O legado de Joenia
Wapichana, a primeira deputada federal indígena do Brasil
No
dia 16 de janeiro de 2023, Joenia Wapichana e nós, da sua
equipe parlamentar, tivemos um momento reservado às margens do sagrado lago
Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, local da Assembleia Geral
dos Povos Indígenas de Roraima. O lugar e a ocasião escolhidos eram simbólicos
porque foi ali que, anos atrás, o nome dela foi aprovado para concorrer às eleições
de 2018. Naquele momento, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) completava 50
anos de muita luta. E foi dessa luta que Joenia Wapichana nasceu como liderança
quando a presença das mulheres ainda era rara.
Com
a voz trêmula e emocionada, Joenia começou: “Chamei vocês aqui porque esta é a
nossa última atividade enquanto mandato. Quero agradecer pelo trabalho, pela
dedicação…”. A conversa durou uns 40 minutos, e todos falaram um pouco. Nós nos
abraçamos, sorrimos e ali fizemos a despedida de um ciclo que marcou vidas e
histórias. Sabíamos que a luta continuaria em outros espaços. Mas terminava
ali, na terra dos nossos ancestrais, o mandato da primeira mulher indígena a se
tornar deputada federal no Brasil.
·
Mas
como foi que tudo começou?
A
primeira vez que ouvi o nome de Joenia Wapichana surgir como possibilidade de
concorrer à Câmara dos Deputados foi na madrugada de 16 de março de 2014. Era
uma noite de definições e impasses durante uma assembleia indígena, e uma
liderança disse: “Vamos indicar a doutora Joenia”. Na época, ela coordenava o
departamento jurídico do CIR e respondeu: “Quem sabe em 2018?”. Guardei a
impressão de que tinha falado sem previsão política, mas não esqueci.
Em
fevereiro de 2017, seu nome foi apresentado outra vez na assembleia indígena da
região Serra da Lua, com 23 comunidades de dois municípios de Roraima, Bonfim e
Cantá, e uma população de mais de 10 mil indígenas dos povos Wapichana e
Macuxi. Joenia aceitou a indicação e começou a caminhada que a levaria ao
mandato inédito no Congresso Nacional.
Depois
da Serra da Lua, viriam apresentações em outras regiões, até a consolidação do
seu nome. Esse processo de indicação deveria ser aplicado em todas as esferas
sociais: lançar candidaturas que de fato vêm da base, têm legitimidade e
envolvem interesses coletivos, e não individuais. Quando foi indicada, Joenia
disse: “Eu não tenho dinheiro, mas tenho trabalho”. Do meio [da assembleia],
dona Tereza Macuxi, da comunidade Maturuca, mulher de expressão forte,
respondeu: “Mas Raposa Serra do Sol tem [dinheiro]”. Para nós, recurso para
fazer campanha não é propriamente dinheiro, mas recurso político, intelectual,
cultural, organizacional. Foi isso que elegeu Joenia, a começar pelos seus 22
anos de vida dedicados ao trabalho, ao compromisso e à causa indígena.
No
primeiro semestre de 2017, ela ainda não tinha partido político. Analisando o
cenário de esquerda e direita, nós nos identificamos com a Rede Sustentabilidade.
Além de ser formada por defensores da causa indígena, ambiental e social
comprometidos com um ideal político coerente com o que buscamos, a Rede foi
fundada por Marina Silva, atual
ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. E Marina é nossa mantenedora de
utopias, a principal referência política e a razão decisiva para a filiação de
Joenia.
·
Política
com damurida
O
principal opositor de Joenia era a velha prática política que, desde crianças,
era incutida em nós: “Parente não vota em parente”. No nosso caso, parente é o
termo usado para designar a nossa relação como indígenas. Para nós era claro
que a política está em tudo, nas relações sociais, culturais, econômicas.
Erguer aquele projeto em 2017 era ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade
de construção própria, legítima e original, capaz de se distanciar dos velhos
modelos e dos vícios impregnados até hoje.
Para
essa construção, atendendo ao chamado de Joenia, começamos a realizar o café
coletivo em sua casa. Cada um levava algo para comer, mas não podia faltar
damurida (comida típica à base de peixe cozido, pimenta e farinha ou beiju),
feita por Evilene Tomaz, do povo Patamona. Em um desses encontros de damurida,
Joenia nos perguntou: “E aí, gente, aceito ou não?”. Respondemos: “Sim. E
estaremos juntas”. Reunimos voluntários e construímos grupos de apoio. E assim
conseguimos colocar na rua, nas comunidades e em todo o estado, a campanha da
nossa candidata a deputada federal.
Em
janeiro de 2019, nós chegávamos a Brasília. Abençoadas pelos ancestrais, fomos
acolhidas no Santuário dos Pajés, um território indígena no Setor Noroeste da
capital federal onde é mantida a moradia do líder e pajé Santxiê Tapuya (in
memoriam), que sempre lutou contra a expansão imobiliária e a favor da
preservação desse lugar originário dos povos indígenas. É um espaço de reza, de
conexão com os ancestrais, a natureza e as manifestações culturais. E lá nos
encontrávamos com parentes indígenas nos fins de semana para apaziguar a
saudade e, claro, para comer damurida.
·
Alguns
minutos ou 500 anos?
O
de Joenia Wapichana foi um mandato diferente dos mandatos dos não indígenas,
desde a decisão de participar da disputa eleitoral até a atuação. Em suas falas
no Parlamento, Joenia costumava dizer: “Estou aqui por uma decisão de
assembleia e não por mim. Não fui eu que decidi entrar na política, foram as
comunidades indígenas que me indicaram. Partiu de uma decisão coletiva, e não
individual”.
Em
1º de fevereiro de 2019, dia da posse, presenciei sua chegada ao Congresso
Nacional. Por volta das 8 da manhã, um pequeno e representativo grupo começou a
se reunir na rua das Bandeiras. Enquanto os demais parlamentares passavam em
carrões de luxo, os apoiadores de Joenia – lideranças indígenas e amigos –
seguiam junto ao povo.
Descemos
a rampa da chapelaria do Congresso entoando cantos tradicionais. Caminhamos
junto à deputada, muito emocionada – logo ela, que por fora é muito forte, ou
precisa ser. Eu também chorei. Eram apenas alguns minutos de caminhada, mas foi
preciso mais de cinco séculos de luta para que esses passos para dentro do
Parlamento fossem possíveis.
A
imprensa nacional e internacional noticiava a posse. No plenário, Joenia jurava
defender a Constituição e os direitos indígenas. Eu me senti especialmente
agraciada porque naquele dia ela usou meu cocar – um adereço para momentos
importantes, de celebração e atos de defesa das causas coletivas. Desde então,
eu o usei poucas vezes. Ficará guardado para a memória desse ciclo, como
símbolo de luta, resistência e conquista no Parlamento.
Joenia
nunca andou só, é importante dizer. Logo no início, a deputada criou o Conselho
de Mandato, formado por amigos e parceiros indígenas e não indígenas, para
sugerir ideias, propostas e informações que contribuíssem com sua atuação no
Congresso Nacional. Foi uma ideia muito importante e bem-sucedida. Sempre que
surgiam uma pauta polêmica, um projeto anti-indígena de Bolsonaro ou outros
atos do Executivo, ela chamava uma reunião para analisar e propor
encaminhamentos. Desse coletivo participavam 93 pessoas – de antropóloga a
advogados e advogadas, passando por defensores socioambientais, representantes
de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas. Essa dinâmica vai
permanecer e, sem dúvida, será muito útil para a atuação da primeira presidenta
da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
·
Gabinete
231
Joenia
escolheu para seu gabinete o número 231, o mesmo do artigo da Constituição que
trata dos direitos indígenas. Deu certo. O espaço virou referência no segundo
andar do anexo 5 da Câmara dos Deputados e recebeu povos indígenas do Brasil
inteiro para apresentar demandas, fazer visitas, conhecer, conversar.
Na
segunda semana de mandato, a primeira comitiva a chegar foi de representantes
dos povos Guarani Mbyá e Xokleng, do município de Palhoça, em Santa Catarina.
Eles tinham ido a Brasília por causa do processo de demarcação da Terra
Indígena Morro dos Cavalos, no Supremo Tribunal Federal, e buscavam apoio.
Esperávamos dez lideranças, mas, quando vimos, eram 30. Não havia espaço para
todo mundo nem no gabinete nem na sala de reunião da deputada. Só naquele
momento descobrimos que Joenia tinha direito a um plenário para reuniões com a
estrutura necessária, com café e água para os que chegavam de longe. Foi nossa
estreia.
A
primeira vez que eu ouvi falar na “advogada de índios” foi no início dos anos
2000, durante a luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Mas
só anos mais tarde eu trabalharia com Joenia no Conselho Indígena de Roraima,
ainda sem sonhar que um dia seria testemunha de um momento histórico. Mais do
que isso, seria assessora da primeira deputada indígena do Brasil.
Muitas
vezes, engoli o choro ao acompanhar comitivas indígenas nas reuniões.
Presenciei emoções felizes e tristes de parentes. Dos 513 deputados, Joenia era
a única voz indígena que podia se fazer ouvir na tribuna. E para lá ela levou a
denúncia de muitas violações. Foi assim no caso da menina de 12 anos, vítima de
estupro e morte, denunciado pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena
(Condisi/Yanomami). Ela disse: “Hoje novamente os jornais estampam notícias de
terror que estão acontecendo com os povos indígenas. Não é na Ucrânia e na
Rússia, mas aqui no Brasil”.
·
Missão:
barrar as maldades de Bolsonaro
Uma
das primeiras realizações do mandato de Joenia Wapichana no Congresso foi a
criação da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas,
composta de 237 parlamentares (27 senadores e 210 deputados). Não foi fácil
para um grupo estreante como o nosso sair pelos corredores e reunir no mínimo
170 assinaturas. Mas conseguimos.
A
frente foi lançada em abril de 2019, em um ato ao mesmo tempo tenso e incrível
no Salão Negro da Câmara, com senadores, deputados, pessoas da sociedade civil
e de organizações indígenas. Foi o primeiro evento organizado a partir do
gabinete 231.
Já
a primeira vitória marcante dessa frente parlamentar foi o arquivamento da
Medida Provisória nº 870. Desde o início, o governo Bolsonaro pretendia levar a
Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos e repassar a atribuição de demarcação de terras indígenas para
o Ministério da Agricultura. O embate, tanto na Câmara quanto no Senado, foi
grande, mas a pressão, as estratégias e a mobilização dos povos indígenas,
indigenistas e apoiadores fizeram a diferença e a Constituição venceu.
Bolsonaro continuou atacando e em seguida apareceu com o Projeto de Lei nº 191,
que autoriza a mineração em terras indígenas. Foi engavetado.
·
A
diplomacia Wapichana
A
presença de Joenia contribuiu para que até o fim do mandato as investidas de
Bolsonaro fossem bloqueadas. Vivíamos alertas e, nos momentos mais dramáticos,
a deputada usava a “diplomacia Wapichana”, como ela costuma dizer. Ela se
referia – e ainda se refere – a enfrentar os opositores e os temas espinhosos
com uma tranquilidade firme – avançando sempre, mas sem jamais perder a calma.
Como
a única indígena e a única parlamentar da Rede Sustentabilidade na Câmara, a
ex-deputada começava a agenda às 9 da manhã e terminava à meia-noite. Sempre
que preciso, seguia até 2 ou 3 da madrugada. Joenia sempre cumpriu a agenda
legislativa nas comissões e no plenário. Não havia quem a substituísse,
principalmente nas votações de propostas e reformas. Também participava das
reuniões no gabinete, dos eventos virtuais e das muitas entrevistas.
Atender
jornalistas e intermediar entrevistas foi, para mim, uma das atribuições
gratificantes do mandato, pois, ao mesmo tempo em que exercia minha função, eu
também aprendia muito. Quando a pauta era sobre representatividade indígena no
Congresso Nacional, esta era uma das frases mais frequentes da deputada: “Posso
ser a primeira deputada federal indígena no Brasil, mas não quero ser a única
nem a última”. E isso se concretizou nas eleições de 2022, com a eleição de
três mulheres indígenas alinhadas à causa: Sonia Guajajara (PSOL-SP), Célia
Xakriabá (PSOL-MG) e Juliana Cardoso (PT-SP). Só Juliana ainda não conheço
pessoalmente.
Em
Brasília, na pandemia de covid-19
Enclausurada
em um apartamento, eu acompanhava a situação da pandemia em Roraima e no
restante do Brasil. Trabalhava de casa, entre o cuidado para não contrair o
coronavírus, o medo pelos que amava e a morte de pessoas próximas. Foram mais
de 30 notas de condolências em poucos meses, semanas, dias. A primeira morte
foi a do professor Fausto Mandulão, do povo Macuxi, morador da comunidade
indígena Tabalascada. Liderança, o professor foi pioneiro na luta em defesa de
uma educação escolar indígena específica e diferenciada.
Depois
vieram mais mortes, como a de Marcos Braga, professor e diretor do Instituto
Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima, um
dos maiores incentivadores do mandato de Joenia. Ficamos órfãs: de carisma, de
alegria, de amizade e de luta. Mas as perdas não acabavam, como a da famosa
vovó Bernaldina, do povo Macuxi, da comunidade indígena Maturuca, anciã e
detentora de saberes tradicionais.
Além
de dar amparo e conforto familiar, o mandato precisava ajudar o povo, que
sentia o abandono e a falta de assistência aumentar. O cerco ia se fechando em
torno dos indígenas. A deputada, então, acionou instituições públicas e
entidades parceiras para uma ação urgente. Foram feitas diversas reuniões
virtuais para tentar acelerar os processos e fazer com que os órgãos
responsáveis, como a Secretaria Especial de Saúde Indígena e o Ministério da
Saúde, agissem rápido.
Diante
da lentidão deliberada do governo, iniciamos uma corrida para elaborar e
aprovar o Projeto de Lei (PL) 1.142/20, de autoria da deputada Rosa Neide
(PT-MT) e com relatoria de Joenia Wapichana. O projeto garantia um Plano
Emergencial para Enfrentamento da covid-19 para povos indígenas e tradicionais,
buscando assegurar o acesso à água potável e a distribuição de cestas básicas,
materiais de higiene e limpeza – itens básicos de sobrevivência. Depois de sua
aprovação, o PL foi enviado para sanção presidencial. Jair Bolsonaro vetou 22
itens, entre eles o mais essencial: água potável.
Os
vetos produziram revolta, e de novo Bolsonaro foi derrotado. A resposta veio em
forma de aprovação da proposta. Nascia a Lei nº 14.021. Na sessão virtual do
dia 8 de julho de 2020, a deputada usou o tempo de liderança da Rede, no
plenário virtual, para expressar sua indignação com os vetos do extremista de
direita: “O presidente retirou do texto da lei inclusive a obrigatoriedade de
acesso à água potável, senhoras e senhores. Isso é grave, realmente. Nós
estamos lidando com seres humanos, com pessoas que têm os seus direitos
protegidos na Constituição, como os demais brasileiros. Nós temos as nossas
diferenças culturais, geográficas, étnicas, mas sobretudo há uma necessidade de
responder a essa situação de emergência. Não é uma situação ideológica,
tampouco de responsabilidade de um partido. Não se trata de esquerda ou
direita. Trata-se de proteger vidas”.
‘Desculpa,
mas não sou a deputada’
Nos
quatro anos em que esteve no Congresso Nacional, Joenia Wapichana teve sua
atuação reconhecida pelo prêmio Congresso em Foco, concedido pelo site de
notícias, que desde 2006 acompanha o dia a dia dos parlamentares em Brasília.
Na primeira premiação, houve uma confusão divertida: desci do Uber vestida de
vermelho e logo vi vários fotógrafos se aproximando: “Uma foto, deputada”. E
isso mesmo faltando a mim a tradicional franjinha de Joenia. Meio sem graça, tive
que ficar repetindo: “Desculpa, mas não sou a deputada”.
Essa
confusão aconteceu várias vezes. Sempre pensei que aquele ambiente não era
acostumado à presença indígena e só naquele momento começava a reconhecer nossa
existência. Nossa percepção, no Parlamento, era de que a maioria ou achava que
não existiam mais indígenas ou que todos eram iguais. Tinham a imagem de 1500,
na floresta e de tanga, congelada na cabeça. Não nos viam vestidas e na Câmara
dos Deputados, como parlamentares e servidoras. Acredito que fizemos a nossa
parte para nos fazer existir e também educar os não indígenas.
‘O
seu elevador é aquele ali’, apontou a ascensorista
Joenia
gosta de contar uma experiência vivida no elevador privativo, destinado a
parlamentares. Certo dia, ela foi abordada pela ascensorista, que lhe apontou o
elevador de visitantes: “O seu é aquele ali”. Joenia mostrou o broche de
deputada, mas a senhora não olhava para ela, apenas dizia que o elevador que
ela deveria usar era o público. Joenia insistiu, até que ela finalmente notou o
broche.
A
ascensorista, então, disse: “Desculpa, deputada. É que geralmente aqui só andam
homens”. Joenia respondeu: “A senhora é machista”. A ascensorista rebateu:
“Não, deputada. É que as mulheres, geralmente, andam de saltinhos e blazer”.
Joenia, sempre afiada, retrucou: “Nossa, a senhora é classista”. Mas a
ascensorista não conseguia aceitar: “Aqui só anda gente como a gente”.
Abismada, a deputada reafirmou: “A senhora é racista”.
Um
pouco de comida para cada filho
Joenia
Wapichana atuou incansavelmente na distribuição e na fiscalização de emendas e
recursos durante seu mandato. Sua representação em Roraima recebia os pedidos,
fazia a análise, e a decisão era coletiva, tomada a partir do debate com
lideranças indígenas, instituições públicas e outros agentes. “Dividir o
recurso é igual uma mãe que divide um pouco de comida para cada filho”, ela
costumava dizer.
Em
agosto de 2021, a inauguração da primeira Unidade Básica de Saúde (UBS) na
comunidade indígena do Campinho, na Terra Indígena Canauanim, mostrou que é
possível ter parlamentares comprometidos com políticas públicas e identificados
com a população. A imagem das crianças recebendo Joenia e segurando suas mãos,
assim como a emoção no sorriso e no olhar das pessoas, me fez lembrar a minha
infância. Mas pelo avesso. Quando eu era menina, em vez de receber
representantes indígenas, meu povo recebia políticos sem compromisso e
anti-indígenas.
Finalmente,
essa realidade foi quebrada. Joenia, nosso exemplo de mudança, era recebida com
a parixara (dança tradicional), os cantos, a defumação do maruwai (resina
utilizada pelos pajés para proteção) e muita, muita alegria.
Depois
de Brasília, a volta para a cruviana
Eu
tinha saído da minha comunidade indígena em Roraima, Malacacheta, a 37 quilômetros
da capital, Boa Vista, aos 14 anos. Fui viver em Maloca Grande. Depois de anos
superando desafios da vida urbana durante minha formação escolar, pude
participar de um mandato parlamentar e tive a oportunidade de fazer morada em
Brasília. Em 2022, por causa da eleição, deixei os corredores da Câmara dos
Deputados e a capital federal para estar perto da cruviana – o vento forte da
madrugada – e do lavrado de Roraima, nosso ecossistema único, de vegetação
aberta e importante para a conservação da nossa biodiversidade. Voltei a estar
junto de parentes indígenas, amigos e apoiadores da causa porque, mais uma vez,
era tempo de eleição.
O
território de Roraima é 46% indígena – a população, de 79 mil pessoas, inclui
dez povos, entre eles os isolados que vivem na Terra Indígena Pirititi, ainda
em processo de regularização. Mas Roraima é,
também, bolsonarista. Nas
eleições de 2022, Bolsonaro ganhou em 14 dos 15 municípios do estado e
conseguiu 76% dos votos, a maior votação entre os estados do Brasil. Isso
favoreceu a eleição e a reeleição de muitos aliados, entre eles o governador
Antonio Denarium. Apenas Uiramutã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol,
elegeu Luiz Inácio Lula da Silva.
Foram
45 dias de trabalho intenso, mas não atingimos o quociente eleitoral
necessário. Em 2018, Joenia obteve 8.491 votos. Em 2022, 11.221. Isso reflete
uma eleição limpa, justa, sem alinhamento a políticos com histórico de
corrupção e de posições anti-indígenas e antidemocráticas. Mas o desfecho não
significou o fim. Pelo contrário. Os processos eleitorais passam, mas a prática
política continua. Quem mais sofre o impacto de um exercício político sem
compromisso são as comunidades indígenas e a população sem acesso à informação
e à formação.
Em
seu último discurso na tribuna da Câmara dos Deputados, no dia 21 de dezembro
de 2022, ela disse: “Não é uma despedida, mas um até breve, porque a luta
continua”. E continuou mesmo, ao se tornar a primeira presidenta indígena da
Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Mais uma vez, Joenia Wapichana não anda
só.
Fonte:
Por Mayra Wapichana, em Sumaúma
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