou (para empresas cotadas em bolsa) pelo
valor de mercado, a partir de um nível muito baixo quando Xi Jinping foi
confirmado como o próximo líder em 2010. Vemos uma tendência estrutural de
avanço do setor privado, que tem caracterizado a década de desenvolvimento da
China sob a presidência de Xi Jinping. Assim, o ditado chinês ‘o Estado avança,
o setor privado se retira’ (国进民退),
que tem sido amplamente utilizado para descrever as tendências econômicas da
China, não representa o quadro principal do que tem acontecido no mundo dos
negócios da China sob Xi Jinping, mesmo nos anos mais recentes.”
Tianlei
e Verón tomam as categorias de receita e valor de mercado para compreender a
continuidade tendencial no padrão de fortalecimento do capital privado na
China. Para os objetivos do estudo, definem o setor privado como aquelas
empresas, rotuladas como "empresas não públicas", nas quais as
entidades estatais detêm menos de 10% do capital acionário. Colhendo dados da
pesquisa da Fortune Global 500, puderam examinar o crescimento da presença das
empresas privadas chinesas dentre as principais empresas globais. Enquanto no
ranking de 2005 (com base na receita de 2004) a China possuía apenas 15
empresas, no ranking de 2021 (com base na receita de 2020) o gigante asiático
já possuía 130 empresas na lista da Fortune. A receita agregada destas empresas
cresceu de US$ 2,8 trilhões em 2010 para US$ 8,8 trilhões em 2020. As empresas
estatais ainda dominam pela receita entre as maiores empresas, muito mais do
que na economia chinesa como um todo. Mas a participação do setor privado tem aumentado constantemente: a partir de
zero em meados dos anos 2000 para 19% do total (US$ 1,7 trilhão, no universo de
US$ 8,8 trilhões) no ranking da Fortune de 2021. Quanto ao valor de
mercado das maiores empresas listadas, o setor privado representava apenas 8% em 2010, mas subiu acima de 50% em
2020, e recuou apenas ligeiramente em 2021, para 48%. Assim, a regulação
estatal em 2021 em certas indústrias teve algum impacto, mas não reverteu o
avanço anterior do setor privado.
Em
seis anos, de 2015 a 2021, o número de grupos do setor privado da China
listados na Fortune 500 mais do que triplicou, de 9 para 32. Os únicos grupos
de capital privado que saíram da lista foram a CEFC China Energy, Huaxia Life
Insurance e o Grupo HNA, conglomerados de “rinocerontes cinzentos” com
problemas de dívida que tiveram de ser liquidados pelo governo. 25 novos grupos
do setor privado se juntaram à lista. Em contraste, o número de empresas do
setor estatal (de propriedade do Estado, ou de capital misto com capital
acionário majoritário do Estado) cresceu apenas incrementalmente durante o
mesmo período, de 83 para 98. Empresas privadas como a China Pacific
Construction Group Construction and infrastructure, Huawei Investment &
Holding Electronic, Lenovo Group Computers, Shandong Weiqiao Pioneering Group,
Amer International Group Nonferrous Metals, Jiangsu Shagang Group Steel,
Zhejiang Geely Holding Group Automotive, entre muitas outras, melhoraram suas
posições nesse período dentro das empresas privadas mais lucrativas da China.
Dentre as 100 principais empresas listadas por valor de mercado, entre 2010 e
2021, as empresas privadas subiram
de praticamente zero para 48% do total, enquanto as empresas estatais decaíram
de 78% para 38% do total. O valor de mercado dessas empresas está
diretamente relacionado à sua capacidade de gerar trabalho excedente, ou
valorização do capital, que como explica Marx nos Grundrisse é a forma basilar
indispensável de produzir mais-valor, índice da exploração do trabalho.
A
ascensão do setor privado na China não é inteiramente uma história sobre a
ascensão das líderes das big techs, em plataformas digitais como
Alibaba e Tencent. Enquanto as big techs já desempenharam um
papel dominante entre as maiores empresas privadas da China, a meados da década
de 2010, a diversidade setorial vem crescendo com o tempo. Empresas privadas
direcionadas ao desenvolvimento de alta tecnologia são as que mais foram
favorecidas nos últimos anos da era Xi, e são agora a esmagadora maioria das
empresas do setor privado entre as maiores da China. A CATL é agora o maior
fabricante mundial de baterias de íon-lítio, detendo um terço do mercado global
de baterias para veículos elétricos. A LONGi Green Energy é a maior empresa
solar do mundo e o principal fornecedor de painéis solares para os EUA.
Milhares de startups nos ramos da robótica, semicondutores, e
inteligência artificial passam a surgir, muitas vezes com respaldo
governamental, em novos nichos de produção, como nas províncias interioranas
(Hubei, Henan, etc.), alterando o tradicional mapa da produção industrial
chinesa. A participação das plataformas de internet dentre as principais
empresas do setor privado chinês tem diminuído desde que atingiu seu pico em
2016. No final do terceiro trimestre de 2022, apenas nove entre as 44 empresas
maiores do setor privado são plataformas digitais. Isto é confirmado pelos
dados compilados pela All-China Federation of Industry and Commerce, que mostra
que, entre as 500 maiores empresas privadas da China por receita em 2021,
apenas 12 são plataformas de Internet; mais de 60% são empresas manufatureiras.
Esse
processo correu em paralelo com o fortalecimento das empresas estatais em
determinados nichos mediante a concentração de capital, ou fusões, como são os
casos dos fabricantes de trens CNR Corp. e CSR Corp.; das duas maiores empresas
de mineração e metais, a China Metallurgical Group e a China Minmetals Corp.; e
os dois maiores conglomerados de comércio marítimo, a China Ocean Shipping
Group [COSCO] e a China Shipping Group. Em nenhum caso, entretanto, empresas
estatais absorveram grandes empresas do setor privado, a despeito de seus
investimentos. Assim, visto ao longo da era Xi Jinping até agora, portanto, a
ascensão do setor privado nos limites do mercado é inconfundível, e ainda mais
pronunciada do que na receita, como descrito anteriormente.
O
problema estratégico para Pequim é conseguir dar relevo a empresas de inovação
e tecnologia de ponta, que tenham a relevância que as empresas digitais e de
infraestrutura (energia, transportes, telecomunicações) possuem.
Na
conclusão do estudo, Tianlei e Verón
aduzem que:
“Quando Xi Jinping entrou no Comitê Permanente do Politburo do PCCh em 2007,
a lista da Fortune Global 500 das maiores empresas do mundo por receita incluía
apenas 22 empresas chinesas, todas elas de propriedade estatal. Quando ele se
tornou o principal líder da China no final de 2012, havia 70 empresas chinesas
no ranking da Fortune Global 500, das quais apenas 6 eram do setor privado
(Empresas Não-Públicas, em nossa taxonomia). No último ranking (2021), há 130
empresas chinesas na Fortune Global 500, das quais 32 são empresas privadas.
Enquanto isso, a participação das empresas privadas na capitalização de mercado
das 100 maiores empresas listadas na China aumentou de um dígito para cerca da
metade do total. As empresas estatais estão perdendo gradualmente sua
participação, antes incontestável, nos principais espaços corporativos da
China, ecoando a caracterização de Nicholas Lardy de um "deslocamento das
empresas estatais" como a alternativa da China à privatização. Nossa pesquisa
identifica uma clara e significativa tendência de avanço do setor privado entre
as maiores empresas chinesas durante esse período, em contraste com a análise
que pretende identificar um papel relativo crescente ou estável das empresas
estatais.”
É
ainda mais chamativo que tal análise venha de uma leitura que identifica com
clareza a política de Xi Jinping de privilegiar empresas estatais em nichos
estratégicos, incentivar os investimentos dessas empresas de capital
majoritariamente estatal sobre o setor privado, e facilitar políticas de
financiamento àquelas empresas que possuem relação de alguma natureza com o
Estado (não só públicas, como privadas). São fatos que iluminam os verdadeiros
efeitos da restauração capitalista na China e que desdizem as certezas de Deng
Xiaoping, que em entrevista em 1980, nos alvores da época de reforma e
abertura, havia afirmado que qualquer que fosse a proporção do investimento
privado, poderá cobrir apenas uma pequena porcentagem da economia chinesa.
·
Um setor privado cada vez mais integrado ao “Grande
Sonho” imperial
Esses
resultados, correspondentes ao crescimento tendencial do setor privado na
economia chinesa, estão fundados em decisões conscientes pela burocracia de
Pequim. Xi Jinping não ignora estes acontecimentos, nem os efeitos da
restauração capitalista encabeçada pelo PCCh. O número "56789" tem
sido popularmente utilizado para descrever o papel do setor privado na economia
capitalista chinesa: refere-se ao setor privado fornecendo mais de 50% da receita
tributária da China, 60% do PIB do país, 70% das inovações tecnológicas, 80% do
emprego de mão-de-obra urbana e 90% das empresas sendo privadas.
Desde
a ascensão de Xi, as empresas privadas foram readaptadas ao plano de
crescimento econômico. A orientação partidária sob Xi era substituir a ênfase
anterior das empresas de capital privado, voltadas à produção de capital
intensivo com baixo valor agregado orientada à exportação, para uma economia
dependente do mercado interno baseada na produção de alta tecnologia (maior
valor agregado). A mudança de padrão de crescimento atendia às necessidades do
gigante asiático diante dos efeitos da crise econômica mundial de 2008, que
ficaram patentes no país em 2013. Com efeito, na chamada “Decisão do Comitê
Central do Partido Comunista da China Sobre Algumas Questões Importantes
Relativas Ao Aprofundamento Abrangente da Reforma”, adotada no Terceiro
Plenário do 18º Congresso do Partido Comunista Chinês, em novembro de 2013,
coloca ênfase especial no desenvolvimento da economia privada, destacando a
relação crítica entre estado e mercado, e a necessidade urgente de reajuste
para fortalecer o sistema econômico básico do país. A seção de abertura da
Decisão de Aprofundamento da Reforma delineia o papel do Estado neste processo
da seguinte forma:
A
reforma do sistema econômico é o foco do aprofundamento da reforma de forma
abrangente. A questão subjacente é como encontrar um equilíbrio entre o papel
do governo e o do mercado, e deixar o mercado desempenhar o papel decisivo na
alocação de recursos e deixar o governo desempenhar melhor suas funções....
Devemos promover ativamente e de forma ordenada a reforma orientada para o
mercado, em amplitude e profundidade, reduzindo grandemente o papel do governo
na alocação direta de recursos, e promover a alocação de recursos de acordo com
as regras do mercado, preços de mercado e concorrência de mercado, de forma a
maximizar os lucros e otimizar a eficiência. A principal responsabilidade e
papel do governo é manter a estabilidade da macroeconomia, fortalecer e
melhorar os serviços públicos, salvaguardar a concorrência justa, fortalecer a
supervisão do mercado, manter a ordem do mercado, promover o desenvolvimento
sustentável e a prosperidade comum, e intervir em situações em que ocorra falha
do mercado.
Neste
documento, supervisionado estreitamente por Xi Jinping, o mercado recebe os
holofotes. As reformas orientadas ao mercado, “em amplitude e profundidade”,
devem diminuir o peso do Estado na economia, ao mesmo tempo sublinhando seu
papel de responsabilidade pela supervisão macroeconômica e o controle do setor
privado, adequando à sintonia desejada pelos projetos do partido-Estado. Assim,
a Decisão de Aprofundamento da Reforma de 2013 anuncia, entre outras questões,
uma melhoria da proteção dos direitos de propriedade; o desenvolvimento de uma
economia mista "com participação cruzada e fusão de capital estatal,
capital coletivo e capital não-público"; o apoio ao setor privado,
abolindo "todas as formas de regulamentações irracionais para a economia
não-pública"; a promulgação de regras justas, abertas e transparentes para
garantir a igualdade de acesso ao mercado para empresas públicas e privadas;
uma rigorosa proibição e penalização de "todos os atos ilegais que
estendam políticas preferenciais e a concorrência desleal" (com o objetivo
de acabar com o protecionismo local tanto das empresas públicas quanto das
empresas privadas selecionadas, que se tornou cada vez mais comum em muitas
partes da China); e a liberalização e modernização do mercado financeiro
chinês, como um pré-requisito fundamental para o fortalecimento do setor
privado que está em constante necessidade de capital.
Como
afirmam Schubert e Heberer, em seu discurso na sessão anual da Conferência
Nacional Consultiva Política dos Povos em março de 2016, Xi Jinping resumiu a
posição da liderança central sobre a economia privada, as relações entre o
estado e os negócios e as reformas necessárias do setor privado a serem
colocadas em prática pelo governo central. Ele enfatizou longamente que o
partido garantiria igualdade de tratamento, pois tanto o setor público quanto o
privado eram essenciais para o progresso econômico da China. Xi também lembrou
sua audiência de um discurso que proferiu um ano antes [2015] em uma
conferência de trabalho do Departamento da Frente Unida do partido, quando
declarou que a economia do setor não público deveria ser encorajada a
"crescer saudavelmente até a maturidade" (jiangkang chengzhang).
Finalmente, ele definiu a "nova relação" entre o estado e os
empresários privados (xinxing zhengshang guanxi) como "íntima"
(qin) e "limpa" (qing), referindo-se àquilo que o PCCh considera como
“empresários honestos, de boa fé, cumpridores da lei, honrados e de mente
aberta”. É um linguajar semelhante ao usado por Xi Jinping durante as Duas
Sessões de 2023, quando diz que as empresas privadas deveriam ter "um
senso de responsabilidade, fraternidade e amor, enquanto se enriquecem".
Ou
seja, a política de fortalecimento das campeãs nacionais em nichos estratégicos
depende, dentro do capitalismo chinês, do setor privado para a consecução da
nova fase industrial: construir multinacionais que tenham saliência na solução
dos problemas estratégicos de defesa e segurança. Xi alterou as coordenadas
oriundas da era Hu-Wen, dando mais poder à indústria técnico-militar, mas desde
sua ascensão ao poder demonstra simpatia pelo crescimento do setor privado. O
19º Congresso do PCCh, em outubro de 2017, foi a primeira vez que Xi Jinping
falou oficialmente do apoio governamental ao desenvolvimento de "empresas
privadas" (minying qiye), em vez da economia não pública (feigong
youzhi jingji), e também a primeira vez em que mencionou especificamente a
determinação do governo em apoiar a capacidade inovadora das pequenas e médias
empresas (privadas). Quando em setembro de 2018 um empresário chinês, Wu
Xiaoping, publicou nota explicando que o papel do setor privado na China havia
chegado à sua culminação, o próprio Xi Jinping saiu a refutar a impressão de
que o governo daria consentimento para um desvanecimento do economia privada e
criticou aqueles que promovem tais pontos de vista, chamando os empresários
privados como “um de nós” (Schubert e Heberer, 2021), como fez na sessão
parlamentar das Duas Sessões de 2023. Uma reunião executiva do Conselho de Estado
realizada em agosto de 2018, presidida pelo primeiro-ministro Li Keqiang,
decidiu, então, que as empresas menores deveriam ter melhor acesso a
empréstimos a preços acessíveis. As instituições financeiras deveriam ser
incentivadas a apoiar mais as pequenas e médias empresas privadas, e a
supervisão regulatória deveria ser melhorada para garantir que os serviços de
crédito fossem disponibilizados para elas. Em fevereiro de 2019, o Comitê
Central do PCCh e o Conselho de Estado ordenaram que todos os bancos chineses
aumentassem os empréstimos às empresas privadas a fim de apoiar o setor privado
e evitar uma maior desaceleração da economia. Não acidentalmente, a mensagem do
novo premier, Li Qiang, segue as mesmas coordenadas.
A
conclusão de Schubert e Heberer é que:
Resumindo,
em termos de enquadramento ideológico, os empreendedores privados da China têm
tido repetidamente a garantia, durante a era Xi Jinping, de que seu lugar na
contínua transformação e modernização econômica da China está assegurado. Ao
mesmo tempo, eles foram advertidos a não se envolverem em “atividades
capitalistas de compadrio”, e muitos foram disciplinados pela campanha
anti-corrupção de Xi. Além disso, o partido-Estado intensificou a incorporação
política - ou cooptação - de empresários privados através de uma série de
mecanismos estabelecidos que moldaram as relações entre o estado e os
capitalistas desde o início do período da reforma, mas que, sem dúvida,
perderam parte de sua eficiência durante a era Hu Jintao-Wen Jiabao (2002-2012).
A
cooptação por parte do Estado, de que falam Schubert e Heberer, diz respeito à
relação política com o setor privado, que cresce proporcionalmente ao poderio
econômico dos capitalistas chineses. A integração ao PCCh, autorizada
oficialmente em 2001 pelo então secretário-geral Jiang Zemin (mas realizada
extra-oficialmente desde a década de 1980 nas localidades) é um dos mecanismos
mais importantes. A absorção desses empresários em organismos como os
Congressos Nacionais do Povo (CPs) e nas Conferências Políticas Consultivas do
Povo (CPCPs), é outro expediente. Todos eles são adotados pelos empresários
como benefícios, uma vez que os coloca em posição de relação direta com
administradores e oficiais responsáveis pela política de distribuição de
recursos, facilitando o lobby de suas empresas e a participação pessoal nas
decisões que concernem seus interesses privados. De acordo com fontes oficiais,
em 2000, a proporção de membros do PCCh entre os empresários privados já era
bastante elevada (19,8%). Seguindo a pesquisa semestral sobre empresários
privados realizada pela Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS), a
porcentagem de membros do PCCh
entre a amostra de empresários privados era de 39,8% em 2010 e 32,8% em 2012.
Já a participação de empresários privados em nos CPs e CPCPs em todos os níveis
administrativos aumentou
gradualmente ao longo dos anos, tendo a média anual entre 1997 e 2014 chegado a
otórios 44%.
Changdong
Zhang traçou um quadro do comportamento de empresários privados nos CPs e CPCPs
locais. Ao se tornarem delegados, os empresários estão principalmente
interessados em construir conexões políticas, obter privilégios políticos e
fazer propostas políticas que possam beneficiar suas indústrias. As eleições se
tornaram fortemente “comercializadas”, tais como “em algumas regiões da
província de Zhejiang, onde empresários gastam centenas de milhares ou mesmo
milhões de yuans para comprar votos”. As autoridades do partido-estado se
habituaram a entregar ou vender posições de delegados nesses organismos
cerimoniais por investimentos locais e generosas doações de empresários
privados, o que os ajuda a alcançar uma avaliação positiva nos procedimentos
anuais de avaliação de desempenho. Assim, promovem uma troca de poder político
e vantagens econômicas em benefício tanto dos quadros locais quanto dos
próprios capitalistas.
Dessa
política de integração do setor privado aos mecanismos do partido-estado é que
podemos extrair, de certa maneira, a resposta de por que determinados magnatas
foram alvo da campanha anticorrupção de Xi Jinping. Esse “freio de contenção”
não implicou uma suposta “reversão da política para uma economia estatal”, e
sim é a própria consequência do ingresso do setor privado em postos de
responsabilidade política. Xi precisa da lealdade desse segmento econômico.
Como uma importante força econômica, os empresários privados estão inclinados a
fazer lobby político e a buscar influência para proteger e expandir seus
interesses econômicos. Este é tanto o caso na China quanto em qualquer outra parte
do mundo. Quanto mais poderosos eles se tornam economicamente, mais
pretensiosos eles se tornam politicamente. Nesse aspecto, a burocracia do
Partido Comunista caminha uma linha tênue entre cooptar empresários de
prestígio para o sistema político e lembrá-los constantemente de respeitar a
autoridade partidária.
·
Não há reversão do crescimento do setor privado
chinês
Anúncios
proféticos sobre um "retorno" ao domínio do setor estatal foram
feitas várias vezes antes para a China, com referência às mudanças de política
em 1989-1990, 2003, 2008, 2009, 2010, 2012, 2017, 2019 e início de 2020.
Enquanto isso, o setor privado da China continuou avançando. Não há nenhuma
razão convincente para pensar que desta vez é diferente.
Como
afirmam Tianlei e Verón, "O Partido Comunista Chinês está claramente se
esforçando para desenvolver sua influência sobre o setor privado chinês, embora
essa influência permaneça consideravelmente menos direta do que sobre as
empresas estatais. Seria um exagero, no entanto, dizer que a China é única a
este respeito. A influência do governo sobre o setor privado ocorre na Europa,
Japão, Coréia do Sul, Taiwan e outras economias avançadas - mesmo nos Estados
Unidos. Tal influência é certamente mais difundida na China, mas nada disso
elimina a importância da divisão entre o setor estatal e o setor privado. A
propriedade é muito importante para os resultados do desenvolvimento econômico,
mesmo sob o controle generalizado do Partido Comunista em assuntos políticos. O
avanço do setor privado, que nosso estudo documenta, é, portanto, de
importância estrutural para a China". A interferência estatal nos EUA,
como o salvamento da GM em 2009 na esteira da crise, ou os resgates bancários
de 2008 e os que agora beneficiam os acionistas do Sillicon Valley Bank e do
First Republic Bank, são mostras importantes desse argumento.
Nesse
artigo buscamos sintetizar uma longa tendência estrutural de avanço do
setor privado na China sob a supervisão e apoio de Xi Jinping. As Duas
Sessões deixaram marcada a orientação central do PCCh de incentivar e apoiar o
crescimento do setor privado, em especial sintonia com os projetos de defesa e
segurança do Estado, no marco da passagem de uma economia da prosperidade para
uma economia da segurança. Existem muitos desafios para superar o déficit
tecnológico da República Popular diante das potências ocidentais.
Xi
Jinping renovou nas sessões parlamentares o convite para a participação dos
capitalistas chineses no “Grande Sonho” da conquista de uma economia voltada à
segurança nacional e ao que o PCCh chama de “auto-dependência” em recursos
vitais. Os traços imperialistas do capitalismo chinês se desenvolvem em
proporção direta ao surgimento dos novos contornos (e poder) do setor privado
em comunhão com o setor estatal capitalizado.
Fonte:
Por André Barbieri, para Esquerda Diário
Nenhum comentário:
Postar um comentário