quinta-feira, 1 de agosto de 2024

INJUSTIÇA CLIMÁTICA: Clima e capital

Quais os diagnósticos em disputa no debate sobre a mudança climática? No que diz respeito às relações Norte-Sul, vemos culpar-se ora “o Sul” ora “o Norte”. Ou seja, de um lado, um neo-malthusianismo conservador que culpa o crescimento da população nos países menos industrializados versus, de outro, o desenvolvimentismo de países menos industrializados, que alega ser reduzida a “pegada ecológica” do Sul global com relação às voluminosas emissões dos países mais ricos.

No seio mesmo dos países menos desenvolvidos, os agentes das grandes corporações culpam os pobres por “travar o desenvolvimento” e impedir as barragens de energia dita “limpa”. Críticos do capitalismo extrativo, por sua vez, acusam os ricos de todo o mundo por usar muita energia para consumo de luxo e as coalizões desenvolvimentistas do Sul por promoverem a exportação de commodities que embutem energia barata, água, áreas desmatadas e fertilidade do solo para as economias do Norte. Os críticos do modelo energético-intensivo apontam também o dedo para os capitais que controlam a indústria de combustíveis fósseis; destaca-se o modo como, quando ocorrem catástrofes climáticas, os pobres pagam o preço dos lucros do capitalismo fóssil e do consumismo dos ricos.

No caso do furacão Katrina, em 2005, por exemplo, ficou claro que as comunidades negras de baixa renda de Nova Orleans pagaram os custos da concentração dos recursos públicos no financiamento da invasão do Iraque; que os planos de evacuação não deram atenção à população dita “com baixa mobilidade”, o que mostra que fatores como raça e classe foram dimensões fundamentais daquela catástrofe. Sabe-se que na grande seca de 1995, em Chicago, também nos EUA, os negros pobres e mais idosos, socialmente isolados e desprovidos de recursos de mobilidade, foram vítimas fatais.

Pesquisas realizadas no Brasil mostram como as populações de mais baixa renda, comunidades negras e indígenas são as mais ambientalmente desprotegidas, habitando em condições vulneráveis e sujeitas a inundações e doenças. Isto se confirmou, inclusive, na pandemia de COVID-19, como nas enchentes do Rio Grande do Sul. Idem, no caso do Tsunami na Ásia, dada a ausência de um plano de emergência para os países menos desenvolvidos.

Furacões, Tsunamis e outros desastres que provocam rupturas nas relações socioecológicas em que se inscrevem as condições de vida e trabalho dos mais despossuídos exemplificam a socionatureza da “injustiça climática”, expressão atmosférica da injustiça ambiental. Pode-se supor, de forma plausível, que os agentes do poder econômico tenham com relação aos males das mudanças climáticas previstas pelos modelos matemáticos do IPCC, padrões de comportamento análogos ao que têm demonstrado ante as catástrofes climáticas já até aqui ocorridas.

Seja no âmbito das relações Norte-Sul, seja no âmbito das lutas sócio-territoriais em curso no seio dos países industrializados ou dos menos industrializados, vemos um processo de disputa pela apropriação do fato científico. Nas esferas políticas, ainda parecem contar pouco as evidências do IPCC tidas como legítimas e merecedoras de justificar mudanças nas políticas. A opinião pública, alimentada pela grande imprensa, parece, na Europa, ter tido algum peso. Boa parte dos governantes –à exceção dos negacionistas de extrema direita– se declaram ecologistas desde criancinha, embora sejam fortemente pressionados pelos agricultores a abandonar as medidas de restrição ao uso de agrotóxicos e outras regulações ambientais.

Ou seja, há indícios de que governantes se têm apresentado como ambientalmente preocupados apenas quando o argumento ecológico justifica lucros para os capitais de seus próprios países, divisas para seu equilíbrio monetário, promessas de empregos para os eleitores ou força suplementar na trama geopolítica. Cabe lembrar que a Sra. Thatcher converteu-se à causa ambiental, em particular a do aquecimento global, em 1984, na qualidade de inimiga implacável das organizações sindicais dos mineiros, atraída como foi pelas prescrições que propugnavam o fim da queima do carvão. Há sinais de adesão a argumentos ecológicos por forças hegemônicas quando estes parecem servir para reforçar os modelos vigentes como o do agronegócio canavieiro, o nuclear e a hidroeletricidade, por exemplo. É disto sintomática a enunciação por uma autoridade do setor elétrico brasileiro da vigência de um chamado “paradoxo ambiental”, segundo o qual o “burocratismo” dos órgãos de licenciamento ambiental fazem “com que seja mais simples produzir energia elétrica queimando carvão e petróleo, que contribuem para o efeito estufa, do que utilizando água”. Percebe-se aí a referência ao efeito estufa, com o recurso a uma ameaça de multiplicação de usinas termoelétricas, para buscar enfraquecer o já débil sistema de licenciamento ambiental brasileiro como para responsabilizar quilombolas, indígenas e atingidos por barragens pelo aquecimento global, quando estes mobilizaram-se, por exemplo, para contestar as hidrelétricas no rio Madeira.

Há, pois, por um lado, por parte das forças hegemônicas, uma “irresponsabilidade organizada”, como dizem certos autores, mas “classista”, caberia acrescentar: poucos recursos são, de fato, destinados a proteger ou remediar o risco sofrido por grupos sociais “menos móveis” –como pobres, negros e minorias étnicas– acusados como são “de saber que moram em áreas arriscadas e de querer que os contribuintes paguem por sua escolha residencial” (argumento usado pela grande imprensa conservadora nas matérias pós-furacão Katrina).

Parece vigorar a percepção confiante de que os males atingirão apenas aos mais despossuídos –uma espécie de NIMBY, “não no meu quintal”– exclusivo das elites; ou seja, mecanismos pelos quais os tomadores de decisão detêm os meios de se distanciar das consequências ecológicas de suas próprias ações. Mas, mais que isso, em tempos de liberação das forças de mercado, observa-se, mais do que nunca, uma apropriação da denúncia ambientalista do capitalismo para fins de dinamizar o próprio capitalismo e os negócios: após o furacão Katrina, as ações das empresas que ganharam contratos para a limpeza e reestruturação das áreas afetadas –as mesmas que atuaram na “reconstrução” do Iraque– elevaram-se em 10%. Nos países do Sul global, busca-se criar ativos financeiros atrelados a um mercado de créditos de carbono que serve para justificar a continuidade do capitalismo fóssil, subordinando comunidades tradicionais a empresas e esverdeando o papel das periferias na reprodução do capitalismo extrativo tal como o conhecemos.                                                     

Pesquisadores mostraram como a expansão imobiliária no sudoeste dos EUA e na Baixa Califórnia comercializou milhares de quilômetros quadrados na frágil ecologia dos desertos, apostando no aumento tendencial dos custos da água e em sua dessalinização para abastecer a suburbanização descontrolada que o próprio capital imobiliário promove. Ou seja, o ônus do ajuste do novo ciclo climático e hidrológico caiu, nesta região, sobre os ombros dos grupos subalternos, notadamente dos trabalhadores rurais imigrantes cujo fluxo para os EUA tenderia a aumentar, justificando acusações de estarem indo “roubar a água dos americanos”.

Esse tipo de processo em que os custos da degradação ambiental são concentrados sistematicamente sobre os mais despossuídos, ainda mais quando parte dos interesses dominantes consegue auferir lucros com essa degradação, é compatível com o entendimento dos movimentos sociais segundo os quais não haverá nenhuma iniciativa dos poderosos para enfrentar os problemas ambientais, inclusive os climáticos, enquanto for possível concentrar os males deles decorrentes sobre os mais pobres. Seu corolário, portanto, é que todos os esforços devem ser concentrados na proteção ambiental dos mais despossuídos, de modo que, interrompendo-se a transferência sistemática dos males para eles, as elites venham a considerar seriamente a necessidade de mudar modelos de produção e consumo.

Nesta ótica, quilombolas, indígenas e camponeses do rio Madeira, do Tapajós e outras áreas de expansão de projetos energéticos, agropecuários ou minerários, ao contrário do que propugnam representantes de empreiteiras e desenvolvimentistas pouco críticos, estariam na linha de frente do combate contra o aquecimento global, favorecendo, por sua resistência, a busca de novos modelos de produção e consumo de energia e uso de florestas.

Já na sua parábola da Ética do Bote Salva Vidas, o ecólogo conservador Garret Hardin simulava uma situação futura, segundo ele previsível, em que, dado o crescimento da população, a “nave-Terra” deveria escolher a quem reservar os poucos lugares disponíveis nos botes salva-vidas. Hardin sustentava ser lógico, em sua lógica social-darwinista, reservar estes lugares àqueles que mais tenham acumulado, na humanidade, segundo ele, tecnologia e civilização –ou seja, as populações dos países mais industrializados. As populações menos “produtivas”, do ponto de vista do capital, deveriam, é o que ele nos faz supor, ser deixadas ao largo. A relutância das elites em assumir medidas compatíveis com o princípio de precaução em matéria climática parece sugerir que a (falta de) Ética do Bote salva-vidas encontra-se hoje em operação –seja nos bairros negros de New Orleans, nas zonas em vias de desertificação da África ou, ainda que sob pretensas razões ecológicas, nos processos de trabalho extenuantes observados nos canaviais brasileiros ou nos “parques” eólicos que, em nome do clima, desestruturam as condições de vida de povos e de comunidades tradicionais.

 

Fonte: Por Henri Acselrad, no Le Monde

 

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