quinta-feira, 1 de maio de 2025

Aliados na construção de políticas de segurança alimentar e nutricional locais

Até meados dos anos 1990, o planejamento urbano não considerava em seu rol de problemas as questões alimentares. A alimentação era considerada um tema essencialmente rural, associado à produção de alimentos, sendo a cidade somente o palco do consumo. Tal paradigma, felizmente está mudando. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) compreende que o aumento da população em áreas urbanas impacta ainda mais os sistemas agroalimentares: quanto maior o número de pessoas nas cidades, maior é a exploração dos recursos naturais. Também é nas cidades que ficam mais evidentes as problemáticas da fome, da baixa oferta e do difícil acesso a alimentos saudáveis, especialmente para as populações periféricas. Em um contexto de incertezas climáticas, a produção e o consumo de alimentos também se tornam pontos preocupantes.

Tais questões já ocupam espaço nas agendas internacionais de políticas públicas. A superação da fome, a produção de alimentos com menor impacto ambiental e a promoção de cidades sustentáveis, são temáticas já presentes nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Além disso, em média de 300 cidades no mundo já assinaram o Pacto de Milão sobre a Política de Alimentação Urbana, se comprometendo com a construção, execução e aprimoramento de políticas locais alimentares. Em nível nacional, a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades considera a emergência de se produzir políticas neste âmbito, onde vivem 84,78% dos brasileiros. Lançada em 2023, a Estratégia envolve 60 municípios urbanizados engajados em ampliar a produção, o acesso, a disponibilidade e o consumo de alimentos adequados e saudáveis, sendo seu enfoque as áreas urbanas periféricas e as populações em situação de vulnerabilidade e risco social. 

A inserção das temáticas alimentares na cidade, exige repensar as políticas e o planejamento urbano. E, principalmente, repensá-las desde uma perspectiva mais integrada, a fim de produzir políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, que incitem mudanças significativas nos sistemas agroalimentares. Isso envolve fortalecer a intersetorialidade, entendida como o diálogo e a colaboração entre diferentes setores da administração pública, a fim de produzir em conjunto soluções para questões comuns. 

Assim como a participação social, a intersetorialidade é um dos pilares das políticas de segurança alimentar e nutricional, isso porque possibilita analisar a mesma problemática de diferentes perspectivas – como da assistência social, saúde, educação, segurança pública e outros setores. Food in all policies é um termo em inglês que exprime justamente as possibilidades de aderência da alimentação em políticas variadas. No setor da saúde, a promoção de uma alimentação adequada pode fornecer subsídios para melhoria das dietas, prevenindo doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e obesidade. No setor do desenvolvimento econômico, a alimentação pode ser considerada uma alavanca para a criação de empregos e, no setor educacional, a alimentação adequada possibilita maior foco para aprendizagem. As áreas de meio ambiente podem contribuir com estratégias de produção e consumo de alimentos mais sustentáveis, ao passo que o setor da cultura pode trabalhar com a ideia de que a comida é uma forma de expressão, gerando coesão social. Do ponto de vista da segurança nacional, é imprescindível considerar a alimentação, especialmente em períodos de crises, quando é preciso promover estoques de alimentos. 

Nessa linha, a elaboração, a execução e a avaliação de políticas de segurança alimentar e nutricional de forma intersetorial tendem a ser mais efetivas, já que alinha os objetivos e organiza as ações empenhadas pela administração pública. Em contextos urbanos, permeados por uma diversidade de questões envolvendo a alimentação, o setor do planejamento urbano tem a capacidade de “conectar os pontos”, fornecendo subsídios para a governança local executar políticas públicas inovadoras. 

Curitiba é um caso emblemático na inserção das temáticas alimentares no planejamento urbano. Durante a década de 1980, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) produziu instrumentos de planejamento que levavam em consideração os problemas no acesso à alimentação nutricionalmente adequada às populações periféricas. Também foi o setor de planejamento urbano que apontou a necessidade de ampliar o acesso aos mercados pelos agricultores da Região Metropolitana, melhorando o sistema de abastecimento na cidade. 

A preocupação em evidenciar estas questões no planejamento urbano permanece nas atividades realizadas pelo Instituto, o qual também compõe, desde 2018, a Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar de Curitiba. O IPPUC e os outros dez órgãos da administração pública (das áreas de segurança alimentar e nutricional, saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e lazer e outras), são responsáveis por colaborar no planejamento, execução e avaliação de políticas municipais de segurança alimentar e nutricional no município. Para além do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, produzido intersetorialmente em Curitiba, o IPPUC produziu recentemente outros planos que abordavam as temáticas de segurança alimentar e nutricional, sinalizando as possibilidades em incorporar a segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano. 

No Plano Setorial de Desenvolvimento Econômico (o qual compõe o Plano Diretor atual, com vigência de 2015 a 2025), a questão alimentar está presente em diagnósticos, discussões e proposições de ações, mencionando a agricultura familiar e a produção de alimentos para a capital; o perfil nutricional da população; hábitos alimentares da população; fatores e impactos das doenças crônicas não transmissíveis; e insegurança alimentar e nutricional. Outro plano de destaque produzido em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA), é o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o qual aponta em diversos momentos os potenciais riscos à segurança alimentar e segurança hídrica, decorrentes das mudanças climáticas. Em outros planos, voltados às diferentes regionais do município (caracterizados como agrupamentos de bairros com similaridades socioeconômicas e culturais, principalmente), foram arquitetados diversos projetos urbanísticos que aliam o acesso aos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional com terminais de ônibus e espaços de lazer. Tais proposições estão associadas com demandas da própria população – em diversos planos regionais, são solicitadas a implantação de hortas comunitárias e são sugeridas melhorias em equipamentos. Além destes planos, o IPPUC, em parceria com a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (SMSAN), publicou um documento intitulado “Os caminhos da comida: o papel do planejamento urbano na transformação do sistema alimentar”. O objetivo da publicação é apresentar dados sobre o sistema alimentar de Curitiba, Região Metropolitana e Litoral paranaense, fornecendo subsídios para o planejamento urbano e regional nestes municípios. Esta publicação reforça o compromisso do planejamento urbano em Curitiba com as pautas alimentares, tratando no documento temas como: produção de alimentos; distribuição; comercialização; acesso; circuitos curtos; desertos, pântanos e miragens alimentares; consumo alimentar e desperdício de alimentos.  

Ao contrário de Curitiba e outros municípios que foram capazes de aliar a alimentação e o planejamento urbano – como Belo Horizonte (MG), município que estruturou políticas de segurança alimentar e nutricional pautadas na agricultura urbana – há ainda aqueles que apresentam dificuldades em realizar tal tarefa. Em determinados casos, as políticas de segurança alimentar e nutricional são tratadas de forma fragmentada, concentrada em poucos setores da administração pública, tendo baixo impacto sobre a construção de políticas e planejamento urbano. 

Existem municípios com baixas capacidades estatais – entendidas como a aptidão do poder público em alcançar seus fins, expressas através da implementação de políticas públicas. Tais capacidades podem ser medidas do ponto de vista fiscal (arrecadação de impostos, por exemplo), burocrático (presença de servidores especializados para realizar determinadas tarefas) e pelas relações governamentais com a sociedade civil. No caso de Curitiba, há presença de um fundo próprio para a execução de políticas de segurança alimentar e nutricional (resultado de uma alta arrecadação), bem como um corpo de servidores tecnicamente aptos para engajá-las – agrupados em uma secretaria específica para este fim, a Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. O Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional também é atuante, coordenando conferências, coletando demandas e organizando debates com a população e atores políticos-governamentais. 

É preciso pontuar também que a presença ou ausência das temáticas alimentares no planejamento urbano é uma opção política. Isso desmitifica a ideia de que os planos são ferramentas neutras. Tais documentos, que orientam a execução da política pública, selecionam os problemas a serem abordados e suas possibilidades de solução. Eles também consideram os contextos e limitações da ação pública, como já pontuados no parágrafo acima.

A importância dada ao tema na agenda política municipal é outro fator que explica a incidência da segurança alimentar e nutricional no planejamento urbano. Há municípios que mal cumprem com os deveres firmados ao assinarem o termo de adesão ao SISAN – não possuindo Conselhos, Câmaras Intersetoriais de Segurança Alimentar e Nutricional e não elaborando suas políticas e planos locais de segurança alimentar e nutricional. Estes, muitas vezes, negligenciam as problemáticas associadas com a produção, distribuição e acesso à alimentação por não possuírem canais de diálogo diretos com a sociedade civil ou por não conseguirem manter um fluxo de trabalho intersetorial contínuo. 

Apesar de importante e necessária, a inclusão da alimentação em todas as políticas, especialmente no contexto municipal e urbano, ainda é um objetivo a ser alcançado. Para avançar em políticas públicas locais de segurança alimentar e nutricional, é necessário o comprometimento de atores políticos e técnicos com a pauta.  Estes devem estar dispostos à escuta e à construção conjunta das políticas com a população e entre os setores da administração pública. Iniciativas nacionais de fortalecimento das políticas públicas, como a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas cidades, podem ser aliadas neste processo de promover nos municípios a necessária interação entre planejamento urbano e a segurança alimentar e nutricional. 

 

Fonte: Por Nathalie Vieira Lucion, no Le Monde

 

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