Visão da ditadura
sobre Amazônia operou “totalmente” na gestão Bolsonaro, diz pesquisadora
O
ideário que orientou as políticas para a Amazônia na ditadura militar, cujo
golpe fundador está prestes a completar 59 anos, foi replicado por Jair
Bolsonaro em seu governo, que deixou aflorar antigas teorias conspiratórias e
fez com que a floresta ficasse mais desprotegida. Essa é a avaliação de Adriana
Aparecida Marques, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora de questões
relacionadas às Forças Armadas há mais de duas décadas.
Marques
alerta que, apesar da troca na presidência da República, se a Política Nacional
de Defesa não for rediscutida, essa percepção militar em relação à floresta não
mudará. “Nenhuma organização se autorreforma, ainda mais uma organização como a
militar brasileira, que teve tanta autonomia e poder durante toda a nossa
história republicana”, argumenta.
A
professora explica também que a militarização dos órgãos de proteção ao meio
ambiente e povos indígenas como Ibama, ICMBio e Funai e a realização de
Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) contra o crime ambiental na
Amazônia ocorridas sob Bolsonaro não são “uma coincidência” e refletem a ideia
consolidada durante a ditadura de que “a ocupação militar é sinônimo de
proteção e defesa” do bioma. “Já existia essa percepção [dos militares], mas
ela não encontrava eco nos outros ministérios. A partir do momento em que isso
passou a acontecer, a tragédia ocorreu”, afirma, citando o que aconteceu quando
o Ministério do Meio Ambiente estava sob comando de Ricardo Salles (PL-SP),
hoje deputado federal.
Marques
– que estudou o pensamento militar sobre a Amazônia em sua tese de doutorado –
diz ainda que, ao considerarem os povos indígenas e ONGs como ameaças à
soberania nacional, além de cultivarem uma crença de que há uma cobiça de
outros países sobre a floresta, os militares deixam de encarar os verdadeiros
problemas.
“O
que os militares consideram como ameaças são meras suposições”, diz. “Agora, a
tragédia Yanomami, os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips [indigenista
e jornalista britânico mortos em junho de 2022 no Vale do Javari, no Amazonas],
a devastação ambiental, temos evidências empíricas sobre isso [de que há
ameaças reais na região], e é com base nisso que as pessoas discutem”, aponta.
A
especialista indica o enfraquecimento da diplomacia ambiental do Brasil e das
relações com os demais países amazônicos como resultado das políticas
inspiradas nos militares que deixaram a Amazônia em situação mais vulnerável
nos últimos anos. “Havia uma cooperação que vinha se intensificando entre o
Brasil e outros países amazônicos principalmente nessa área de defesa clássica,
mas também em relação a crimes transnacionais, e isso tudo foi deixado de
lado”, destaca. “A diplomacia não atuou, o Ministério do Meio Ambiente não
atuou. Foi um caldeirão de questões que levaram à tragédia que a gente viu.”
Confira
a seguir os principais trechos da entrevista.
• A ditadura militar foi marcada pela
entrega de terras da Amazônia à ocupação por fazendeiros e empresas e a
construção, por exemplo, de grandes obras e estradas, como a Transamazônica.
Qual a relação dessas medidas com o pensamento militar da época sobre a
floresta?
Os
grandes projetos para a Amazônia da época da ditadura militar, na verdade,
expressam uma visão em relação à Amazônia que é a anterior à ditadura, mas que
foi implementada com mais energia durante esse período. A ideia da Amazônia
como um espaço vazio que precisa ser ocupado e desenvolvido existe desde o
começo do século XX e é forte no imaginário das elites políticas brasileiras.
Isso ganha mais impulso principalmente a partir do governo Getúlio Vargas,
porque essa visão de integração nacional foi incorporada pelo pensamento
geopolítico brasileiro, que nas primeiras décadas do século XX até a década de
1980 foi produzido basicamente por militares do Exército. Então se consolidou
nas Forças Armadas uma visão sobre a Amazônia que coincidia com a visão das
elites, às vezes das próprias elites amazônicas.
Tem
figuras como o Arthur César Ferreira Reis, um político amazônida que escreveu o
livro “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, lançado em 1960, que teve cinco
edições. Seria anacrônica se dissesse que o livro apresenta fake news, porque
esse é um um termo que usamos agora, mas é um apanhado de teorias da
conspiração. A cada nova edição, o autor ia colocando um novo capítulo sobre
[supostas] tentativas de estrangeiros de se apossar da Amazônia, e com base
nesses argumentos, ele defendia o desenvolvimento econômico da região, o que
envolve a adequação dos povos indígenas que vivem ali à civilização ocidental.
Então isso não é uma particularidade da ditadura, tanto que o Arthur César
Ferreira Reis foi governador do Amazonas na década de 1960. Mas é claro que a
ditadura reforça isso, e mesmo depois dela [essa visão persiste]. Por exemplo,
o projeto Calha Norte [criado em 1985 na região amazônica para manter a
soberania nacional e mantido até hoje pelo Ministério da Defesa] guarda
semelhança com esses grandes projetos, na verdade ele é o último dos grandes
projetos para a ocupação da Amazônia, mas que começa a ser implementado já no
processo de redemocratização. De fato, tem uma perenidade muito grande na
visão, em particular do Exército, em relação à Amazônia, a gente viu o quanto
isso influenciou o último governo.
A
política do governo Bolsonaro para a Amazônia tentava desmontar as políticas
públicas construídas durante a Nova República. Depois da ditadura, no governo
Sarney, até por conta da repercussão internacional [das altas taxas de
desmatamento nos anos 1980], o Brasil começa a adotar algumas políticas
ambientais visando à proteção da floresta, e isso se intensificou a partir do
governo Fernando Henrique Cardoso e principalmente dos governos do PT. Houve um
retrocesso muito grande já perceptível durante o governo Temer que se
intensifica no governo Bolsonaro com as consequências que todos sabemos.
• Como podemos sentir os efeitos dessas
políticas até hoje?
O
slogan de “integrar para não entregar” está na base da ideia de que existe uma
cobiça internacional em relação à região pelos países desenvolvidos. Os Estados
Unidos às vezes entram nessa equação, às vezes saem. Eram o vilão, por exemplo,
no começo dos anos 2000, mas não no governo Bolsonaro, quando os grandes vilões
foram a França e os países europeus junto à China. Os vilões vão mudando, mas a
ideia subjacente é de que tem que haver o desenvolvimento econômico e a
integração da região via grandes estradas para garantir seu pertencimento ao
restante do país. Também há uma visão muito desconfiada em relação aos povos
indígenas de que, por tentarem preservar sua cultura, não seriam patriotas e
não teriam compromisso com o país, como se isso estivesse vinculado ao fato de
usar calça jeans, camiseta, cantar o hino nacional. É uma visão muito
estigmatizada do que é ter amor e pertencimento ao país. Dizer que a Amazônia é
despovoada é uma maneira de invisibilizar – e isso é um apagamento proposital –
a ocupação da região por povos indígenas há milhares de anos. A Amazônia nunca
foi um espaço vazio, sempre esteve ocupada pelos povos indígenas, mas eles têm
uma outra relação com a floresta, viveram durante milhares de anos na Amazônia
em harmonia com a natureza, não precisaram destruí-la para viver ali. Os povos
indígenas são vistos pelos militares como um entrave, um obstáculo [ao que
entendem como] proteção da Amazônia.
• Entre os militares, sustenta-se a ideia
de que os Yanomami seriam uma ameaça à soberania nacional por se identificarem
como uma “nação”. Poderia explicar isso melhor, por favor?
Esse
é o argumento contra a demarcação de terras indígenas. É um debate desde o
começo da década de 1990 – a demarcação da Terra indígena Yanomami aconteceu em
1992. Dizia-se [nos meios militares] que iria se criar um enclave. E o mesmo
argumento foi usado na questão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
[homologada em 2005]. São dois casos muito emblemáticos, os argumentos não
mudaram. Por exemplo, o general Heleno [ministro-chefe do Gabinete de Segurança
Institucional, o GSI, no governo Bolsonaro] é uma figura emblemática, era
comandante militar da Amazônia na época da retirada dos ocupantes não indígenas
da Raposa Serra do Sol [em 2007]. Ele teve um embate forte com o governo, falou
publicamente contra a demarcação contínua. Eles até aceitavam que se
demarcassem algumas ilhas, mas não que houvesse demarcação de forma contígua
por conta do mesmo argumento de que iria se criar um enclave étnico ali em
Roraima.
• Quais as características do pensamento
militar sobre a Amazônia hoje? Houve alguma mudança em relação às décadas
anteriores?
Há
a visão de que as organizações não governamentais na verdade estão a serviço
das grandes potências. Que as ONGs de proteção ambiental, ao defenderem a
demarcação de terras indígenas, têm a intenção de preservar o território para
que, no futuro, outros países explorem as riquezas que ao Brasil não foi
permitido explorar. Isso tudo é muito presente. Assim como o argumento de que
“a Europa acabou com as suas florestas e quer que nós preservemos”. Como se o
fato de ter que proteger a floresta fosse um limitador do potencial que o país
teria para se desenvolver. Um exemplo recente que mostra de maneira muito
cristalina o pensamento dos militares em relação à Amazônia é o documento
“Projeto de Nação – o Brasil em 2035”, publicado pelos institutos General
Villas Bôas e Sagres em fevereiro de 2022. O trecho dedicado à Amazônia
inclusive está na parte sobre defesa nacional, e todas essas ideias
cristalizadas estão presentes ali. É interessante porque ele foi produzido
agora, durante o governo Bolsonaro – mandaram um questionário para todas as
unidades militares e elas responderam. É um documento muito revelador do que
pensam os militares dessa geração em relação à Amazônia.
• Como o pensamento militar sobre a
Amazônia se traduziu em ações durante o governo Bolsonaro?
A
influência é total, tanto que os próprios órgãos de proteção ambiental e aos
povos indígenas, como a Funai e o ICMBio, foram militarizados. Isso não é
trivial, não é uma coincidência, é um projeto. A Amazônia é vista como um lugar
para ser ocupado militarmente, e que isso é sinônimo de proteção e defesa da
região. E militarizar não é só ter um número grande de unidades militares, o
que é compreensível do ponto de vista de defesa da soberania, mas é colocar os
militares como atores centrais da gestão da Amazônia. A Amazônia Legal é
praticamente metade do território brasileiro, e os militares têm um poder
enorme na região. A gente começa a ver isso na ditadura militar, mas mesmo naquela época isso não era tão
evidente, porque o movimento de criação de unidades militares na Amazônia se
intensifica a partir do processo de redemocratização, principalmente na década
de 1990.
Os
militares desempenham, em sua visão, um papel de civilizadores, de
conquistadores da Amazônia, são os novos bandeirantes. Acham que a estão
desbravando e que são eles que a protegem. O projeto Calha Norte, por exemplo, que
começou na calha norte do rio Amazonas e agora vai até o Mato Grosso do Sul,
teve um impulso enorme no governo Bolsonaro. É um projeto de desenvolvimento
regional, mas está alocado no Ministério da Defesa justamente por essa
percepção de que desenvolvimento e segurança são binômios, inseparáveis. Além
do “integrar para não entregar”, o outro lema da época da ditadura, “segurança
e desenvolvimento”, não foi abandonado. É um lema central nos documentos de
defesa escritos desde a década de 1990. Desde então, temos um deslocamento de
unidades militares para a Amazônia, e no governo Bolsonaro vemos o movimento de
militarização de órgãos que não eram militares.
• A militarização da área ambiental sob
Bolsonaro se deu também por meio do Conselho Nacional da Amazônia Legal – que
de 2020 até o fim do governo foi liderado pelo general da reserva Hamilton
Mourão (Republicanos-RS), ex-vice-presidente da República e agora senador – e
das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) na Amazônia – Verde Brasil 1
e 2 e Sumaúma. Como você avalia essas medidas?
Os
resultados do trabalho do Conselho equivalem aos resultados do trabalho da Casa
Civil coordenando o enfrentamento à pandemia. A gente viu que não não teve
resultado. O Brasil, a partir da década de 2010, usou as operações de Garantia
da Lei e da Ordem rotineiramente para os grandes eventos e questões de
segurança pública. Mas não tinham sido usadas até então para combater crimes
ambientais. As GLOs ambientais são uma novidade que não deu certo, é só ver os
índices [de desmatamento na Amazônia, que cresceram de 2019, quando a primeira
GLO ambiental foi instituída, até 2021, de acordo com o Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais]. Na verdade, essas operações foram a solução rápida
encontrada pelo fato de os órgãos de fiscalização ambiental terem sido
desmontados. A resposta do governo Temer já era essa: quando aparecia algum
problema, chamavam-se as Forças Armadas. O presidente Bolsonaro seguiu a mesma
lógica. Ele militarizou o Ministério da Saúde e a questão ambiental.
Militarizar era um projeto. Que os militares pensavam dessa maneira em relação
à Amazônia, a gente já sabia, mas nunca havíamos tido um ministro do Meio
Ambiente que trabalhava contra o meio ambiente. Já existia essa percepção [dos
militares], mas ela não encontrava eco nos outros ministérios. A partir do
momento em que isso passou a acontecer, a tragédia ocorreu. E aí depois
novamente vêm os militares para tentar minimizar ou conter os danos de uma
política ambiental que eles endossavam. As políticas [ambientais] implementadas
durante o último governo eram consonantes com a visão que os militares tinham
de como gerir a Amazônia. Isso podemos falar com bastante tranquilidade.
• Nos registros das reuniões do Conselho
Nacional da Amazônia Legal a que tivemos acesso via Lei de Acesso à Informação,
Mourão diz que “neste século 21, a questão da sustentabilidade é um dos fatores
que influenciam a soberania”. De que maneira esse pensamento militar, que
enxerga sustentabilidade e ONGs como ameaças à soberania nacional, contribuiu
para que as verdadeiras ameaças à Amazônia não fossem combatidas nos últimos
anos?
A
Amazônia não é só brasileira, embora a maior porção da floresta esteja no
Brasil. Compartilhamos o bioma com outros países sul-americanos. Qualquer questão
ali só pode ser resolvida de forma cooperativa, tanto no nível doméstico como
internacional. E isso se rompeu no último governo. O Brasil construiu uma
reputação na agenda ambiental nos fóruns internacionais que garantia prestígio
e voz ao país nos temas ambientais. O que foi
construído por todos os governos da Nova República até o governo Temer
foi destruído, caiu como um castelo de cartas.
O
primeiro discurso que o presidente Bolsonaro fez na [Assembleia Geral da] ONU,
em 2019, já foi um indicativo de que o Brasil estava abandonando tudo que havia
construído durante décadas. Recuperou-se a ideia de querer se retirar dos
fóruns ambientais e retomar o discurso de que os países desenvolvidos querem
limitar o nosso desenvolvimento ao mesmo tempo em que se criou tensão com os
países vizinhos. Países, estes, que poderiam ser nossos parceiros nas
fronteiras amazônicas, compartilhar informação e ajudar tanto na proteção da
floresta e dos povos indígenas, como no combate aos ilícitos transnacionais e
às redes criminosas que existem ali.
Quando
o governo Temer resolveu se retirar da Unasul [União de Nações Sul-Americanas,
organização formada por doze países da região, uma das consequências foi essa.
Havia uma cooperação que vinha se intensificando entre o Brasil e outros países
amazônicos principalmente na área de defesa clássica, mas também em relação a
crimes transnacionais, e isso tudo foi deixado de lado. O governo Bolsonaro
ainda adotou uma postura hostil com a Venezuela. A diplomacia não atuou, o
Ministério do Meio Ambiente não atuou. Foi um caldeirão de questões que levaram
à tragédia que a gente viu. As ameaças que os militares consideram são
suposições.
Agora,
a tragédia Yanomami, os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips
[indigenista e jornalista britânico mortos em junho de 2022 no Vale do Javari,
no Amazonas], a devastação ambiental, temos evidências empíricas sobre isso [de
que há ameaças reais na região], e é com base nisso que as pessoas discutem,
não vão discutir com base e em fake news e em teorias da conspiração. Tem outro
fator que é uma novidade do último governo em relação aos anteriores: até o
início do governo Bolsonaro, algumas missões religiosas [internacionais] eram
vistas com desconfiança, inclusive pelas próprias Forças Armadas, como Meva
[Missão Evangélica da Amazônia], Novas Tribos [do Brasil]. Esses grupos
evangélicos não tinham permissão, por exemplo, para ter contato com povos
isolados, essa dinâmica de evangelização dos povos indígenas estava em desuso,
e essa barreira foi quebrada pelo governo Bolsonaro. Grupos que não tinham
possibilidade de atuar na região encontraram ali as portas abertas. Isso era
uma ameaça maior à Amazônia, para não falar das mineradoras e madeireiras. Se
hoje a Amazônia está mais desprotegida, é por conta das ações e omissões do
último governo.
• O governo Lula, em teoria, quer combater
a militarização da administração pública que ocorreu sob Bolsonaro. Se isso se
concretizar, qual será o lugar do pensamento militar em relação à Amazônia
daqui para frente?
Se
a Política Nacional de Defesa não for rediscutida, essas percepções não vão
mudar, porque nenhuma organização se autorreforma, ainda mais uma organização
como a militar brasileira, que teve tanta autonomia e poder durante toda a
nossa história republicana. Me preocupa um pouco que, na fala das autoridades,
não vemos a discussão sobre quais devem ser as tarefas desempenhadas pelos
militares nos próximos anos – não sobre quais devem ser as missões, estas estão
claramente colocadas na Constituição. No caso do Brasil, a oportunidade seria a
revisão dos documentos de defesa. É nesses documentos que iriam se estabelecer
as principais vulnerabilidades e ações a serem tomadas. Os militares poderiam
ter ajudado muito mais no enfrentamento da crise Yanomami, mas [vem] essa ideia
novamente de que a atuação militar na região é a panaceia. Acho que a gente tem
que superar essa maneira de ver o papel dos militares, os outros órgãos têm que
fazer o seu papel, e se cada um o fizer, os militares vão finalmente poder fazer
o papel deles, que é justamente pensar a defesa nacional.
• Como essa discussão deveria ser feita?
Tenho
defendido a criação de uma conferência nacional de defesa nos moldes das
conferências nacionais de saúde que acontecem desde a década de 1990. Para discutir
as políticas públicas que depois o governo federal pode ou não implementar.
Fala-se muito que a discussão sobre os currículos militares não pode ficar
restrita aos militares, que eles não podem ter autonomia para discutir isso. Na
verdade, eles não podem ter autonomia para definir a política de defesa. Aí,
acho que a questão da Amazônia e dos povos indígenas tem um papel central,
porque se a gente tivesse uma discussão franca que envolvesse, por exemplo,
ambientalistas e lideranças indígenas, muitas dessas desconfianças e visão
conspiratória que existem dentro da caserna seriam desfeitas. Dá para fazer,
mas precisa ter vontade política. Mas não sei se existe vontade política. Não
vejo muita nesse Ministério da Defesa.
• Nos últimos anos, vimos militares
bolsonaristas – com destaque para o general da reserva Eduardo Villas Bôas,
ex-comandante do Exército – aderindo ao negacionismo climático. Isso predomina
nos meios militares? Por que o negacionismo climático tem se disseminado nesses
ambientes?
Não
tenho como dizer a extensão desse pensamento [entre os militares]. Na verdade,
o negacionismo climático está associado a outros negacionismos, como o
eleitoral e aquele relacionado à pandemia. É uma visão desconfiada e negativa
em relação à ciência. Isso é uma novidade nos meios militares brasileiros,
porque eles sempre estiveram muito vinculados a essa ideia do positivismo, a
uma visão cientificista do mundo. No caso do general Villas Bôas e do general
Heleno, vemos claramente que eles aderiram a essa agenda negacionista, mas isso
está relacionado aos laços com a extrema direita global. Esse não é um fenômeno
só do Brasil. A extrema direita teve uma inserção nos meios militares nos
próprios Estados Unidos. Como é um fenômeno recente – não é que historicamente
as Forças Armadas brasileiras foram negacionistas –, acho que isso pode ser
revertido. Mas, novamente, não vai ser revertido sozinho, tem que ter ação e
vontade política, políticas públicas voltadas para essa reversão. Isso de fato
é uma questão muito grave. Tem parte dos militares brasileiros que não se
vacinou. Quando aquele profissional que pagamos para pegar em armas e lutar
para defender o país não está cuidando da sua própria saúde, a saúde dele não é
uma questão individual.
• De que forma o conceito de globalismo se
incorporou ao pensamento militar sobre a Amazônia nos últimos anos?
O
pensamento globalista se moldou muito bem à visão que já existia entre
militares em relação à região amazônica. Essa ideia de que existe um grande
pacto globalista que quer suprimir a soberania nacional, eles já pensavam isso.
É fato que essa teoria tem se disseminado [nos meios militares] e isso tem que
ser revertido com política pública. Todos os países democráticos olham com
muito cuidado a questão da ascensão da extrema direita, esse é um inimigo a ser
combatido.
Fonte:
Por Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública
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