Dorothy Stang, viva na memória e nas
lutas
Uma chuva fina – mas consistente – cai no Centro de
Formação São Rafael, em Anapu (PA), onde está enterrado o corpo de Dorothy
Stang. É a manhã do dia 12 de fevereiro, data que marca os 20 anos do
assassinato da missionária americana que protagonizou a luta por terra numa das
cidades que, até hoje, é das mais violentas do Brasil. Na véspera, assentados
mataram um boi para o almoço que se seguiria à missa em homenagem à memória da
freira. Eram esperadas 200 pessoas. Metade disso apareceu.
“ Há uma tentativa muito forte de apagar a memória de
irmã Dorothy”, denuncia o procurador-regional Felício Pontes numa das poucas
falas com teor político da cerimônia. “E depois de tudo que nós vimos aqui, a
pergunta que fazemos é: quem poderia querer apagar a memória de irmã
Dorothy?”
A resposta para a pergunta parece ser mais complexa do
que soa à primeira vista. Em Anapu, a força dessa presença é sentida até hoje.
Não de forma mística; é uma presença muito concreta que se mede em alqueires
conquistados à força de suor e sangue da mão de fazendeiros e grileiros.
Ao mesmo tempo, dentro dos próprios assentamentos, os
ares do conservadorismo sopram forte, segundo moradores do local. Afinal, Anapu
não é só um dos palcos principais da luta por reforma agrária no país. É também
uma cidade brasileira do agronegócio no século 21.
<><> “Anapu é do senhor Jesus”
Quem passa pela Transamazônica vindo de Marabá se
depara com lojas novinhas da DJI Agriculture, empresa chinesa de drones de
pulverização de agrotóxicos e mapeamento agrícola. Na entrada da cidade, uma
placa “Anapu é do senhor Jesus” recepciona quem chega.
Semanas antes da celebração, a Repórter Brasil noticiou a colocação
de um pano no fundo do altar da Igreja Santa Luzia, a poucos metros do Centro
São Rafael. O tecido ocultou um painel com a figura da missionária.
“Ela deixou a batata quente com a gente”, brinca a
missionária Jane Dwyer, que junto com a também religiosa Katy Webster pegou o
bastão que a morte violenta de Dorothy derrubou no chão e assumiu os trabalhos
da Comissão Pastoral da Terra na cidade. Aos 84 anos, irmã Jane – como é
conhecida em toda a parte – dá bom dia aos agricultores de Anapu por WhatsApp
pontualmente às 5 da manhã. E boa noite às 6 da tarde.
“Quando as irmãs vêm aqui, elas dormem do lado de fora.
A gente fala para elas passarem pra dentro, mas elas acham aqui mais
fresquinho”, conta Vanessa Lima, apontando para uma pequena varanda que fica na
frente da casa de madeira. Ela é uma das centenas de pessoas que chegou em
Anapu, lutou por terra e, hoje, tem um lote pra chamar de seu no assentamento
criado pelo Incra em 2022 e batizado com o nome da missionária morta.
Comento com Jane a história contada por Vanessa. “Nós
dormimos na casa de todos os agricultores”, ela responde. As missionárias
acompanham com particular atenção a situação dos assentamentos recém-criados –,
além do Dorothy Stang, Mata Verde e Mata Preta. Neles, tocam o projeto Pomares
e Florestas, para a implantação de sistemas agroflorestais, os SAFs, unindo
reflorestamento e geração de renda.
Mas também estão atentas aos locais onde os conflitos
por terra se desenrolam, como nas ocupações de terra das glebas 44 e 183.
“Nenhum pedaço de terra aqui foi ganho sem violência”, constata Jane. “Apesar
de toda essa violência dos fazendeiros, aqui nunca morreu até hoje um fazendeiro
pela mão de um trabalhador. Embora o contrário…”
<><> A luta sobreviverá, é claro
Na manhã do dia 12, irmã Jane tinha sido mordida por um
cachorro. A água do Centro Rafael tinha acabado na véspera, deixando a situação
dos banheiros impossível e atrasando o almoço. Nada disso abalava a sua
disposição. Andou de lá pra cá ao longo de toda a manhã. Conversou com
praticamente todos os presentes. É evidente que parte da memória de Dorothy
está viva em Jane. E também Katy, “a irmã Kátia”, que tem 72 anos.
A idade avançada da dupla é um dos fatores que pairam
sobre a cidade. A luta sobreviverá, é claro. Mas de que forma? Com que força?
A CPT – não só a de Anapu, tocada pelas missionárias,
mas de toda a região – foi fundamental para a conquista dos assentamentos de
terra – mais de 500 no Pará. Contudo, Jane está convicta de que, hoje, os
agricultores sabem se virar. “A gente era do computador e do telefone, hoje
não. Hoje a gente já entregou os números de telefone e o nosso pessoal liga até
para Brasília, não tem problema de autoestima aqui não.”
Ao mesmo tempo, o futuro foi forjado lá atrás. E a
memória de Dorothy Stang – ou, poderíamos dizer, seu legado – não se apaga num
piscar de olhos.
Uma das frases mais repetidas ao longo da missa em
memória da freira foi: “Dorothy está plantada; não sepultada.” Garanto que dá
para ir além: Dorothy Stang plantou muitas sementes na terra. Eudson Carlos da
Silva foi uma delas.
<><> Estradas, café e boi assado
“Eud”, como é conhecido, é um homenzarrão de 52 anos,
de semblante sério e generosidade infinita. Depois de passar dias inteiros
rodando as estradas horrorosas da cidade com jornalistas variados – dentre
eles, o fotógrafo Cícero Pedrosa e eu –, recebê-los em casa e dar janta e café,
ele passou a manhã inteira assando o boi do almoço da missa.
Mas ele não é churrasqueiro, e sim técnico em
agropecuária. Presta assistência técnica aos assentamentos atendidos pelo
Projeto Pomares e Florestas.
A família de Eudson chegou em Altamira em 1979. Vinha
de Imperatriz, no Maranhão. Seu pai não buscava o Eldorado – como tanta gente
que migrou para a Transamazônica naquela época. Veio por uma razão mais
singela: um concurso público no órgão que fiscaliza o trânsito. Chegando na
região, se empolgou com a lida na terra e deixou o cargo público de lado.
Em 1981, comprou uma propriedade em Anapu – que, então,
era um distrito da cidade de Senador José Porfírio, um ajuntamento de
comunidades esquecidas à beira da rodovia. “Aqui meu pai comprou uma terra onde
a gente ficou morando. Era no travessão do Centro de Nazaré, na comunidade de
São Sebastião, primeiro lugar onde irmã Dorothy se estabeleceu em Anapu.” Esse
encontro marcaria a vida de Eudson. “Eu conheci ela com nove anos, desde o
primeiro dia em que ela chegou.”
<><> Isolamento brutal
Pequeno, ele acompanhava a atuação da missionária.
Pergunto o que ele pensava observando as ações dela. “Olha, bastante esperança
de que um dia a nossa comunidade, a nossa região, ia melhorar.” E emenda: “A
gente sofreu muito na Transamazônica.”
A começar pelo isolamento de Anapu, que era brutal.
Eudson conta que no inverno – período que, na região, vai de novembro a meados
de maio, onde as chuvas se concentram – demorava até cinco dias para chegar em
Altamira, cidade-polo da região. Para comprar um café ou um açúcar, andava-se
até dez quilômetros. “Aí ela dizia: ‘Um dia isso vai melhorar. Nós vamos
melhorar.’”
Não só disse. Fez acontecer. O primeiro passo nessa
direção foi a formação da Associação Pioneira Agrícola da Transamazônica, com a
intenção de reunir os agricultores da região.
O primeiro projeto da associação foi comprar uma
máquina de pilar arroz. A única do tipo que existia por aquelas bandas ficava
distante das comunidades do entorno de São Sebastião. “Ela via os filhos dos
agricultores socando arroz no pilão e tinha dó de ver aquelas crianças fazerem
aquilo. Ela teve uma ideia: colocar uma máquina comunidade. Ela chamou os
agricultores chegados com ela e cada um doou quatro sacas de arroz. Ela pegou
esse arroz, levou pra Altamira e vendeu. Aí foi nos Estados Unidos, trouxe um
dinheiro de lá, arrecadado. Aí comprou uma máquina para os agricultores e botou
lá no São Sebastião.”
<><> Sacas de arroz
A ideia atraiu gente para a associação. “Quando a
máquina chegou, aqueles que não eram sócios disseram: ‘eu quero me associar
também!’ Ah, tu quer te associar? Quero. Então você vai doar também quatro
sacas de arroz pra ser sócio. E aí foi indo”.
O dinheiro da venda do arroz vindo das doações era
usado para comprar óleo e outros insumos para a máquina funcionar. Mas não
parou por aí. Eudson conta que os agricultores iam para Altamira vender não só
esse arroz pilado, como todo o resto produzido. “O milho, a galinha, vender o
porco. Era a maior peleja para ir pra Altamira, tinha que pagar caro uma
passagem de ônibus, a companhia não carregava galinha nem porco. ‘Então nós
vamos comprar um caminhão!’, ela disse”.
Para juntar o dinheiro da compra do veículo, a
associação uniu esforços de novo. O combinado era que os agricultores juntariam
metade do dinheiro e Dorothy conseguiria arrecadar a outra metade. E foi
o que ela fez. Enquanto o pessoal se mobilizava, ela voou para os Estados
Unidos. “Voltou com o dinheiro da metade do caminhão, chegou em Belém e ligou
pra turma.”
Depois do caminhão, Dorothy uniu duas pontas – mulheres
e comércio – para, de uma tacada só, dinamizar a economia comunitária e
articular grupos de discussão. “Ela disse: ‘vamos reunir as mulheres. Cada
comunidade faz um grupo de mulheres, vamos em Altamira comprar um bocado de
mercadoria, fazer uma barraquinha aqui no meio da comunidade”, lembra Eudson. A
ideia era que cada um dos grupo elegesse uma liderança que ficaria responsável
por ficar na vendinha. O dinheiro arrecadado seria usado para comprar mais
produtos em Altamira.. “Funcionou, aí foi aumentando nas comunidades da região
os grupos de mulheres.”
Na sequência, os vários grupos se articularam em um só
tendo como missão administrar um barracão, espécie de depósito comunitário.
“Ela disse: ‘não está bom porque a mulher tem que ir em Altamira comprar essa
mercadoria. Vamos juntar o dinheiro de todas as revendas, vamos comprar em
Altamira, botar num barracão – e o barracão é que vai fortalecer, vai fornecer
todas as mercadorias’. Funcionou também.”
<><> Pontes e estradas
Na memória de Eudson, irmã Dorothy não parava nunca.
Uma ideia se seguia à outra – e todas elas acabavam sendo bem-sucedidas. Nessa
época ele era novo e tudo que a missionária pensava em fazer, funcionava. “Todo
plano dela. Ela juntava a equipe dela todinha, passava dois, três dias batendo
cabeça pra botar em prática aquele plano. E dava certo.”
Jovens, como ele, eram incentivados a se reunir também.
E lutar por melhorias concretas, como pontes e estradas. “Ela sempre estava
incentivando a gente, os movimentos sociais. E, de fato, hoje, graças a Deus,
nós temos asfalto na Transamazônica. Nós temos energia na Transamazônica. Tudo
graças aos movimentos sociais – muitos deles movimentados por ela.”
A próxima ideia de Dorothy mudaria a sua vida. A
missionária queria implantar uma rede de assistência técnica para as
comunidades rurais, que não havia na região. “Quando vinha um técnico, vinha
uma vez por ano – e olhe lá! Era a coisa mais difícil. Eles passavam num
agricultor, não passavam no outro. Foi quando ela pensou em mandar uns alunos
para estudar.”
Os dois primeiros foram enviados para Fortaleza e Santa
Catarina. Eudson e outro filho de agricultores seriam os próximos, enviados a
Macapá (AP) em 1991, para estudar na Escola Família Agrícola do Pacuí. “E me
formar em técnico.” Eudson abriu a fila para muitos que seriam enviados para
outros estados com a missão de voltar e ajudar as famílias da região a se fixar
na terra com qualidade.
“Eu sempre fui um caboclo meio espoletado quando eu era
mais novo. Teve umas enroladas por lá e eu não concluí.” Em Macapá, Eudson se
casou e foi trabalhar. “Eu precisava sustentar a minha família. Tirei um pedaço
de terra pra mim e a gente ficou fazendo farinha, trabalhando com horta. Eu com
minha esposa. A gente vendia na feira do estado do Amapá.”
Voltaria a estudar nove anos depois e se formaria
técnico agropecuário em 2009. Seu retorno a Anapu se daria cinco anos depois
para ocupar uma vaga no Idecan, o Instituto de Desenvolvimento Educacional,
Cultural e Assistencial Nacional, ONG que, em Anapu, trabalhava dando
assistência técnica para dois assentamentos: o PDS Virola Jatobá, atual foco
dos conflitos na região, e o PDS Esperança, onde Dorothy foi assassinada. Durou
pouco. “Aí entrou o Michel Temer e ele cortou a assistência técnica da região.”
Restabelecido em Anapu, voltou a fazer feira. Mas
seguia em contato com os colegas que se formaram técnicos em agropecuária por
incentivo da irmã Dorothy. E pintou uma ideia: fazer um viveiro de mudas de
plantas.
Para isso, contou com Jane Dwyer e Katy Webster. “Elas
tiveram a ideia de montar um grupo. Aí nós reunimos mais outras pessoas e
montamos o viveiro.”
O viveiro é a base do projeto Pomares e Florestas, que,
no entendimento de Eudson, fecha esse ciclo da sua vida, que começou lá atrás,
quando conheceu Dorothy Stang.
No jantar servido na sua chácara, ele e a mulher,
Norma, contam que fazer feira era mais vantajoso economicamente. Mas Eudson
queria honrar o plano traçado lá atrás, voltar pra Anapu e ajudar a construir
alternativas de geração de renda para quem lutou tanto tempo por terra. Não
queria ficar na promessa, assim como Dorothy Stang nunca ficou no
discurso.
Fonte:
Por Maíra Mathias, em O Joio e o Trigo
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