Aliados
na construção de políticas de segurança alimentar e nutricional locais
Até
meados dos anos 1990, o planejamento urbano não considerava em seu rol de
problemas as questões alimentares. A alimentação era considerada um tema
essencialmente rural, associado à produção de alimentos, sendo a cidade somente
o palco do consumo. Tal paradigma, felizmente está mudando. A Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) compreende que o aumento da
população em áreas urbanas impacta ainda mais os sistemas agroalimentares:
quanto maior o número de pessoas nas cidades, maior é a exploração dos recursos
naturais. Também é nas cidades que ficam mais evidentes as problemáticas da
fome, da baixa oferta e do difícil acesso a alimentos saudáveis, especialmente
para as populações periféricas. Em um contexto de incertezas climáticas, a
produção e o consumo de alimentos também se tornam pontos preocupantes.
Tais
questões já ocupam espaço nas agendas internacionais de políticas públicas. A
superação da fome, a produção de alimentos com menor impacto ambiental e a
promoção de cidades sustentáveis, são temáticas já presentes nos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável (ODS). Além disso, em média de 300 cidades no mundo
já assinaram o Pacto de Milão sobre a Política de Alimentação Urbana, se
comprometendo com a construção, execução e aprimoramento de políticas locais
alimentares. Em nível nacional, a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional nas Cidades considera a emergência de se produzir políticas neste
âmbito, onde vivem 84,78% dos brasileiros. Lançada em 2023, a Estratégia
envolve 60 municípios urbanizados engajados em ampliar a produção, o acesso, a
disponibilidade e o consumo de alimentos adequados e saudáveis, sendo seu
enfoque as áreas urbanas periféricas e as populações em situação de
vulnerabilidade e risco social.
A
inserção das temáticas alimentares na cidade, exige repensar as políticas e o
planejamento urbano. E, principalmente, repensá-las desde uma perspectiva mais
integrada, a fim de produzir políticas públicas de segurança alimentar e
nutricional, que incitem mudanças significativas nos sistemas agroalimentares.
Isso envolve fortalecer a intersetorialidade, entendida como o diálogo e a
colaboração entre diferentes setores da administração pública, a fim de
produzir em conjunto soluções para questões comuns.
Assim
como a participação social, a intersetorialidade é um dos pilares das políticas
de segurança alimentar e nutricional, isso porque possibilita analisar a mesma
problemática de diferentes perspectivas – como da assistência social, saúde,
educação, segurança pública e outros setores. Food in all policies é um termo
em inglês que exprime justamente as possibilidades de aderência da alimentação
em políticas variadas. No setor da saúde, a promoção de uma alimentação
adequada pode fornecer subsídios para melhoria das dietas, prevenindo doenças
crônicas não transmissíveis (DCNT) e obesidade. No setor do desenvolvimento
econômico, a alimentação pode ser considerada uma alavanca para a criação de
empregos e, no setor educacional, a alimentação adequada possibilita maior foco
para aprendizagem. As áreas de meio ambiente podem contribuir com estratégias
de produção e consumo de alimentos mais sustentáveis, ao passo que o setor da
cultura pode trabalhar com a ideia de que a comida é uma forma de expressão,
gerando coesão social. Do ponto de vista da segurança nacional, é
imprescindível considerar a alimentação, especialmente em períodos de crises,
quando é preciso promover estoques de alimentos.
Nessa
linha, a elaboração, a execução e a avaliação de políticas de segurança
alimentar e nutricional de forma intersetorial tendem a ser mais efetivas, já
que alinha os objetivos e organiza as ações empenhadas pela administração
pública. Em contextos urbanos, permeados por uma diversidade de questões
envolvendo a alimentação, o setor do planejamento urbano tem a capacidade de
“conectar os pontos”, fornecendo subsídios para a governança local executar
políticas públicas inovadoras.
Curitiba
é um caso emblemático na inserção das temáticas alimentares no planejamento
urbano. Durante a década de 1980, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
de Curitiba (IPPUC) produziu instrumentos de planejamento que levavam em
consideração os problemas no acesso à alimentação nutricionalmente adequada às
populações periféricas. Também foi o setor de planejamento urbano que apontou a
necessidade de ampliar o acesso aos mercados pelos agricultores da Região
Metropolitana, melhorando o sistema de abastecimento na cidade.
A
preocupação em evidenciar estas questões no planejamento urbano permanece nas
atividades realizadas pelo Instituto, o qual também compõe, desde 2018, a
Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar de Curitiba. O IPPUC e os outros
dez órgãos da administração pública (das áreas de segurança alimentar e
nutricional, saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer e
outras), são responsáveis por colaborar no planejamento, execução e avaliação
de políticas municipais de segurança alimentar e nutricional no município. Para
além do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, produzido
intersetorialmente em Curitiba, o IPPUC produziu recentemente outros planos que
abordavam as temáticas de segurança alimentar e nutricional, sinalizando as possibilidades
em incorporar a segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano.
No
Plano Setorial de Desenvolvimento Econômico (o qual compõe o Plano Diretor
atual, com vigência de 2015 a 2025), a questão alimentar está presente em
diagnósticos, discussões e proposições de ações, mencionando a agricultura
familiar e a produção de alimentos para a capital; o perfil nutricional da
população; hábitos alimentares da população; fatores e impactos das doenças
crônicas não transmissíveis; e insegurança alimentar e nutricional. Outro plano
de destaque produzido em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente
(SMMA), é o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o qual
aponta em diversos momentos os potenciais riscos à segurança alimentar e
segurança hídrica, decorrentes das mudanças climáticas. Em outros planos,
voltados às diferentes regionais do município (caracterizados como agrupamentos
de bairros com similaridades socioeconômicas e culturais, principalmente),
foram arquitetados diversos projetos urbanísticos que aliam o acesso aos
equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional com terminais de
ônibus e espaços de lazer. Tais proposições estão associadas com demandas da
própria população – em diversos planos regionais, são solicitadas a implantação
de hortas comunitárias e são sugeridas melhorias em equipamentos. Além destes
planos, o IPPUC, em parceria com a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar
e Nutricional (SMSAN), publicou um documento intitulado “Os caminhos da comida:
o papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar”. O objetivo
da publicação é apresentar dados sobre o sistema alimentar de Curitiba, Região
Metropolitana e Litoral paranaense, fornecendo subsídios para o planejamento
urbano e regional nestes municípios. Esta publicação reforça o compromisso do
planejamento urbano em Curitiba com as pautas alimentares, tratando no
documento temas como: produção de alimentos; distribuição; comercialização;
acesso; circuitos curtos; desertos, pântanos e miragens alimentares; consumo
alimentar e desperdício de alimentos.
Ao
contrário de Curitiba e outros municípios que foram capazes de aliar a
alimentação e o planejamento urbano – como Belo Horizonte (MG), município que
estruturou políticas de segurança alimentar e nutricional pautadas na
agricultura urbana – há ainda aqueles que apresentam dificuldades em realizar
tal tarefa. Em determinados casos, as políticas de segurança alimentar e
nutricional são tratadas de forma fragmentada, concentrada em poucos setores da
administração pública, tendo baixo impacto sobre a construção de políticas e
planejamento urbano.
Existem
municípios com baixas capacidades estatais – entendidas como a aptidão do poder
público em alcançar seus fins, expressas através da implementação de políticas
públicas. Tais capacidades podem ser medidas do ponto de vista fiscal
(arrecadação de impostos, por exemplo), burocrático (presença de servidores
especializados para realizar determinadas tarefas) e pelas relações
governamentais com a sociedade civil. No caso de Curitiba, há presença de um
fundo próprio para a execução de políticas de segurança alimentar e nutricional
(resultado de uma alta arrecadação), bem como um corpo de servidores
tecnicamente aptos para engajá-las – agrupados em uma secretaria específica
para este fim, a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. O
Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional também é atuante,
coordenando conferências, coletando demandas e organizando debates com a
população e atores políticos-governamentais.
É
preciso pontuar também que a presença ou ausência das temáticas alimentares no
planejamento urbano é uma opção política. Isso desmitifica a ideia de que os
planos são ferramentas neutras. Tais documentos, que orientam a execução da
política pública, selecionam os problemas a serem abordados e suas
possibilidades de solução. Eles também consideram os contextos e limitações da
ação pública, como já pontuados no parágrafo acima.
A
importância dada ao tema na agenda política municipal é outro fator que explica
a incidência da segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano. Há
municípios que mal cumprem com os deveres firmados ao assinarem o termo de
adesão ao SISAN – não possuindo Conselhos, Câmaras Intersetoriais de Segurança
Alimentar e Nutricional e não elaborando suas políticas e planos locais de
segurança alimentar e nutricional. Estes, muitas vezes, negligenciam as
problemáticas associadas com a produção, distribuição e acesso à alimentação
por não possuírem canais de diálogo diretos com a sociedade civil ou por não
conseguirem manter um fluxo de trabalho intersetorial contínuo.
Apesar
de importante e necessária, a inclusão da alimentação em todas as políticas,
especialmente no contexto municipal e urbano, ainda é um objetivo a ser
alcançado. Para avançar em políticas públicas locais de segurança alimentar e
nutricional, é necessário o comprometimento de atores políticos e técnicos com
a pauta. Estes devem estar dispostos à
escuta e à construção conjunta das políticas com a população e entre os setores
da administração pública. Iniciativas nacionais de fortalecimento das políticas
públicas, como a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas
cidades, podem ser aliadas neste processo de promover nos municípios a
necessária interação entre planejamento urbano e a segurança alimentar e
nutricional.
Fonte:
Por Nathalie Vieira Lucion, no Le Monde

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