terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 O modus esperneandi de pessoas brancas e a ilusão de uma zona livre de raça

“Como transformar tudo numa pauta racial” é uma frase recorrente na boca das pessoas brancas, sempre que racializamos qualquer assunto, pois, ainda se acredita numa zona livre das questões raciais. “Relaxa, militante!”, dizem os que podem se dar ao luxo de tal façanha. Este incômodo não parte somente da direita e da extrema-direita brasileira, a esquerda também tem se mostrado bastante agressiva desde que o tema ganhou força e impôs-se no debate público. E, como diz o meu colega escritor, Pedro Gontijo, homem branco, sobre a sua própria raça, o modus esperneandi está operante, das mais diversas formas.

Conceição Evaristo, uma das escritoras mais importantes do nosso tempo, numa entrevista, conta que estudou na mesma escola pública que Frei Beto, escritor, jornalista e religioso, em Belo Horizonte. Ela lembra que ele fala da escola, da qualidade do ensino e, sobretudo, que não via racismo na instituição. Evaristo, por sua vez, o via claramente. O religioso, homem branco, vem de uma família de classe média, ela, mulher negra, da favela. Eis um trecho da sua fala: “No térreo, ficavam as salas arejadas, com janelas grandes que davam para a rua. No porão, com pouca ventilação, quem tinha problemas de aprendizagem e trazia na pele uma negra-cor”.

A partir das duas visões, de um mesmo espaço e dinâmica, podemos concluir que não existe somente lugar de fala, mas lugar de ver o mundo. E brancos, que não veem com os nossos olhos, têm a mania de deslegitimar o que não conseguem ver, por opção ou alienação. Para mostrar aos incomodados como tudo virou pauta social, trago algumas pesquisas interessantes e, quem sabe é possível identificar esta zona “livre” de racismo que tanto reivindicam.

O professor brasileiro de psicologia, Cícero Roberto Pereira, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no texto intitulado Será que dedicamos o mesmo tempo a pessoas brancas e negras? publicado na revista Publico.pt, conclui, a partir de estudos, que pessoas brancas investem mais tempo formando impressões sobre pessoas brancas do que sobre negras. Nas interações sociais, isto tem impactos profundos, por exemplo, numa entrevista de trabalho, no tempo e no interesse pelo candidato, na qualidade de uma consulta médica, etc. O pesquisador diz que os resultados são os mesmos em Portugal e no Brasil e chama este fenômeno de “enviesamento intergrupal no investimento de tempo.”

Num artigo intitulado Infância, Raça e Paparicação, Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz, a partir de uma pesquisa com crianças de uma creche, na idade de três anos, concluem que as brancas (sobretudo loiras) recebem mais afeto, atenção e cuidado das educadoras do que as negras. As primeiras são recorrentemente acalmadas, colocadas no colo, elogiadas, enquanto as crianças negras, mesmo quando choram ou fazem exatamente as mesmas coisas que as outras, são xingadas e estigmatizadas com palavras como “furacão”, “difícil”, etc. Crianças brancas são chamadas de “princesas”, “anjos”, dentre outros adjetivos. Até mesmo o suor das crianças negras era tratado como algo nojento e, gestos de afastamento daquele corpo, eram recorrentes entre as profissionais. Logo, desde a infância, a distribuição de afetos difere nas instituições de ensino baseado no fator fenótipo (raça no Brasil).

No meu artigo com a psicóloga Vanessa Diniz, A Infantilização de Mulheres brancas: dispositivo de raça, gênero e classe na construção de subjetividades, publicado no Periódico Teoria e Cultura, discutimos como o entrelaçamento dos marcadores sociais forja subjetividades. Mulheres brancas, sobretudo das camadas médias e altas, superprotegidas, que recebem demasiada atenção devido ao fenótipo, crescem com a imagem de si que as possibilitam jogar no jogo das relações. A infantilização é uma forma de mobilizar atenção, empatia, cuidado e outros afetos, mesmo na idade adulta. Do mesmo modo que, para mulheres negras, desde pequenas, a adultização, o estereótipo da “guerreira”, “forte”, influenciam a postura no mundo, a saber, daquelas que cuidam e jamais são cuidadas. Dados do relatório Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood (Infância Interrompida: O Apagamento da Infância de Crianças Negras, em tradução livre), do Georgetown Law Center on Poverty and Inequality, mostram que meninas negras são vistas como menos inocentes que meninas brancas.

“Ah, a minha percepção da realidade é só minha, não tem nada a ver com raça”. A Associação Americana de Psicologia publicou, em 2017, os resultados de uma pesquisa com corpos de homens brancos e negros e, para a maioria dos pesquisados, o corpo do homem negro, embora do mesmo tamanho e peso que aquele do homem branco, parecia maior para as pessoas. John Paul Wilson, um dos pesquisadores da Universidade de Montclair, nos Estados Unidos, disse a respeito: “Homens negros desarmados têm uma probabilidade desproporcionalmente maior de serem baleados e mortos pela polícia, e muitas vezes esses assassinatos são acompanhados de explicações que citam o tamanho físico da pessoa baleada”. Logo, o que pessoas brancas veem, não é exatamente o que está ali, pois, o olho é biológico, mas o olhar é social. Basta prestar atenção no método de reconhecimento facial como prova de crimes, onde brancos não sabem distinguir um corpo negro do outro e inúmeros inocentes são presos apenas baseado na descrição de um olhar branco.

E, não é somente no espaço público que a diferença se constrói, no livro The Color of Love: Racial Features Stigma and Socialization in Black Brazilian Families (A cor do amor: Caraterísticas Raciais, Estigma e Socialização em Famílias Negras Brasileiras), a pesquisadora afro-americana Elizabeth Hordge-Freeman, durante uma pesquisa de campo no estado da Bahia, conclui que, nas famílias multirraciais, a raça condiciona a distribuição de afetos e até mesmo o investimento material nos filhos. Quanto mais clara a pele e mais liso o cabelo, maior a alegria das famílias, criando traumas profundos nas crianças cujo fenótipo menos desejado é aquele do negro retinto. Existe uma hierarquia de cores nas famílias brasileiras que expõem os bebês, desde que nascem, a um olhar julgador, de aprovação ou reprovação. Nas famílias do sul, uma mulher revelou durante a apresentação do meu livro Cartas a um homem negro que amei, na Holanda, que existem técnicas usadas nas famílias para clarear o cabelo e, quando uma criança nasce loira e de olhos claros, é motivo de comemoração.

Lia Vainer, na pesquisa de doutorado intitulada Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana, traz depoimentos com pessoas brancas, reveladores das entranhas do racismo. Um homem em situação de rua revelou que a polícia batia em todo mundo, menos nele e que entrava no Shopping Center para usar o banheiro sem nenhum problema, enquanto os amigos na mesma situação não podiam. Até mesmo as esmolas eram mais generosas para ele que para os demais racializados. Uma mulher branca, gerente de empresa, revelou que, se numa entrevista de trabalho, um candidato negro e um branco empatam em nível de competência, ela escolhe o branco, por identificação. E, como a maioria dos profissionais contratados pelas empresas são brancas, sabemos o motivo de não haver diversidade nas cargas de melhores salários em nossa sociedade.

Podemos continuar na busca pela zona livre? Cida Bento aponta na mesma direção, no livro O Pacto Narcísico da Branquitude, como brancos revelaram escolher apenas brancos para promoções nas hierarquias das empresas, deixando os negros no mesmo lugar.  E isto vale para empresas privadas e públicas. Mas, quando questionados sobre racismo, estes mesmos brancos negam e alegam meritocracia. O mercado de trabalho no Brasil é todo racializado: homens brancos com os melhores salários, seguidos das mulheres brancas, dos homens negros e das mulheres negras. As posições de comando estão, ainda, nas mãos dos primeiros. Em 1964, Florestan Fernandes defendeu a tese de que o negro, nas sociedades de classes, nunca fora integrado, ficando à margem do trabalho e de outros direitos básicos. E, se voltarmos um pouco mais na história, encontraremos a causa: A escravização e a ideologia do embranquecimento da população brasileira com a chegada dos imigrantes europeus. Quando a instituição escravidão estava ruindo em muitas partes do mundo e, no Brasil, viria em 1888 oficialmente, a Lei Eusébio de Queirós, de 1850 previa: Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem.

“Ah! Mas os meus afetos são só meus, não estão contaminados por esta divisão racial!”. Vladimir Safatle em Circuitos dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo diz que os nossos afetos são políticos, logo, não existe uma zona “só minha”, sem influência da estrutura em que vivemos. O medo, por exemplo, é um afeto muito mobilizado pela extrema-direita do mundo inteiro. A comoção social, também, como aponta Susan Sontag em Diante da dor dos outros. A autora diz que não é qualquer corpo que pode ser exterminável ou sacrificável, não é todo corpo digno de luto e de comoção social, não é todo sofrimento que é naturalizado, não é toda morte ou a expectativa dela que pode ser vista sem provocar assombro: “Exibir mortos é o que fazem os inimigos”. Por isso as mortes em favelas continuam sendo vistas com normalidade.

“Ah, mas não queiram falar do meu inconsciente!” Isildinha Nogueira em A cor do Inconsciente: significações do corpo negro, mostra que o contexto histórico gera a estrutura psíquica de cada época. E, a pessoa negra “tem o seu processo de tornar-se indivíduo comprometido”, pois, “a vida psíquica dos indivíduos se faz de representações, ou seja, de figurações sociais”. E, falando em representações, até pouco tempo atrás, os filmes e telenovelas exibiam pessoas negras em imagens fixas e estereotipadas, como: a mulher negra melhor amiga da protagonista ou a doméstica, o homem negro motorista, porteiro ou criminoso. Foi esta gente chata, que vê racismo em tudo, que conseguiu o mínimo de mudança, como quando o Geledés, Instituto da Mulher Negra, escreveu uma carta de repúdio a um diretor de novela por uma cena de racismo e humilhação de negros.

No ano de 1911, o médico João Baptista Lacerda, representou o governo brasileiro no Congresso das Raças em Londres e levou a tese de que os negros, no Brasil, desapareceriam em cem anos. Ora, este genocídio, baseado na raça, foi muito bem descrito e explicado no livro de Abdias Nascimento, O Genocídio do Negro Brasileiro e continua ainda hoje com a militarização dos territórios de maior presença negra.

·        Pessoas negras ocupam os empregos de menor salário.

·        Pessoas negras ocupam as áreas com menor infraestrutura.

·        Pessoas negras são a maioria nas escolas públicas.

·        Pessoas negras são a maioria da população carcerária.

·        Pessoas negras são as maiores vítimas da violência policial.

·        Pessoas negras são as maiores vítimas de erros judiciais.

·        Pessoas negras são as mais expostas à insegurança alimentar.

·        Crianças e adolescentes negros são as maiores vítimas de morte violenta.

·        Pessoas negras e indígenas são as mais impactadas pelas ondas de calor (e da crise climática).

Bem, talvez na questão da saúde, encontraremos a zona neutra.

Mulheres negras são as maiores vítimas de violência obstétrica no Brasil. Um estudo da Fiocruz, ao analisar os registros de nascimento de quase 20 milhões de crianças entre 2012 e 2018, mostrou que as crianças negras têm mais chances de morrer do que as crianças brancas. As causas são conjuntas: falta de saneamento, fome e dificuldade de acesso ao atendimento de saúde. Dados de uma pesquisa do Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília revelam que jovens negros, do sexo masculino, entre 10 e 29 anos, têm 45% a mais de risco de suicidar-se do que jovens brancos da mesma idade.  Lembremos o dado da Organização Das Nações Unidas, que, para muitos, é somente um número: A CADA 23 MINUTOS UM JOVEM NEGRO MORRE NO BRASIL.

“Ah, só falta dizer que o racismo perpassa até as nossas escolhas amorosas! Isto não, já é demais.” Segundo dados do IBGE, 70% dos brancos preferem se casar com outros brancos. A questão interessante é que homens brancos veem mulheres negras à luz dos estereótipos de raça. Numa pesquisa feita com homens da classe A, todos brancos do Rio de Janeiro, em 2018, a pesquisadora Valéria Ribeiro Corossacz, no livro Bianchezza e mascolinità in Brasile. Etnografia di un soggetto dominante (Branquitude e masculinidade no Brasil: Etnografia de um sujeito dominante) aponta algumas falas dos entrevistados do tipo: 1.“A gente comia a empregada do meu amigo, ele convidava”, 2. “Eu nunca me relacionei com uma negra”, 3. “Se passar uma branca na rua, não me vem automaticamente de mexer com ela, mas com uma mulata, sim”. E, estas falas se traduzem em crimes como aquele da mulher negra grávida, assassinada pelo namorado branco no Amazonas, que não queria ter um filho negro, ou dos homens (também negros) que sobem na vida e procuram uma loura, como tentou explicar o escritor Joel Rufino dizendo que o homem que prospera na vida, troca um fusca por um monza, assim como uma negra por uma loura.

No Brasil, raça estrutura classe social e esta estrutura ficou quase inalterada por séculos. José Carlos Batista, na tese de doutorado, As políticas de igualdade racial nos Estados Unidos e no Brasil: constituição, diferenças e similaridade traz os seguintes dados: “Cerca de 1,4% dos brancos havia completado o ensino superior em 1960, ao passo que cerca de 11,0% o tinham feito em 1999. Para os negros, o percentual era quase zero em 1960 e somente 2,6% haviam completado o ensino superior em 1999”. Não fossem as políticas públicas como as Quotas Raciais e Sociais, o Prouni, jamais teríamos conseguido reverter estes dados. Resta ainda o racismo no mundo do trabalho depois dos estudos e alta concentração de riqueza.

Por fim, deixo um trecho do grande intelectual Clovis Moura sobre a especificidade do racismo brasileiro: “O racismo brasileiro age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos.” Para brancos e brancos que vivem na ilusão de uma zona livre, podem continuar esperneando, pois continuaremos mostrando.

 

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