INJUSTIÇA CLIMÁTICA: Clima e capital
Quais os diagnósticos
em disputa no debate sobre a mudança climática? No que diz respeito às relações
Norte-Sul, vemos culpar-se ora “o Sul” ora “o Norte”. Ou seja, de um lado, um
neo-malthusianismo conservador que culpa o crescimento da população nos países
menos industrializados versus, de outro, o desenvolvimentismo de países menos
industrializados, que alega ser reduzida a “pegada ecológica” do Sul global com
relação às voluminosas emissões dos países mais ricos.
No seio mesmo dos
países menos desenvolvidos, os agentes das grandes corporações culpam os pobres
por “travar o desenvolvimento” e impedir as barragens de energia dita “limpa”.
Críticos do capitalismo extrativo, por sua vez, acusam os ricos de todo o mundo
por usar muita energia para consumo de luxo e as coalizões desenvolvimentistas
do Sul por promoverem a exportação de commodities que embutem energia barata,
água, áreas desmatadas e fertilidade do solo para as economias do Norte. Os
críticos do modelo energético-intensivo apontam também o dedo para os capitais
que controlam a indústria de combustíveis fósseis; destaca-se o modo como,
quando ocorrem catástrofes climáticas, os pobres pagam o preço dos lucros do
capitalismo fóssil e do consumismo dos ricos.
No caso do furacão
Katrina, em 2005, por exemplo, ficou claro que as comunidades negras de baixa
renda de Nova Orleans pagaram os custos da concentração dos recursos públicos
no financiamento da invasão do Iraque; que os planos de evacuação não deram atenção
à população dita “com baixa mobilidade”, o que mostra que fatores como raça e
classe foram dimensões fundamentais daquela catástrofe. Sabe-se que na grande
seca de 1995, em Chicago, também nos EUA, os negros pobres e mais idosos,
socialmente isolados e desprovidos de recursos de mobilidade, foram vítimas
fatais.
Pesquisas realizadas
no Brasil mostram como as populações de mais baixa renda, comunidades negras e
indígenas são as mais ambientalmente desprotegidas, habitando em condições
vulneráveis e sujeitas a inundações e doenças. Isto se confirmou, inclusive, na
pandemia de COVID-19, como nas enchentes do Rio Grande do Sul. Idem, no caso do
Tsunami na Ásia, dada a ausência de um plano de emergência para os países menos
desenvolvidos.
Furacões, Tsunamis e
outros desastres que provocam rupturas nas relações socioecológicas em que se
inscrevem as condições de vida e trabalho dos mais despossuídos exemplificam a
socionatureza da “injustiça climática”, expressão atmosférica da injustiça ambiental.
Pode-se supor, de forma plausível, que os agentes do poder econômico tenham com
relação aos males das mudanças climáticas previstas pelos modelos matemáticos
do IPCC, padrões de comportamento análogos ao que têm demonstrado ante as
catástrofes climáticas já até aqui ocorridas.
Seja no âmbito das
relações Norte-Sul, seja no âmbito das lutas sócio-territoriais em curso no
seio dos países industrializados ou dos menos industrializados, vemos um
processo de disputa pela apropriação do fato científico. Nas esferas políticas,
ainda parecem contar pouco as evidências do IPCC tidas como legítimas e
merecedoras de justificar mudanças nas políticas. A opinião pública, alimentada
pela grande imprensa, parece, na Europa, ter tido algum peso. Boa parte dos
governantes –à exceção dos negacionistas de extrema direita– se declaram
ecologistas desde criancinha, embora sejam fortemente pressionados pelos
agricultores a abandonar as medidas de restrição ao uso de agrotóxicos e outras
regulações ambientais.
Ou seja, há indícios
de que governantes se têm apresentado como ambientalmente preocupados apenas
quando o argumento ecológico justifica lucros para os capitais de seus próprios
países, divisas para seu equilíbrio monetário, promessas de empregos para os
eleitores ou força suplementar na trama geopolítica. Cabe lembrar que a Sra.
Thatcher converteu-se à causa ambiental, em particular a do aquecimento global,
em 1984, na qualidade de inimiga implacável das organizações sindicais dos
mineiros, atraída como foi pelas prescrições que propugnavam o fim da queima do
carvão. Há sinais de adesão a argumentos ecológicos por forças hegemônicas
quando estes parecem servir para reforçar os modelos vigentes como o do
agronegócio canavieiro, o nuclear e a hidroeletricidade, por exemplo. É disto
sintomática a enunciação por uma autoridade do setor elétrico brasileiro da
vigência de um chamado “paradoxo ambiental”, segundo o qual o “burocratismo”
dos órgãos de licenciamento ambiental fazem “com que seja mais simples produzir
energia elétrica queimando carvão e petróleo, que contribuem para o efeito
estufa, do que utilizando água”. Percebe-se aí a referência ao efeito estufa,
com o recurso a uma ameaça de multiplicação de usinas termoelétricas, para
buscar enfraquecer o já débil sistema de licenciamento ambiental brasileiro
como para responsabilizar quilombolas, indígenas e atingidos por barragens pelo
aquecimento global, quando estes mobilizaram-se, por exemplo, para contestar as
hidrelétricas no rio Madeira.
Há, pois, por um lado,
por parte das forças hegemônicas, uma “irresponsabilidade organizada”, como
dizem certos autores, mas “classista”, caberia acrescentar: poucos recursos
são, de fato, destinados a proteger ou remediar o risco sofrido por grupos sociais
“menos móveis” –como pobres, negros e minorias étnicas– acusados como são “de
saber que moram em áreas arriscadas e de querer que os contribuintes paguem por
sua escolha residencial” (argumento usado pela grande imprensa conservadora nas
matérias pós-furacão Katrina).
Parece vigorar a
percepção confiante de que os males atingirão apenas aos mais despossuídos –uma
espécie de NIMBY, “não no meu quintal”– exclusivo das elites; ou seja,
mecanismos pelos quais os tomadores de decisão detêm os meios de se distanciar
das consequências ecológicas de suas próprias ações. Mas, mais que isso, em
tempos de liberação das forças de mercado, observa-se, mais do que nunca, uma
apropriação da denúncia ambientalista do capitalismo para fins de dinamizar o
próprio capitalismo e os negócios: após o furacão Katrina, as ações das
empresas que ganharam contratos para a limpeza e reestruturação das áreas
afetadas –as mesmas que atuaram na “reconstrução” do Iraque– elevaram-se em
10%. Nos países do Sul global, busca-se criar ativos financeiros atrelados a um
mercado de créditos de carbono que serve para justificar a continuidade do
capitalismo fóssil, subordinando comunidades tradicionais a empresas e
esverdeando o papel das periferias na reprodução do capitalismo extrativo tal
como o conhecemos.
Pesquisadores
mostraram como a expansão imobiliária no sudoeste dos EUA e na Baixa Califórnia
comercializou milhares de quilômetros quadrados na frágil ecologia dos
desertos, apostando no aumento tendencial dos custos da água e em sua
dessalinização para abastecer a suburbanização descontrolada que o próprio
capital imobiliário promove. Ou seja, o ônus do ajuste do novo ciclo climático
e hidrológico caiu, nesta região, sobre os ombros dos grupos subalternos,
notadamente dos trabalhadores rurais imigrantes cujo fluxo para os EUA tenderia
a aumentar, justificando acusações de estarem indo “roubar a água dos
americanos”.
Esse tipo de processo
em que os custos da degradação ambiental são concentrados sistematicamente
sobre os mais despossuídos, ainda mais quando parte dos interesses dominantes
consegue auferir lucros com essa degradação, é compatível com o entendimento dos
movimentos sociais segundo os quais não haverá nenhuma iniciativa dos poderosos
para enfrentar os problemas ambientais, inclusive os climáticos, enquanto for
possível concentrar os males deles decorrentes sobre os mais pobres. Seu
corolário, portanto, é que todos os esforços devem ser concentrados na proteção
ambiental dos mais despossuídos, de modo que, interrompendo-se a transferência
sistemática dos males para eles, as elites venham a considerar seriamente a
necessidade de mudar modelos de produção e consumo.
Nesta ótica,
quilombolas, indígenas e camponeses do rio Madeira, do Tapajós e outras áreas
de expansão de projetos energéticos, agropecuários ou minerários, ao contrário
do que propugnam representantes de empreiteiras e desenvolvimentistas pouco
críticos, estariam na linha de frente do combate contra o aquecimento global,
favorecendo, por sua resistência, a busca de novos modelos de produção e
consumo de energia e uso de florestas.
Já na sua parábola da
Ética do Bote Salva Vidas, o ecólogo conservador Garret Hardin simulava uma
situação futura, segundo ele previsível, em que, dado o crescimento da
população, a “nave-Terra” deveria escolher a quem reservar os poucos lugares
disponíveis nos botes salva-vidas. Hardin sustentava ser lógico, em sua lógica
social-darwinista, reservar estes lugares àqueles que mais tenham acumulado, na
humanidade, segundo ele, tecnologia e civilização –ou seja, as populações dos
países mais industrializados. As populações menos “produtivas”, do ponto de
vista do capital, deveriam, é o que ele nos faz supor, ser deixadas ao largo. A
relutância das elites em assumir medidas compatíveis com o princípio de
precaução em matéria climática parece sugerir que a (falta de) Ética do Bote
salva-vidas encontra-se hoje em operação –seja nos bairros negros de New
Orleans, nas zonas em vias de desertificação da África ou, ainda que sob
pretensas razões ecológicas, nos processos de trabalho extenuantes observados
nos canaviais brasileiros ou nos “parques” eólicos que, em nome do clima,
desestruturam as condições de vida de povos e de comunidades tradicionais.
Fonte: Por Henri
Acselrad, no Le Monde
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