Paulo
Henrique Arantes: O vácuo legal das redes sociais chega a matar
Ao receber
o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura na Universidade de
Turim, em 11 de junho de 2015, o escritor e filósofo Umberto Eco referiu-se aos
usuários das mídias sociais como “uma legião de imbecis, que antes falavam
apenas no bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. O
consagrado autor de “O Nome da Rosa” foi além: “Normalmente, eles, os imbecis,
eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um
Prêmio Nobel”. Não satisfeito, acrescentou: “O drama da internet é que ela
promoveu o idiota a portador da verdade”.
É
triste constatar a verdade absoluta na fala do escritor italiano, mas dar voz
também aos imbecis talvez seja o preço da liberdade. Quem frequenta as redes
sociais de forma ampla, em rol de “amizades” que vá além do, digamos, círculo
de convivência presencial, sabe do que se trata. Não se pode negar a mídia
social como palco revelador das faces verdadeiras: personalidades, crenças e
crendices, ódios e amores antes recolhidos são catapultados do teclado para o
mundo, satisfazendo aquele desejo de boa parcela da humanidade de se exibir.
Contudo,
essa liberdade de expressão, absoluta nas redes, não exime ninguém de crimes
como calúnia, difamação, insulto, escárnio por motivo religioso, favorecimento
da prostituição, ato ou escrito obsceno, incitação do crime, apologia ao crime,
falsa identidade, pedofilia, preconceito, discriminação ou revelação de segredo
profissional, todos descritos no Código Penal.
Mas a
amplitude do alcance a que chegaram as redes sociais obriga a Justiça e ir
além, muito além disso. O Legislativo tem o dever de aprovar uma norma
específica que puna a disseminação de fake news, arma decisiva a favorecer 10
entre 10 tiranetes no mundo. Fiquemos em dois: Trump e Bolsonaro não existiriam
politicamente sem o uso diuturno e profissionalizado de fake news em redes
sociais.
O
problema, contudo, vai muito além da política. As fake news e outros crimes de
internet, como a instigação a atitudes aberrantes e mesmo inacreditáveis,
ceifam vidas. A destruição de reputações mata. Pessoas chegam a se suicidar por
causa do alcance de crimes contra a honra em rede social.
Em
alguns casos, condena-se à morte. Assim aconteceu com a dona de casa Fabiane
Maria de Jesus, de 33 anos, residente no Guarujá. Em maio de 2014, uma foto
dela foi postada numa mídia social, junto com a acusação de sequestro de
crianças para rituais de magia negra. Informação mentirosa, boato surgido
sabe-se lá por que motivo. Fabiane foi espancada até a morte por moradores do
bairro em que morava, sem jamais ter feito nada parecido com magia negra, muito
menos usando crianças.
O
Direito só age naquilo que é exteriorizado, e nunca sobre o que está dentro do
pensamento. Qualquer ser humano, internamente, dentro de sua cabeça, já cometeu
ilícitos, preconceitos, mas isso fica restrito à nossa esfera de reflexão. Na
internet, em vez de as pessoas pensarem, elas simplesmente se manifestam. E aí
o Direito tem que ser aplicado.
E o que
dizer das campanhas eleitorais? A quantidade de mentiras disseminadas sobre
este ou aquele candidato, bem como o teor das invencionices, é assustador, como
se sabe, ainda que no último pleito eleitoral o TSE tenha atuado com firmeza
contra tais práticas.
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Jornalistas compram pelo valor de face
Não foi
hoje que os políticos perceberam a importância das redes sociais: há muito
tempo eles sabem que deixar de participar delas será um ônus. Seus perfis
acabam sendo fontes de opinião.
Quando
um senador, um deputado ou um ministro posta uma frase qualquer no Twitter, às
vezes sem a menor relevância factual, isso basta para estarem nas manchetes dos
velhos jornais quase na mesma hora, comprovando a docilidade dos jornalistas de
hoje, que invariavelmente “mordem a isca” lançada pelo político na rede social,
sem questionamento.
Esse
comportamento dos profissionais de imprensa está ligado à prática do jornalismo
declaratório. Muitos jornalistas perderam ou nunca tiveram capacidade ou
interesse de investigar e contextualizar os fatos e se satisfazem em colher
frases que provoquem outras frases, numa contínua rede de dizeres.
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A hora de criar uma doutrina nacional para defender o
Brasil na guerra da informação. Por Reinaldo Joaé Aragon Gomes
O
Brasil está sendo invadido. Não por exércitos ou mísseis, mas por plataformas
digitais estrangeiras, algoritmos que não obedecem às nossas leis e narrativas
que moldam silenciosamente os rumos da nossa sociedade. Essa invasão não usa
armas visíveis, mas compromete, todos os dias, nossa democracia, nossa
liberdade e o nosso futuro. Estamos perdendo o controle sobre o que somos e o
que podemos ser.
Sem uma
doutrina nacional de soberania informacional, corremos o risco de nos tornarmos
colônia de interesses invisíveis, onde nossas decisões, nossos dados e nossa
cultura são moldados de fora para dentro. No século XXI, a guerra híbrida não
precisa mais de tanques. Ela se dá por meio do controle das infraestruturas
digitais, da manipulação de dados, da dominação algorítmica. A soberania de um
país hoje se mede pela sua capacidade de controlar seus próprios sistemas, suas
redes, suas tecnologias. E o Brasil segue indefeso.
Soberania
informacional é soberania nacional. Ela articula três dimensões: a soberania
digital, que garante o controle sobre plataformas e redes essenciais; a
soberania de dados, que protege juridicamente as informações da nossa
população; e a soberania tecnológica, que assegura o domínio sobre as inovações
que definirão o amanhã. Estamos falhando em todas as frentes.
Essa
vulnerabilidade é fruto de uma série de negligências históricas que atravessam
governos, instituições e elites brasileiras. A sociedade civil e o meio
acadêmico, com algumas exceções, limitaram-se a análises fragmentadas sobre
desinformação eleitoral e crimes cibernéticos, sem integrar esses fenômenos em
uma visão estratégica mais ampla sobre soberania informacional. O debate ficou
restrito a questões pontuais, sem impulsionar uma mobilização nacional capaz de
articular pesquisa, diagnóstico e formulação de políticas públicas robustas.
O
Estado brasileiro foi omisso. Governos, ministérios, legisladores: todos
falharam ao não colocar a soberania informacional no centro da agenda. Perdemos
tempo e oportunidades enquanto a China, a Rússia e até a União Europeia erguiam
barreiras de proteção e desenvolviam alternativas soberanas.
As
Forças Armadas, ainda presas a paradigmas da Guerra Fria, ignoraram que a
guerra contemporânea se trava no ciberespaço. O Legislativo cedeu a lobbies. As elites
econômicas e midiáticas mantiveram-se confortavelmente submissas à lógica
colonial da dependência tecnológica. As universidades e a sociedade civil, com
raras exceções, ficaram limitadas a diagnósticos pontuais, sem construir uma
visão estratégica integrada. Chegou a hora de romper esse ciclo.
A
soberania informacional não pode mais ser periférica. Ela deve estar no centro
da polícia, da educação, da cultura e da defesa nacional. É urgente garantir
que toda infraestrutura crítica do Estado opere co tecnologias seguras,
auditáveis e sempre que possível, com código aberto. Precisamos desenvolver
nossas plataformas e investir na formação massiva em letramento digital e
pensamento crítico.
Mais o
que uma questão técnica, essa é uma batalha cultural. Estamos disputando
afetos, valores e sentidos. A desvalorização do Brasil, a ridicularização da
nossa capacidade de inovação, a internalização de um complexo de vira-lata são
armas do inimigo. Precisamos forjar uma noa narrativa, que já conhecemos: de
orgulho, de dignidade informacional e de autonomia.
A
soberania informacional é a nova fronteira da independência nacional. Cada
dado, cada rede, cada algoritmo é hoje um território em disputa. Continuar de
braços cruzados é entregar o país à manipulação e à servidão digital.
Ainda
há tempo para agir. Mas o relógio corre — e o atraso cobra caro. Cabe a nós,
sociedade brasileira, atravessar essa fronteira com coragem, com inteligência e
com o compromisso coletivo de quem não aceita viver ajoelhado diante das
plataformas. A soberania informacional é uma urgência histórica. E o Brasil só
será livre quando for, de fato, soberano.
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Quando o iPhone vira manifesto: o embate entre tarifas,
transparência e poder. Por Washington Araujo
Com
mais de quatro décadas dedicadas à administração pública e ao setor financeiro
— 18 anos no Banco do Nordeste, onde chefiei áreas estratégicas de comércio
exterior e câmbio, e 21 anos no Senado Federal, além da atividade como
professor universitário —, aprendi que as grandes mudanças econômicas nem
sempre começam com leis ou decretos. Às vezes, começam com um gesto. Em 28 de
abril de 2025, um gesto simbólico — ainda que não implementado — causou
alvoroço no coração político dos Estados Unidos: a suposta intenção da Amazon
de incluir, nos produtos vendidos, uma nota explicando o quanto das tarifas
comerciais impactava o preço final de um iPhone, por exemplo.
A Casa
Branca reagiu com virulência. A porta-voz Karoline Leavitt classificou a ideia
como “ato político hostil”, sugerindo vínculos entre Jeff Bezos e o governo
chinês, e acusou a empresa de parcialidade por não ter feito o mesmo durante o
governo Biden. Bezos, que esteve presente na posse de Trump em janeiro ao lado
de Elon Musk e Mark
Zuckerberg, virou novamente alvo — mesmo após gestos de aproximação com o novo
governo. A Amazon negou oficialmente que planejasse tal ação, mas o estrago
simbólico estava feito. A guerra comercial ganhava uma nova trincheira: a da
narrativa.
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A tarifa do “Dia da Libertação”: retórica protecionista e impacto real
A
decisão que acendeu o pavio foi a adoção, em 2 de abril de 2025, de uma tarifa
adicional de 10% sobre todas as importações acima de US$ 800. Batizada
politicamente de “tarifa do Dia da Libertação”, a medida impôs novas barreiras
a bens de consumo, peças industriais e equipamentos, atingindo países aliados
como o Brasil. As exceções foram mínimas, restritas ao Canadá e ao México,
membros do acordo USMCA.
A China
respondeu à altura, impondo tarifas de até 34% sobre produtos americanos e
restringindo a exportação de terras raras — minerais essenciais para a
indústria de eletrônicos e semicondutores. Os Estados Unidos, por sua vez,
eliminaram a isenção para encomendas de baixo valor vindas da China, Hong Kong e Macau, o que impactou diretamente
plataformas populares como Shein e Temu. Em alguns itens, as tarifas chegaram a
245%. Pequim respondeu com taxas de até 125%.
Trata-se
da maior ofensiva tarifária desde a década de 1930. Mas, diferente do discurso
de soberania econômica, o efeito real é um aumento expressivo nos preços,
retração nas margens de lucro, risco de desemprego e instabilidade global nas
cadeias de produção. O cenário deixa claro: em meio à guerra retórica, quem
sangra é a economia real.
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Demissões, reajustes e empresas sob pressão
A
United Parcel Service (UPS), maior empresa de logística dos EUA e principal
parceira da Amazon, anunciou a demissão de 20 mil funcionários. A justificativa
da CEO Carol Tomé foi clara: queda nos volumes transportados da Amazon e
necessidade de reestruturar a operação frente à nova realidade tarifária.
Outras
empresas também reagem. A rede de restaurantes Chipotle Mexican Grill, presente
em mais de 3 mil localidades nos EUA, reportou aumento nos custos operacionais.
Carnes bovinas importadas da Austrália, embalagens do Vietnã e abacates da
Colômbia e do Peru passaram a ter tarifas de 10%, o que elevou os custos da
empresa. A construção de novos restaurantes também encareceu, com prateleiras e
móveis vindos da China agora mais caros. O CFO Adam Rymer revisou para baixo as
projeções de vendas, alertando investidores para “um ambiente macroeconômico
desfavorável”.
No
setor automotivo, a Tesla, embora mantenha boa parte da produção em solo
americano, sofre na divisão de energia, dependente de baterias LFP importadas
da China. A suspensão de pedidos chineses dos modelos Model S e Model X, como
retaliação, é uma perda significativa. Elon Musk, conselheiro informal de
Trump, defendeu tarifas mais baixas nos bastidores, mas não obteve êxito.
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Setores inteiros sob efeito dominó: tecnologia, varejo, semicondutores
As
consequências não se limitam a algumas empresas. Os efeitos se espalham por
setores inteiros. A indústria automotiva enfrenta tarifas entre 10% e 25% sobre
peças e componentes, afetando empresas como General Motors e Ford, com queda
nas exportações e pressão sobre os lucros. O fundo DRIV, que reúne ações do
setor de veículos elétricos e autônomos, refletiu essa instabilidade com grande
volatilidade.
No
setor tecnológico, o fim das isenções fiscais (regime de minimis) encareceu
notebooks e smartphones. A Apple já avalia transferir parte da produção para o
Vietnã e a Índia. A HP, outra gigante, também estuda relocalização. O fundo
XLK, que representa o setor de tecnologia no mercado financeiro, apresentou
desempenho inferior ao S&P 500 em abril.
No
varejo, plataformas como Shein e Temu, voltadas ao público jovem e popular,
perderam competitividade. O Walmart, maior rede varejista americana, começou a
repassar os aumentos nos preços de roupas, brinquedos e eletrônicos. O fundo XRT,
que acompanha o setor varejista, também oscilou negativamente.
Em
semicondutores, o impacto das restrições chinesas às exportações de terras
raras foi direto. Empresas como Nvidia e Intel viram os custos subirem e os
cronogramas de produção atrasarem. O fundo SOXX, composto por ações do setor,
registrou perdas ao longo de abril.
Outro
calcanhar de Aquiles (tenhamos em conta que mesmo na mitologia Aquiles possui
apenas dois calcanhares!) da atual política econômica se revela na produção
agrícola norte-americana. Além do impacto das tarifas sobre fertilizantes,
máquinas e sementes importadas, os produtores enfrentam escassez aguda de mão
de obra. A aceleração da política de deportação de imigrantes indocumentados —
muitos dos quais eram latino-americanos e asiáticos — atingiu em cheio o setor.
Essas populações representavam parcela expressiva dos trabalhadores rurais,
encarregados da colheita em plantações espalhadas por estados como Califórnia,
Texas e Flórida. Com sua ausência, safras inteiras vêm sendo perdidas nos
campos. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, em 2024 houve um
prejuízo estimado em US$ 3,1 bilhões por alimentos que apodreceram sem serem
colhidos. Ao mesmo tempo, o trabalhador norte-americano de baixa renda resiste
a assumir esses empregos, citando a dureza das jornadas e a baixa remuneração.
Essa conjugação de tarifas e mão de obra escassa fragiliza o pilar agrícola do
país, elevando preços e acentuando a insegurança alimentar em várias regiões.
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Custos bilionários e pequenas empresas no fio da navalha
Gigantes
industriais também se manifestam. A GE Vernova, braço de energia da General
Electric, projeta um aumento de US$ 400 milhões nos custos operacionais em
2025. A Baker Hughes, especializada em serviços e equipamentos para o setor de
petróleo e gás, estima perda de US$ 200 milhões no lucro anual, e suas ações
caíram 6,4% após a divulgação desses dados.
As
operadoras AT&T e Verizon — esta última, líder em telecomunicações e
infraestrutura de rede — alertaram para o aumento nos preços de celulares,
roteadores e planos residenciais. No setor médico, a Boston Scientific,
fabricante de equipamentos cirúrgicos e cardíacos, e a Johnson & Johnson
projetam gastos adicionais de até US$ 600 milhões em dispositivos médicos.
As
pequenas empresas, no entanto, são as mais expostas. Sem acesso facilitado a
crédito, com margens reduzidas e pouca capacidade de repassar aumentos ao
consumidor, muitas enfrentam risco de falência. Representando quase metade da
força de trabalho dos EUA, seu colapso poderia ter efeitos devastadores sobre a
economia.
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ETFs, investidores e a reconfiguração global
Diante
desse cenário, investidores institucionais ajustaram suas estratégias.
BlackRock e Vanguard, duas das maiores gestoras de ativos do mundo, aumentaram
posições em setores menos expostos à guerra comercial — como saúde, software e
utilities (serviços essenciais como energia e saneamento). Também aumentaram a
exposição a ativos reais, como ouro e commodities agrícolas.
Esses
ajustes aparecem nos ETFs (Exchange Traded Funds), fundos negociados em bolsa
que replicam o desempenho de setores específicos da economia. Assim, os ETFs
funcionam como termômetros do mercado: o DRIV (veículos autônomos), XLK
(tecnologia), XRT (varejo) e SOXX (semicondutores) vêm refletindo a turbulência
causada pelas tarifas.
No
curto prazo, a continuidade da guerra tarifária deve manter essa volatilidade.
Empresas precisarão reestruturar suas cadeias produtivas, diversificar
fornecedores e investir em inovação logística. Mas nada disso acontece da noite
para o dia — e, no meio tempo, os custos sobem e os consumidores pagam mais.
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Um ambiente econômico sufocante, bem mais caro e menos cooperativo
As
tarifas implementadas em abril de 2025 representam uma inflexão histórica. A
política tarifária, usada de forma seletiva e ideológica, transforma-se em
instrumento de guerra econômica. Longe de proteger a economia nacional, ela
compromete o crescimento, agrava tensões internacionais e desorganiza cadeias
produtivas complexas e interdependentes.
A
experiência acumulada em décadas de atuação nos setores público e privado me
permite reconhecer quando uma medida econômica extrapola sua função original.
Estamos diante de uma delas. O impacto se alastra — das grandes corporações às
pequenas lojas, das prateleiras dos supermercados às decisões dos fundos de
investimento.
Na
busca por protagonismo eleitoral e poder estratégico, os Estados Unidos, hoje,
arriscam perder o que sempre foi sua maior força: a confiança do mundo em sua
estabilidade econômica e previsibilidade. Quando um iPhone vira panfleto, é
porque a política já invadiu até o bolso do consumidor.
Fonte: Brasil 247

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