Volkswagen
manteve por 12 anos fazenda com trabalho escravo no PA financiada pela ditadura
Pela primeira vez, a
cumplicidade entre empresas e a ditadura civil-militar de 1964 será objeto de
análise da Justiça. O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou em dezembro
de 2024 uma ação civil pública contra a Volkswagen do Brasil por trabalho
escravo e tráfico de pessoas, após ter tentado, por mais de um ano, um acordo
com a montadora. O pedido é para que a empresa seja condenada a assumir a
responsabilidade pelos fatos e a pagar uma indenização de R$ 165 milhões.
O caso tramita na Vara do
Trabalho de Redenção, no sul do Pará, a 190 km de Santana do Araguaia (PA),
onde era localizada a fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda
Volkswagen. O imóvel ostentava em suas porteiras a logomarca da companhia, que
manteve o empreendimento entre 1974 e 1986. A aventura da montadora no
mercado madeireiro e agropecuário foi bancada com subsídios da Superintendência
de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e financiada
pelo Banco da Amazônia S.A. (Basa).
<><> Por que
isso importa?
·
Apenas 60 anos após o início da ditadura, parte dos
responsáveis passa a responder por abusos no período de repressão militar.
Responsabilizar empresas milionárias ainda em operação no país que se
beneficiaram do regime poderia acelerar o processo de compensação histórica às
vítimas desse período.
Até o momento, além da
Volks, 14 empresas são investigadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e
pelo MPT por cumplicidade com a ditadura. Apenas um caso, que trata das
violações de direitos humanos na fábrica da montadora, em São Bernardo do Campo
(SP), resultou em um acordo que prevê o pagamento de R$ 36 milhões em
indenizações pela multinacional alemã. Parte desse dinheiro financiou
pesquisas coordenadas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da
Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp) sobre dez empresas.
Dos casos em andamento, os
ministérios públicos já se reuniram com parte das companhias investigadas, caso
do porto de Santos, mas
ainda não houve anúncio
de novos acordos. A Agência Pública contou o que foi apurado pelos pesquisadores na série Empresas Cúmplices da Ditadura.
A Fazenda Volkswagen tinha
139 mil hectares, uma área que corresponde a 90% do município de São Paulo e
15% maior que toda a cidade do Rio de Janeiro. Oficialmente, tinha 300
empregados, entre área administrativa e vaqueiros, que contavam com posto de
saúde e até um clube. A lida muito mais pesada, porém, que incluía a derrubada
da vegetação nativa para a transformação em pastagens, era realizada por
trabalhadores sem vínculo com a Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC),
subsidiária criada pela montadora para administrar seu braço
madeireiro-agropecuário, cujo diretor-presidente era o alemão Wolfgang Sauer,
que presidiu a Volks do Brasil entre 1973 e 1989.
Segundo a ação do MPT, esses
trabalhadores sem vínculo, muitos deles menores de 18 anos, eram traficados por
“gatos” (recrutadores de mão de obra, que trabalhavam diretamente para a
montadora) em vários estados, com promessas de ganhos acima do mercado, e eram
levados na caçamba de caminhonetes ou caminhões paus de arara até a fazenda,
onde eram vendidos.
Os procuradores concluíram
que a Volkswagen “praticou condutas que configuram exploração de trabalho
escravo e tráfico de pessoas” e que a multinacional, que controlava a
“subsidiária extinta, é responsável pelas violações generalizadas e
sistemáticas aos direitos humanos de centenas de trabalhadores rurais que
prestaram serviços de roçagem e derrubada na Fazenda Vale do Rio
Cristalino”.
<><> Escravidão,
comunismo e igreja na floresta
A investigação que gerou a
ação foi aberta em 2019 e baseia-se em depoimentos de pelo menos 42 vítimas e
11 testemunhas, a maioria colhida na época dos fatos pelo professor doutor
Ricardo Rezende Figueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que
foi padre durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia (PA) e integrava
a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O MPT entrevistou parte dessas pessoas e um
“gato”, que admitiu o tráfico de pessoas e a escravidão por dívida.
Esses intermediários mantinham
“cantinas”, empórios dentro das fazendas, onde os trabalhadores compravam
comida, ferramentas, calçados e lonas para montar as barracas nas frentes de
trabalho. Os valores dos produtos seriam maiores que os praticados no mercado.
Os trabalhadores relatam também que peões doentes eram tratados no local. Em
geral, recebiam injeções ou “azulão” (soro com azul de metileno) na veia e
depois eram cobrados pelo serviço.
Após o início das tarefas,
além de dormirem em barracas sem vedação, junto a animais selvagens e
peçonhentos, sem atendimento médico adequado, e lidando com o risco de malária,
endêmica, os trabalhadores recebiam remuneração abaixo do combinado no
recrutamento. A situação impedia que deixassem o local, pois, ao pedirem
para ir embora, eram informados de que deviam na cantina mais do que o saldo a
receber.
Apesar do forte esquema de
vigilância com capatazes armados contratados e a vigilância institucional da
companhia, alguns trabalhadores conseguiam fugir. Enfrentavam quilômetros de
floresta e pediam caronas nas poucas estradas que havia na época. Algumas das
vítimas encontraram o padre Ricardo, que ouvia seus relatos, anotava tudo e
depois levava as vítimas ao cartório ou à polícia para oficializar os
depoimentos.
“Nós éramos vistos pelo governo
como comunistas, terroristas, a Igreja era malvista. Como não gozávamos de
crédito por parte do Estado, algumas vezes nós levávamos os trabalhadores para
prestar depoimento em cartório ou na própria polícia”, afirmou Figueira.
<><> “Eu tinha muita
vontade de chorar”
Os depoimentos apontam
quatro casos de morte por omissão de socorro (dois trabalhadores por malária
sem tratamento adequado e dois bebês), quatro casos de trabalhadores executados
para dar exemplo aos demais, sete casos de agressões, um estupro e um
desaparecimento.
Raimundo Batista de Souza
conta que foi traficado para a Fazenda Volkswagen aos 14 anos, em 1984, junto
com os irmãos Raul e Juldemar e outros jovens de Porto Nacional (TO). “Fomos de
pau de arara num caminhão para Santana do Araguaia. Depois de uns dias de
trabalho, o gato deu a informação que eu e meus irmãos iríamos ser separados.
Entendo que eles queriam evitar que os trabalhadores que se conheciam se
unissem para reclamar das más condições”, lembra.
“Eu tinha muita vontade de
chorar; lembrava de casa, com saudade dos pais, as notícias de Raul zeraram, e
eu pensava coisa ruim. No trabalho, adoeci e consegui chegar na sede da
fazenda e me deram o tal azulão na veia, aplicado pelo cantineiro. Ficamos
[Raimundo e Juldemar] quase um mês doentes, comendo comida ruim da cantina.
Comia pouco e fiquei tão fraco que desmaiei várias vezes. Eu tremia muito”,
contou Souza em depoimento ao MPT.
“Juldemar nunca se recuperou
plenamente. Ele voltou a trabalhar um tempo, mas piorou muito e foi aposentado
e tomava remédios psiquiátricos”, finalizou o homem sobre o irmão, que morreu
em junho de 2021.
<><> História de
poucos e com pouco espaço na imprensa
Aos poucos, os relatos dos
trabalhadores que fugiam chegavam à imprensa local, depois, com o tempo,
começaram a chegar à imprensa nacional. Quando o caso estourou na imprensa
alemã é que algumas investigações começaram a avançar no Brasil, tocadas por
parlamentares de oposição à ditadura.
Em 1983, uma comissão mista
de parlamentares, jornalistas, sindicalistas e o padre estiveram na fazenda a
convite do presidente da Volks, Wolfgang Sauer, que fez uma visita ao
governador do Pará na época, Jader Barbalho, que havia mandado a Polícia Civil
do Pará investigar o caso.
Apesar da visita a convite e
do evidente medo dos trabalhadores de contarem algo mais comprometedor, os
integrantes da comitiva entrevistaram dois gatos que atuavam na
fazenda. Um deles, Francisco Andrade Chagas, o Chicô, admitiu que ele e
seu irmão, que administrava uma cantina, andavam armados e que os peões que
tentavam fugir eram amarrados e entregues à polícia, onde recebiam
“sermões”.
Os gatos ouvidos pela
comitiva se referiam aos trabalhadores como “vagabundos”. Questionado sobre a
violência utilizada para impedir que trabalhadores deixassem a fazenda, a
comitiva registrou que o então diretor da fazenda Friedrich Brügger, designado
por Sauer para acompanhar as oitivas, disse: “Não é problema meu”. Um relatório
com sugestões para coibir a violência foi elaborado, mas não há registro de que
tenham sido colocadas em prática.
Entre os mais de 50
depoimentos, há apenas dois casos de trabalhadores que conseguiram sair pela
porta da frente. Um é o de um grupo de cinco trabalhadores, recrutados
ainda adolescentes, de Luciara (MT), que inventaram ter se comprometido com um
coronel para se alistar no serviço militar. “O gato ficou assustado, pois não
queria ter um problema com o Exército”, Figueira contou à Pública.
O segundo caso é contado
pelo trabalhador João Aires da Silva, traficado para a Fazenda Volkswagen aos
17 anos. Segundo ele, um colega, Divino Ferreira Matos, conseguiu licença para
buscar tratamento para o filho recém-nascido. A mulher, cujo nome não é
mencionado, deu à luz sem ajuda médica em um brejo. A criança, conta Aires, estava
doente. O bebê acabou não resistindo. Diante da oportunidade de deixar a
fazenda, o casal acabou deixando tudo para trás, inclusive um filho de 6 anos.
A ação não conta se Divino, a esposa e o filho se reencontraram.
<><> Ditadura é
deixada de lado, mas acordo segue longe de concretizado
Apesar da intrínseca relação
entre a Volks e a ditadura e o fato de que a fazenda só existiu graças ao apoio
do governo militar, o MPT optou por não abordar diretamente o relacionamento da
montadora com a ditadura nessa ação.
“Nesse caso, como não teve
uma participação direta da ditadura em episódios de repressão e perseguição de
trabalhadores, a gente fez uma opção de não tratar sob o enfoque da ditadura,
até para evitar qualquer tipo de questionamento eventual por parte da Volks de
que esse assunto já é página virada em razão do TAC [Termo de Ajustamento de
Conduta]”, afirmou o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, um dos
autores da ação.
A Pública consultou
tanto o TAC assinado em 2020 quanto o relatório final da investigação sobre a
Volks. Nenhum dos documentos versa sobre qualquer atividade da companhia ou
subsidiárias da montadora na Amazônia.
A ação do MPT foi ajuizada
em 5 de dezembro de 2024, e o juiz Otavio Bruno da Silva Ferreira, da Vara do
Trabalho de Redenção, designou audiência de tentativa de conciliação online
para o dia 24 de janeiro e atendeu a pedido do órgão para tramitação
prioritária do processo. A Volkswagen pediu o adiamento da audiência de
conciliação, o que foi negado pelo juiz. Em 16 de dezembro, a Volks solicitou
que a Justiça do Trabalho do Pará seja declarada incompetente para atuar no
caso. O juiz cancelou a audiência de conciliação e pediu a manifestação do
MPT.
O MPT afirma ter se reunido
cinco vezes com a montadora entre 2022 e 2023 em busca de uma conciliação. Em
março de 2023, a Volks anunciou sua saída das negociações. Segundo a ação,
a montadora nega responsabilidade no que foi apurado pelo MPT e sustenta que,
ainda que os fatos fossem verdadeiros, não estariam abrangidos pelo TAC
celebrado em 2020 com MPF, Ministério Público de São Paulo (MPSP) e MPT. “O
acordo diz respeito às perseguições políticas e ideológicas a ex-trabalhadores
da empresa durante a ditadura militar, o que não se confunde com o objeto da
presente demanda”, afirma o MPT.
<><> Subsidiária já
condenada e o silêncio da Volkswagen
Em 1984, quatro dos cinco
trabalhadores de Luciara que fugiram da fazenda com o argumento de que iriam
prestar serviço militar ajuizaram uma ação trabalhista contra a CVRC. A ação
reconheceu o vínculo empregatício.
Em sua defesa, a CVRC juntou
contrato entre a fazenda e a empresa Andrade Desmatamento, do gato Chicô, com o
intuito de mostrar que os trabalhadores eram terceirizados, mas, para o MPT, o
documento serviu “para demonstrar o controle da Fazenda Volkswagen sobre o
esquema premeditado para tráfico de pessoas e exploração de trabalho escravo”.
A Justiça do Trabalho
condenou a CVRC ao pagamento de verbas trabalhistas e rescisórias, como
salários retidos em dobro, horas extras, repouso semanal remunerado, férias,
décimo terceiro, aviso prévio e que tudo fosse anotado na carteira de trabalho
dos autores da ação.
Em 1986, a fazenda foi
vendida ao grupo Matsubara, que herdou as dívidas da companhia e propôs aos
quatro trabalhadores que recebessem duas máquinas do espólio da CVRC, mas eles
rejeitaram o acordo, pois as máquinas já eram sucata. Em 1995, foi definido que
cada um dos autores receberia R$ 1.049,65 (o equivalente hoje a R$ 11,7 mil), e
a fazenda foi à penhora.
A Pública entrou
em contato com a Volkswagen com uma série de perguntas sobre a ação. A
montadora não respondeu aos questionamentos, mas confirmou ter sido
notificada. “A Volkswagen do Brasil informa que foi notificada da ação
iniciada pelo Ministério Público Federal do Trabalho, porém não comenta
processos em andamento.”
Fonte: Por Marcelo Oliveira,
da Agencia Pública
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