Calor na
escola: 2,5 milhões de crianças estudam em locais 3°C mais quentes que as
cidades
“Tem vezes que eu começo a suar tanto na sala
de aula que chega a molhar o caderno. Eu só fico sentado no recreio, não tenho
vontade de fazer nada, por causa do calor.”
Quem diz isso é Davi, de 8
anos, estudante do 3º ano da Escola Estadual Professor José Escobar, que fica
no bairro Sacomã, em São Paulo. Sua mãe, Keila, ficou surpresa ao entender a
gravidade do calor que o filho passa no local: “Às vezes ele chega da escola
falando que não está aguentando de calor, mas eu não tinha ideia que era nesse
nível. Se eu soubesse antes, já tinha reclamado”.
Davi é um dos mais
de 2,5 milhões de crianças e adolescentes que estudam em escolas que ficam
em áreas pelo menos 3 °C mais quentes do que as cidades onde estão. Quase um
terço do total de crianças matriculadas nas 27 capitais do país está nessa
situação. É o que revelam dados extraídos pela Agência Pública de uma pesquisa recente do
Instituto Alana e do MapBiomas. Os indicadores dão a dimensão das ilhas
de calor que afetam as instituições de ensino públicas e privadas do Brasil.
A José Escobar, onde o
menino Davi estuda, fica em um local 9,25 °C mais quente do que a média de
temperatura da capital paulista, segundo a pesquisa. É a escola estadual mais
quente da cidade e a terceira mais aquecida de todo o município.
O estudo foi baseado em
medições de temperatura por satélite em 2023. Os pesquisadores compararam a
média anual dos termômetros nos pontos de localização de quase 20 mil escolas
de todas as capitais com as temperaturas das cidades onde elas se localizam.
Assim, foi estabelecido um valor que representa o desvio de temperatura de cada
escola analisada.
No caso da José Escobar,
esse desvio é de 9,25 °C. O satélite detectou a temperatura de 39,24 °C no
local, enquanto a média da cidade era de 29,99 °C. Isso não significa
necessariamente que o interior da escola atinja os 39,2 °C, mas sim que área
onde ela está alcança esse nível de calor.
Na cidade de São Paulo, 7
das 20 escolas em locais mais quentes com maiores desvios de temperatura do
município são creches parceiras conveniadas com a prefeitura. Há 201
unidades desse tipo com desvio de temperatura de pelo menos 4 °C, onde estão
matriculados mais de 23 mil bebês e crianças de até 3 anos.
No Rio Grande do Sul, onde a
Justiça chegou a ordenar a suspensão do início das aulas na rede estadual, que
estava marcado para o dia 10, devido à onda de calor, 51,8%
dos estudantes de Porto Alegre estão matriculados em escolas situadas em locais
pelo menos 3 °C mais quentes que a capital, de acordo com dados da pesquisa do
Instituto Alana.
Segundo João Paulo Amaral,
um dos coordenadores da pesquisa, essas condições têm impacto direto no ensino.
“A escola deve ser o equipamento mais saudável para as crianças estarem, já que
é o ambiente no qual elas geralmente passam a maior parte do tempo durante a
infância. Elas precisam de uma condição salubre para poder ter maior aprendizagem
e aproveitamento da educação”, afirma.
<><> Por que
isso importa?
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País vem enfrentando sucessivas ondas de calor e
quase um terço do total de crianças matriculadas em escolas públicas e privadas
das 27 capitais estuda em escolas localizadas em áreas vários graus ainda mais
quentes do que as próprias cidades onde elas estão.
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Calor excessivo e constante prejudica o aprendizado
e pode colaborar para a evasão escolar; situação demanda que estruturas sejam
adaptadas.
No contexto atual de
agravamento das mudanças climáticas, as ondas de calor e o estresse técnico
podem afetar o desenvolvimento físico das crianças e a habilidade de aprender.
“Proporcionalmente, elas precisam tomar mais líquido e respirar mais do que os
adultos [por terem uma frequência respiratória mais alta], e isso acaba fazendo
elas se desidratarem mais facilmente, o que pode impactar em problemas de saúde
e de aprendizado”, analisa Amaral.
Outro destaque da pesquisa
do Instituto Alana é a situação das unidades de ensino das capitais da região
Norte, onde está a maior proporção de alunos em áreas mais quentes. Dos 419 mil
estudantes de escolas públicas e privadas de Manaus (AM), maior cidade da Amazônia, mais de 316
mil (75% do total) estudam em locais pelo menos 3,5 °C mais quentes que a média
anual do município.
Em Boa Vista (RR), 73% das
crianças e adolescentes frequentam escolas com o mesmo nível de aquecimento. Já
em Macapá (AP), o percentual sobe para 76% do total de matriculados em
instituições com desvio de temperatura acima de 3,5 °C.
Amaral aponta que um dos
problemas das escolas amazônicas é que elas geralmente não são construídas
levando-se em conta as particularidades climáticas do bioma e seguem um padrão
de colocar os alunos em salas fechadas por quatro paredes.
“O desenho das escolas e os
tipos de materiais [usados na construção] precisam ser escolhidos de acordo com
o clima. O financiamento público da infraestrutura escolar é muito
padronizado e permite pouca flexibilidade para identificar essas diferenças das
condições climáticas locais”, analisa o pesquisador.
Vivian Batista, professora
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), afirma que seria
benéfico que as escolas tivessem janelas amplas, ambientes arejados e espaços
de contato com a natureza. “São pontos que já vêm sendo assinalados pelos
educadores há mais de um século, a pedagogia já chama a atenção para esses
aspectos há muito tempo. Parece que só agora com o aumento da temperatura é que
as pessoas estão se dando conta do quanto essa adaptação é necessária.”
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Quanto
mais quente a escola, maior é a proporção de pretos e pardos que estudam nela
A Pública analisou também o perfil de
autodeclaração racial dos estudantes das escolas com
desvios de temperatura mapeados na pesquisa, a partir das informações do Censo
Escolar de 2023.
A conclusão é que,
proporcionalmente, há mais estudantes negros nas escolas dos locais mais quentes
do que naquelas com temperaturas mais amenas. Enquanto pretos e pardos são
apenas 40% das crianças e adolescentes nas escolas que são de 1 °C a 1,4 °C
mais quentes que as capitais onde estão, a prevalência sobe para 62,4% nas
instituições que ultrapassam os 8 °C de desvio.
“Conforme as escolas estão
mais próximas ou dentro de favelas e comunidades urbanas, ou são escolas com
maioria de alunos negros, observamos uma piora dos indicadores educacionais de
modo geral. Com o estresse térmico e as ondas de calor, não é diferente”, diz
João Paulo Amaral.
O planejamento urbano
desigual privilegia projetos de arborização nas áreas mais nobres, o que se
reflete nas temperaturas das escolas. “As periferias têm grande adensamento da
população, que é desordenado e não planejado, e isso impacta efetivamente no
indicador de calor e nas escolas”, acrescenta o coordenador da pesquisa.
“Eu temo muito que o calor
seja mais uma justificativa para dizer que os estudantes não aprenderam. É
muito importante ver o aumento da temperatura como um problema com o qual as
escolas têm que lidar e buscar caminhos para que os alunos possam aprender. E
não usar isso [o calor] para alimentar o discurso de que há estudantes que não
vão aprender e não tem o que fazer”, pontua Batista.
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Agitação,
desmaios e muito calor em escola de São Paulo
Na Escola Estadual Professor
José Escobar, onde Davi (que abre a reportagem) estuda, há relatos até de
desmaios por causa do calor. Maura Alves conversou com a reportagem enquanto
esperava a saída da neta, que cursa o 4º ano. “Por mais de uma vez, ela
chegou em casa falando de coleguinhas que desmaiaram na sala de aula, de tanto
calor. Ela ficou bem assustada e preocupada”, conta.
“Meu sobrinho estuda aqui há três anos. Ele é
autista e fica muito agitado quando está num lugar quente. Meu irmão tem que
vir buscá-lo mais cedo quase todos os dias, por causa do calor”, diz Naiara
Soares, mãe de Vitor, que entrou na escola neste ano e começou a se queixar de
calor antes mesmo de ele completar os primeiros dez dias de aulas.
Quando participou da reunião
de pais no início do ano, Jéssica Vieira relata que sentiu muito calor. “Estava
bem quente, a reunião foi numa das salas de aula, e eu cheguei a ficar mole.”
Mas ela diz que nunca perguntou diretamente para o filho, que está na escola há
três anos, sobre a temperatura dentro dos portões da escola.
O filho de Márcia Alves,
Miguel, de 7 anos, pediu à mãe para ir à escola de sandálias e regata, por
causa do calor que sente. “Meu filho disse que a professora já ficou fraca na
sala de aula. Só tem dois ventiladores por classe e nem sempre funcionam. Todos
os pais comentam [do calor], mas nunca fizemos uma reclamação formal, porque no
geral a escola é boa”, diz Márcia.
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Professoras
relatam experiências traumáticas com o calor em escolas
Marta* é professora de
educação física e conta que já desmaiou por causa do calor durante uma aula, em
uma escola municipal do Jardim Consórcio, na zona sul de São Paulo. A quadra
onde ela promove atividades com as crianças não tem cobertura e fica totalmente
exposta ao sol.
“Os alunos não aguentam
tanto calor, pedem o tempo inteiro para ir ao banheiro e beber água. A aula
praticamente não acontece”, diz.
A professora Sandra Cristina
guarda lembranças dolorosas do período em que trabalhou em uma escola pública
de Paraisópolis. Segundo ela, praticamente todas as paredes da instituição
pegavam sol durante a tarde, o que fazia a escola parecer um “forno”.
Eu quase não me sustentava em pé, me sentia culpada por não conseguir
ensinar o conteúdo direito. Quando eu começava a explicar a rotina do dia para
as crianças, quase todas já estavam debruçadas sobre as mesas, ensopadas de
suor.
O único local onde era
possível escapar do calor escaldante da escola era uma pequena área aberta na
frente da sala da diretora, onde havia uma árvore e o chão era de terra. A
diretora não permitia que as aulas ocorressem fora das salas, mas Sandra e seus
alunos iam até lá silenciosamente, quase na ponta dos pés, para não chamar sua
atenção. Liam histórias e tentavam se refrescar.
Até que, sem avisar ninguém,
a diretora tomou uma decisão extrema: mandou cortar a árvore e terminou de
cimentar o espaço. “Chorei tanto naquele dia que pedi remoção da escola. Aquele
era o único lugar fresco, era tão pequeno que ficávamos todos juntinhos
tentando aproveitar a sombra da árvore.”
·
Calor
nas salas de aulas pode levar a perdas de aprendizagem de até um ano e meio ao
longo da vida escolar
No relatório The Impact of Climate Change on Education, de 2024, o Banco Mundial antecipou um estudo científico sobre a perda
de aprendizagem dos estudantes brasileiros por causa do calor. O trabalho está
previsto para ser publicado ainda no primeiro semestre de 2025.
A pesquisa analisou os 550
municípios do país que mais aqueceram nos últimos anos, com cerca de 0,6 °C de
aumento nas temperaturas máximas a cada década. O estudo apontou que os
estudantes dessas cidades perdem, em média, 1% de aprendizagem a cada ano
devido ao calor extremo.
Levando em conta que o
conhecimento adquirido em um ano letivo se acumula com os anteriores e os
seguintes, ao final do ensino médio o estudante brasileiro de um desses
municípios terá perdido cerca de um ano e meio de aprendizado.
“Isso pode impactar até
mesmo na profissionalização desses alunos ou na procura pelo ensino superior.
Além disso, quando a criança não vai para a aula por causa do calor, tem um
custo para a família administrar o cuidado da criança, e isso pode impactar,
inclusive, o não retorno às aulas”, analisa João Paulo Amaral.
·
Não
existem normas de conforto térmico para as escolas brasileiras
“Se a escola não tiver
condições acústicas e térmicas adequadas, isso atrapalha a compreensão das
crianças durante o aprendizado. Uma sala de aula com uma acústica ruim pode
fazer com que os alunos não entendam o que está sendo dito, a mesma coisa
acontece com o desempenho térmico.”
A análise é da arquiteta
Larissa Azevedo Luiz, especialista em conforto ambiental, área que estuda as
condições de temperatura, acústica e luminosidade dos ambientes. Ela já
trabalhou com projetos arquitetônicos de escolas públicas e privadas de São
Paulo.
Segundo Azevedo, pelo fato
de as crianças serem mais sensíveis a alterações das condições climáticas de um
ambiente do que os adultos, o desenho das instalações das escolas exige uma
atenção especial.
“O conforto ambiental é um equilíbrio de três
aspectos que podem conflitar entre si: luz natural, acústica e temperatura. Se
a escola abre uma parede para ventilar, pode ser bom para o desempenho térmico,
mas também pode prejudicar a acústica, porque traz ruído de fora. Se aumentar a
área envidraçada, é bom para levar a luz do sol e proteger do ruído, mas também
vai aumentar o calor. O mais importante é buscar um equilíbrio entre todos
esses parâmetros, o que não é fácil de ser alcançado se a escola não está
atenta a isso”, complementa.
Hoje, não há nenhuma regra
ou determinação de abrangência nacional em vigor que oriente os padrões de
construção para escolas. “O que existe é uma regulamentação no nível
educacional, do que as escolas estão ensinando e da composição da grade
curricular, com a supervisão do Ministério da Educação. Mas não tem
ninguém efetivamente olhando se a parede da escola tem um bom isolamento
térmico, e muito menos cobrando para que ela se atente a isso”, pontua Azevedo.
A arquiteta faz parte de um
comitê da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que está elaborando
uma norma que regulamentará um nível mínimo de desempenho térmico para todos os
tipos de edificações, incluindo escolas. “Será um começo para ter uma forma de
avaliar tudo isso, porque sem a normatização não é possível fazer grandes
levantamentos para entender a situação atual das escolas”, diz a arquiteta.
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Ar-condicionado
ajuda, mas não é a única solução para refrescar as escolas
Instalar aparelhos de ar
condicionado potentes pode ser a primeira medida que vem à mente para aliviar o
calor nas escolas. Especialmente ao levar em conta que 70% das salas das
escolas públicas do país não possuem os aparelhos, segundo o Censo Escolar de 2022. Porém, apesar de serem grandes
aliados, esses equipamentos devem ser usados com planejamento e atenção.
Azevedo aponta que há
condições favoráveis para o aproveitamento da ventilação natural na maior parte
do país. “Mas não durante todo o tempo, pois já sabemos que nos períodos de
extremo calor, principalmente no auge do verão, há necessidade da utilização de
ar-condicionado para fornecer conforto”, diz.
Ela também defende o amplo
sombreamento dos edifícios das escolas, como uma forma de reduzir a incidência
da luz solar nas paredes externas. Isso pode ser feito de forma natural, com o
plantio de árvores, ou artificial, com a instalação de brises ou outros
elementos que geram sombra.
“Se o projeto arquitetônico
não for bem desenvolvido, o ar-condicionado pode estar ligado, mas não entregar
a sensação térmica esperada e ainda gerar um consumo energético
altíssimo. O que as escolas vão fazer se ficarem sem energia elétrica? Vão
suspender todas as aulas porque o prédio só é habitável com ar-condicionado?”,
questiona.
Para a professora Vivian
Batista, é urgente cuidar da climatização das escolas como um todo, e não só
instalar aparelhos de refrigeração. “Passa pelo desenho do prédio e dos espaços
escolares, e também pela compreensão do que é a crise climática. Não
adianta ter um ar-condicionado na sala e os estudantes não terem a noção de
como cuidar do meio ambiente, de como se relacionar com a natureza e cuidar do
lixo.”
·
A
quem reclamar?
“O conforto térmico é algo
muito subjetivo, uma percepção que pode variar de pessoa para pessoa. Muitas
vezes, tem-se a impressão de que está bom do jeito que está, porque ninguém
reclamou. Mas, talvez, vários pais e mães nunca tenham se dado conta de que
poderiam reclamar sobre aquilo. Nós temos direitos a condições mínimas de
habitabilidade em todos os espaços, principalmente nas escolas, onde nossas
crianças estão”, explica a arquiteta Larissa Azevedo.
Para prestar queixa sobre o
calor em uma escola municipal ou estadual, a recomendação é buscar a direção da
escola. Caso não seja resolvido, orienta-se procurar a ouvidoria da Secretaria
de Educação. Se a escola for particular e o diálogo direto com a instituição
não surtir efeito, o ideal é recorrer ao Procon do respectivo estado.
Outro lado
A Pública procurou
a Secretaria de Educação do governo de São Paulo para comentar sobre as
denúncias de calor na Escola Estadual Professor José Escobar.
A pasta afirmou que
“a escola citada conta com dois ventiladores em cada sala de aula, cinco no
pátio e bebedouros com função de água gelada”. A Secretaria negou haver
registros de desmaios de crianças por conta do calor.
Fonte: Por Gabriel Gama, da
Agencia Pública
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