As mudanças
climáticas estão matando palavras e línguas
Por gerações, a família de
Lars Miguel Utsi morou na pequena cidade de Jokkmokk, no norte da Suécia, onde
a criação de renas faz parte do modo de vida local. Em uma parte do mundo onde
a maioria de nós enxergaria apenas uma imensidão de neve branca, Utsi percebe a
paisagem com detalhes.
Os sámi, o único grupo
indígena reconhecido da Europa, vivem no país há milhares de anos, e sua língua
reflete laços profundos com a terra. As nove línguas sámi ainda em uso
possuem um vocabulário extenso para neve – desde åppås, a neve intocada do inverno, sem
pegadas, até habllek, uma
neve leve e areada, parecida com pó, e tjaevi,
flocos que se grudam e são difíceis de cavar. A terminologia para descrever as
renas é ainda mais detalhada e classifica os animais conforme o sexo, idade,
cor, fertilidade e grau de domesticação.
Mas pastores de renas como
Utsi perceberam o quão rapidamente sua língua está desaparecendo com as mudanças na paisagem. Embora o
sámi do norte seja sua língua materna, ele tem plena consciência das lacunas em
seu vocabulário – palavras que parecem não passar de uma geração para
outra.
Uma palavra, em especial,
demonstra o que está em jogo: o termo ealát,
que Utsi disse poder ser traduzido livremente como “as condições ideais para que
as renas encontrem líquens para pastar”. É o tipo de palavra que resiste à
tradução – um termo complexo que implica que uma variedade de fatores se uniram
em harmonia. Mas, hoje em dia, “ela é usada cada vez menos porque não
vemos mais essas condições com tanta frequência”, disse Utsi.
Jokkmokk é um importante
centro de criação de renas na Suécia, em uma região conhecida como Sápmi, que
também abrange partes da Noruega, Finlândia e Rússia. O povo indígena sámi
dessa região é particularmente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas: cientistas afirmam que o
Ártico está aquecendo quase quatro vezes mais rápido do que o restante do mundo.
O derretimento precoce da
neve causa enchentes sazonais anormais, criando barreiras para o pastoreio e
destruindo a oferta de alimentos. Estudos apontam que, no último século, os
habitats das renas diminuíram em 70%, em parte devido a inundações artificiais
causadas por usinas hidrelétricas.
A Unesco considera as nove
línguas sámi restantes como ameaçadas de extinção. O sámi do norte é o mais
falado, com uma estimativa de 20 mil a 30 mil falantes, enquanto acredita-se que o ume sámi tenha menos de 50 falantes restantes.
Embora as causas desse
declínio sejam complexas, o desaparecimento de palavras sámi reflete a erosão
mais ampla de seu modo de vida. Pastores de renas como Utsi enfrentam,
literalmente, a falta de palavras diante das mudanças em seu ambiente, o que
sinaliza um futuro incerto: o que resta quando as coisas que você nomeia
começam a desaparecer?
·
Língua
x Idioma
Segundo o site Brasil Escola, línguas são instrumentos cuja maior finalidade é
a comunicação. Elas “pertencem aos falantes, que dela apropriam-se para
estabelecer interações com a sociedade onde vivem”.
Já os idiomas estão
associados à existência de um Estado político e identificam uma nação. No
Brasil, por exemplo, o português é o idioma oficial e está diretamente
relacionado ao povo brasileiro.
·
Conexão
entre língua e natureza
Cientistas e linguistas
descobriram uma conexão surpreendente entre a biodiversidade e as línguas.
Áreas ricas em diversidade biológica também tendem a ser ricas em diversidade
linguística (alta concentração de línguas). Embora essa coexistência ainda não
seja totalmente compreendida, uma forte correlação geográfica sugere que
múltiplos fatores (ecológicos, sociais e culturais) influenciem ambas as formas
de diversidade, que também estão em declínio em taxas alarmantes. Onde
espécies de plantas e animais estão desaparecendo, línguas, dialetos e
expressões únicas frequentemente seguem um padrão semelhante de declínio.
O Ártico pode não parecer um
núcleo de biodiversidade, como a Amazônia ou as florestas costeiras da
Tanzânia, mas desempenha um papel crucial na regulação e estabilização do clima
da Terra e no suporte à vida em nosso planeta. Cientistas costumam dizer
que “o que acontece no Ártico não fica no Ártico”, e qualquer perturbação em
seu habitat tem consequências de longo alcance para a humanidade.
As comunidades indígenas
mantêm relações profundas com as terras que ocupam há gerações, e essa conexão
íntima se reflete nas línguas que falam – na forma como descrevem a paisagem e
expressam as crenças e costumes nos quais essas línguas se desenvolveram.
Quando suas relações com a terra sofrem, suas línguas também podem ser
afetadas.
Por exemplo, Vanuatu, um
país insular no Pacífico Sul com a maior densidade de línguas do planeta (110
línguas em 12.189 km²), abriga 138 espécies de plantas e animais ameaçadas. O
país também está entre os mais vulneráveis à elevação do nível do mar e a
desastres naturais relacionados ao clima. Cientistas alertam que a crise
climática se tornou o “prego no caixão” para muitas línguas indígenas, à medida que
comunidades costeiras são forçadas a se realocar.
·
Mapeando
a diversidade do mundo
No início dos anos 1990,
enquanto ambientalistas alertavam para o alarmante declínio da biodiversidade,
a linguista ítalo-estadunidense Luisa Maffi estudava a perda das línguas do
mundo e percebeu que essas duas tendências poderiam estar conectadas.
“De repente, me ocorreu:
todas essas são formas de diversidade da vida na Terra. Diversidade na
natureza, mas também de culturas e línguas humanas. Elas estão interconectadas
e são interdependentes. Portanto, o que acontece com uma afeta a outra.”
Em 1988, o Primeiro
Congresso Internacional de Etnobiologia, realizado em Belém (PA), detectou a ligação indissociável entre
diversidade cultural e biológica. Mas foi após outra conferência, em 1995 –
onde Maffi conheceu o conservacionista David Harmon, que havia reunido dados sobre essa “crise de extinção convergente” –,
que os dois fundaram a Terralingua. A ONG foca na “diversidade biocultural”, termo que
eles popularizaram, que expressa como “biodiversidade, diversidade cultural e
diversidade linguística estão interligadas”.
Na época, dados sobre as
línguas do mundo eram difíceis de encontrar. Um dos poucos bancos abrangentes
era o The Ethnologue, que começou a catalogar línguas em 1951.
As línguas mudam rapidamente, e nem todos concordam sobre onde termina uma e
começa outra. Assim, a Terralingua criou o Índice de Diversidade Linguística, que se define
como “a primeira medida quantitativa das
tendências da diversidade linguística mundial”.
O índice revelou que, entre
1970 e 2005, a diversidade linguística global havia diminuído cerca de 20%,
sendo as línguas indígenas as mais afetadas. Esses dados, quando comparados a
informações sobre biodiversidade, revelaram uma tendência
surpreendente: as perdas linguísticas espelhavam o declínio da
biodiversidade global. O Índice Planeta Vivo, do WWF (Fundo Mundial para a
Natureza), constatou que, no mesmo período, as populações de espécies de
plantas e animais diminuíram, em média, 27%.
“Demonstramos que cerca
de três quartos das línguas do planeta são faladas em áreas de alta
biodiversidade, o que corresponde a aproximadamente um quarto da superfície
terrestre, excluindo a Antártida,” diz Larry Gorenflo, coautor do estudo e
professor da Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA).
As razões exatas por trás
das conexões entre línguas e natureza não estão totalmente claras, segundo
Gorenflo. Estudos anteriores sugeriram que áreas com um número elevado de
recursos criam diversidade linguística porque as pessoas precisam se adaptar a
ambientes mais complexos. Mas outros argumentam que isso ocorre porque
recursos mais abundantes reduzem a necessidade de compartilhamento e,
consequentemente, a necessidade de comunicação com grupos vizinhos em tempos de
escassez.
·
Mundo
tem mais de 8 mil línguas
Linguistas estimam que existam
cerca de 8.324 línguas no mundo, sendo
que, segundo o Ethnologue, 7.164 ainda são faladas
hoje. No entanto, a distribuição da população global entre essas línguas é
extremamente desigual. Mais da metade dos 8 bilhões de habitantes do planeta
fala apenas uma das 25 línguas mais comuns. A maioria das outras 7.139 línguas
tem poucos falantes. Cerca de metade de todas as línguas é falada por
comunidades com 10 mil pessoas ou menos, enquanto centenas delas têm apenas dez
ou menos falantes.
·
Línguas
e sabedoria ecológica
De acordo com Gary Simmons,
editor executivo do Ethnologue, uma língua morre aproximadamente a cada 40 dias. O linguista Kenneth Hale comparou a perda de uma única língua a “derrubar uma
bomba no Louvre”, devido à riqueza cultural e intelectual que cada uma carrega.
A taxa de extinção das línguas tende a crescer à medida que as crianças deixam
de aprendê-las e os falantes mais velhos falecem. A maioria das línguas
desapareceu sem deixar rastros, pois, ao longo da história, foram transmitidas
apenas oralmente.
No oeste do Canadá e dos
EUA, por exemplo, expressões em línguas indígenas indicam o momento ideal para a colheita de plantas
silvestres. Os povos indígenas australianos definem as estações do ano com base
na floração das árvores nativas. Os calendários tradicionais dos sámi possuem 13
meses baseados na atividade de plantas e animais em determinadas épocas do ano,
como miessemánnu (mês
do filhote de rena) e borgemánnu (mês
da troca de pelagem da rena).
·
A
língua como ferramenta de colonização
A notável concentração de
línguas nas regiões mais diversas biologicamente – especialmente nos trópicos e
áreas próximas à Linha do Equador – pode ser em parte explicada pelo papel protetor
dessas áreas selvagens contra a colonização. Historicamente, a morte de
línguas foi frequentemente impulsionada pelo colonialismo e, como argumenta Alfred Crosby em Ecological Imperialism, os colonizadores
europeus geralmente preferiam regiões temperadas, com terras planas e aráveis,
mais fáceis de ocupar e cultivar.
Nas áreas que colonizaram,
os europeus logo perceberam que a língua era crucial para sua missão. Para
dominar territórios política e economicamente, as potências colonizadoras
identificaram a necessidade de dominá-los linguisticamente também. No
início do século XX, séculos de colonialismo já haviam eliminado cerca de 20% das
línguas indígenas na Austrália, EUA, África do Sul e Argentina.
Ao erradicar as línguas
maternas dos povos colonizados, os colonizadores desconectaram as populações
locais de sua cultura, memória, identidade comunitária e relação com a terra,
que também havia sido tomada delas. “A língua, qualquer língua, tem um caráter
duplo: é um meio de comunicação e um portador de cultura”, escreveu o romancista queniano Ngũgĩ wa
Thiong’o.
Hoje, a perda de línguas
muitas vezes é consequência do que muitas pessoas em sociedades
industrializadas chamam de “progresso”: casamentos interétnicos, imposição de
línguas mais “populares” nas escolas e imigração em busca de melhores oportunidades. As
línguas indígenas se tornam difíceis de serem conservadas quando seus falantes
se integram a novas realidades e deixam de usá-las nos contextos nos quais
foram criadas.
·
Conservação
e conhecimento
Paradoxalmente, a ideia de
que os seres humanos são separados da natureza também esteve no centro da
ideologia da conservação ambiental. Durante uma viagem aos EUA em 1919, o Rei
Albert I da Bélgica visitou três dos parques nacionais do país: Yellowstone,
Yosemite e o Grand Canyon. Poucos anos antes, o presidente Woodrow Wilson havia
assinado a criação do National Park Service, uma agência dedicada a proteger 35
parques e monumentos nacionais. Inspirado pelo que viu nos EUA, Albert decidiu
criar seu próprio parque em 1925, no então Congo Belga, nomeado Parque Nacional
Albert. Hoje conhecido como Parque Nacional de Virunga, ele é considerado o primeiro parque nacional da África.
O conceito de “parque
nacional” surgiu do movimento conservacionista do século XIX, enraizado na
ideia de que a natureza deveria ser separada e protegida dos povos que vivem
dentro dela. As autoridades belgas alegavam que apenas 300 pessoas viviam na área do
parque, mas, na realidade, milhares de hutus e tutsis foram violentamente expulsos.
Ao longo dos anos, a
biodiversidade do parque foi ameaçada por conflitos, desmatamento, caça ilegal e exploração de petróleo e gás, enquanto
seu modelo de conservação “fortaleza” – que
mantém ambientes intocados pela influência humana – foi criticado por impedir
que as populações locais acessassem seus próprios recursos naturais.
·
A
preservação da língua como conservação
Para Luisa Maffi, a
abundância de línguas, culturas e biodiversidade em uma região são elementos
interdependentes. Dessa forma, preservar as línguas do mundo também pode
ser considerado uma ferramenta essencial no combate à crise climática.
No Havaí, a tartaruga-verde,
ou honu – uma espécie ameaçada protegida por leis federais dos EUA –, sempre
foi um símbolo poderoso de cultura, representando
sabedoria, proteção e orientação espiritual. Na crença tradicional havaiana, o
honu é um ‘aumakua, um deus pessoal ou familiar, ou um ancestral deificado.
Muitos ‘aumakua são animais, mas também podem ser plantas – uma tradição que
lembra a forma como os Lakota veem outros seres vivos como “parentes”.
Além dessas tradições, a
língua havaiana é fundamental para a identidade da ilha. No entanto, ambas sofreram uma queda devastadora no século XX: as populações de honu despencaram devido à caça excessiva, enquanto a
língua havaiana quase desapareceu sob uma lei que determinava o inglês como
única língua de instrução em todas as escolas públicas e privadas até
1987. Durante esse período, estudantes eram punidos e humilhados por falar
havaiano.
Nas últimas décadas, porém,
ambos se tornaram centrais para a revitalização da cultura havaiana. As
populações de honu vêm crescendo 5% ao ano nos últimos 20 anos, enquanto o número
de falantes de havaiano aumentou dramaticamente (de 1.500 em 1980 para 18.000
em 2016), graças a programas educacionais e à transmissão do idioma para as
novas gerações.
·
A
importância do multilinguismo
Linguistas preveem que entre
50% e 90% das línguas do mundo desaparecerão até o final deste século. O fato de
estudantes com mais anos de escolaridade estarem mais propensos a perder sua
língua materna indica que esse rápido declínio está enraizado em uma
mentalidade monolíngue. Embora o multilinguismo seja a experiência humana
dominante (cerca de 60% da população mundial fala mais de um idioma), muitos
países se enxergam como estados-nação monolíngues, onde uma única língua é
considerada essencial para preservar a identidade nacional.
“A ideia não apenas de
unidade nacional, mas também de unidade e uniformidade linguística, veio com a
criação do estado-nação na era moderna. Precisamos combater a ideia de que
o multilinguismo é um inimigo”, diz Luisa Maffi.
Fonte: Por Julia Webster Ayuso em
Noema Magazine/Agencia Pública
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