A origem dos “rios
de cocaína” na Amazônia
O município de
Eirunepé, no Amazonas, tem uma população de 33 mil habitantes. Entre 1996 e
2004, a média da taxa de homicídios de pessoas acima de 1 ano era de 3,7 por
100 mil habitantes. Mas, entre 2005 e 2020, esse número explodiu: 34 homicídios
a cada 100 mil habitantes – um aumento vertiginoso de 819%. A evolução também
ocorreu em Cruzeiro do Sul (AC), outra cidade na região Norte, cuja taxa de
homicídios subiu de 4,3, no mesmo período, para 30,1 entre 2005 e 2020 –
evolução de 595%.
As duas cidades
estão às margens do Rio Juruá, um dos afluentes do Rio Amazonas. Assim como
esses dois, existem outros quatorze rios identificados por pesquisadores
brasileiros como os “rios de cocaína”, por servirem de rota para o tráfico que
envolve Brasil, Peru, Colômbia e Bolívia. São eles: Abuna, Acre, Amazonas,
Caquetá, Envira, Içá, Japurá, Javari, Juruá, Madeira, Mamoré, Negro, Purus,
Tarauacá, Uaupés e Xiê. A hipótese para o aumento da violência que atinge
pequenos municípios na região amazônica banhados por essas águas tem uma
explicação: com o cerco aos aviões, se intensificou o uso de barcos no
escoamento da droga.
A mudança no
transporte do entorpecente aconteceu depois de 2004, ano em que o governo
brasileiro colocou em prática uma política de interdição aérea, aprovada ainda
em 1998. Com a nova lei, a Força Aérea Brasileira (FAB) foi autorizada a abater
aeronaves suspeitas de transportar drogas vindas dos países vizinhos. Assim, a
migração para os rios foi uma estratégia dos criminosos para fugir da
fiscalização policial.
Os achados fazem
parte do estudo Landing on Water: Air Interdiction, Drug-Trafficking
Displacement, and Violence in the Brazilian Amazon (Aterrizando na Água:
Interdição Aérea, Tráfico de Drogas e Violência na Amazônia Brasileira),
produzido por pesquisadores do Insper e da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e
publicado pelo IZA (Institute of Labor
Economics),
da Alemanha. Uma versão resumida em
português foi divulgada nesta quinta-feira (30) pelo Amazônia 2030, iniciativa
de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano sustentável para a
Amazônia.
O escoamento
pela água, um meio de deslocamento mais demorado, exige uma dinâmica própria e
que influencia as comunidades atingidas, argumentam os estudiosos. Os longos
trajetos, por exemplo, levam os criminosos a empregarem diferentes barqueiros,
contratarem pessoas para fazer a segurança do carregamento, fornecer
equipamentos, estocar a droga, entre outras funções. “Isso acaba trazendo a
atividade ilegal para uma proximidade muito maior com a população local”, diz
Rodrigo R. Soares, professor titular da cátedra Fundação Lemann no Insper e
líder da pesquisa, também conduzida pelos pesquisadores Leila Pereira e
Rafael Pucci.
As estimativas do
estudo indicam que a mudança na logística para movimentar a droga ocasionou,
entre 2005 e 2020, 27% do total de 5.337 mortes em 67 cidades da região Oeste
da Amazônia margeadas pelos dezesseis “rios de cocaína”. Elas têm menos de 100
mil habitantes, estão longe das grandes cidades e do cruzamento de rodovias, o
que diminui as chances das mortes estarem relacionadas a disputa fundiária ou
desmatamento ilegal. A prevalência de óbitos acontece entre homens de 20 a 49
anos por uso de arma de fogo ou faca.
OBrasil possui
cerca de 8 mil km de fronteira com três países que concentram o plantio de coca
na região, que está dividido da seguinte forma: Colômbia (61%), Peru (26%) e
Bolívia (13%), segundo o relatório mundial do Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (Unodc, na sigla em inglês). Até o começo dos anos 2000,
as principais rotas de escoamento passavam pela América Central e Caribe ou iam
diretamente para norte-americanos e europeus, onde estão os maiores
compradores.
A Amazônia
brasileira começou a aparecer nesse mapa em meados dos anos 2000. O Brasil, que
até então figurava na décima posição em volume de cocaína apreendida,
atualmente é o terceiro colocado, atrás de Estados Unidos e Colômbia, apontam
dados da Unodc de 2021. Foi nessa mesma época que o governo brasileiro investiu
para aumentar o controle das fronteiras e do espaço aéreo na Amazônia, que
abriga a maior floresta tropical do planeta e tem baixa densidade populacional:
cerca de 5,6 habitantes por km2.
Uma das medidas
para inibir o tráfico veio em 2004 com a chamada Lei do Abate. A medida foi
sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva após uma longa discussão
no Congresso e com as Forças Armadas. A lei sinalizava que o governo estava
disposto a “combater, com as armas adequadas, a invasão de nossas fronteiras
por quadrilhas internacionais de narcotraficantes”, afirmou o então ministro da
Defesa, José Viegas Filho.
Àquela altura, o
país montava uma infraestrutura própria para agir nesse campo – havia pouco
controle sobre o espaço aéreo da Amazônia, o que facilitava voos carregados de
drogas vindos de países andinos. Em 2002, o Sistema de Vigilância da Amazônia e
o Sistema de Proteção da Amazônia (Sivam/Sipam) entrava em operação sob a
justificativa de aumentar a vigilância e o controle do tráfego aéreo, das
fronteiras, monitorar comunicações clandestinas, de rotas de tráfico e
contrabando, além de identificar pistas escondidas e garimpos ilegais. Anos
mais tarde, em 2005, o Quarto Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de
Tráfego Aéreo, Cindacta IV, iniciava suas atividades em Manaus.
Assim que a Lei do
Abate passou a valer, a FAB diz ter registrado uma redução imediata de 32% no
número de voos irregulares. O primeiro relato de interceptação de avião
suspeito veio a público em 2009, quando uma aeronave vinda da Bolívia foi alvo
de disparos de advertência pelos militares brasileiros após o piloto se negar a
obedecer. Depois dos tiros, o avião, que carregava 176 kg de pasta básica de
cocaína, pousou numa estrada de terra em Rondônia.
O estudo liga a
interdição aérea ao volume da droga apreendida. Com a migração de parte do
comércio ilegal para as rios e estradas, o Brasil dobrou a quantidade da
cocaína detida por mar, terra e ar entre 2004 e 2005: foram de 7,7 toneladas
para 15,7 toneladas, segundo estatísticas divulgadas pela Organização das
Nações Unidas à época.
No entanto, a
estratégia usada para dificultar o tráfico de drogas pelo ar pode ter
estimulado um novo problema. Segundo o estudo dos pesquisadores brasileiros, a
geografia da floresta favoreceu a rápida adaptação do narcotráfico. Cinco dos
maiores afluentes do Rio Amazonas têm origem nos Andes, são navegáveis a maior
parte do ano e conectam a produção de cocaína a Manaus, que posteriormente pode
ser transportada para outros estados ou países pelo aeroporto internacional ou
pelo porto.
A análise indica
que a violência nas cidades ao longo das vias acessadas mudou de padrão depois
da Lei do Abate. “A violência em um município que estivesse numa rota
hidroviária originada na Colômbia, por exemplo, não estava muito correlacionada
com a produção de cocaína daquele país. Mas, após o monitoramento do espaço
aéreo, essa relação aumentou”, explica Soares.
O estudo anota como
outro indicativo do impacto local o aumento de mortes por overdose, o que
aponta, segundo os pesquisadores, para uma presença maior de drogas em circulação.
“Observamos que diversos municípios com zero casos de overdose antes de 2005
passaram a ter episódios esporádicos desde então”, afirmam os pesquisadores no
estudo, alertando ainda para a provável subnotificação de casos.
Os pesquisadores
alertam que é praticamente impossível enfrentar o problema numa região do
tamanho da Amazônia, maior que a União Europeia, apostando só na presença
ostensiva da polícia ou das Forças Armadas. “Tem que pensar em algum uso de
tecnologia que seja capaz de acompanhar isso e gerar alertas que acionem uma
reação”, sugere Soares, citando drones, radares móveis e melhor coordenação
entre os órgãos de fiscalização e autoridades dos países vizinhos. Outra ação
vital é oferecer às comunidades locais alternativas que gerem renda, preservem
a floresta e o modo de vida tradicional, a fim de evitar o envolvimento dos
moradores com o narcotráfico e impedir possível “entrincheiramento de algum
grupo criminoso ali na região que consiga um monopólio”, pontua Soares.
A disputa pelo monopólio
do tráfico de drogas na Amazônia sugerida pelo pesquisador foi diagnosticada
pelo Fórum de Segurança Pública em um relatório de 2022 e que é citado no
estudo sobre os “rios de cocaína”. A análise do Fórum abordou o interesse de
facções do Sudeste, como Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, e Primeiro
Comando da Capital, o PCC, de São Paulo, pelo controle da região entre 2015 e
2016. O relatório cita ainda “algumas facções locais compreenderam
melhor os mecanismos de funcionamento das redes ilegais através da Amazônia”.
Esse fenômeno suscitou o surgimento de organizações regionais, como a Família
do Norte, no Amazonas.
Cientes disso, os
estudiosos do Insper e da USP compararam os homicídios ocorridos após 2015,
tentando identificar algum aumento de óbitos a partir da interferência das
facções. Os números mostram que a taxa de mortes se manteve similar durante
todo período a partir de 2004, quando a restrição aérea foi implementada.
Por fim, os
pesquisadores ressaltam que, além dos esforços brasileiros para conter o crime
organizado, é imprescindível uma cooperação internacional, “principalmente na
região andina, para garantir uma abordagem coordenada ao tráfico de cocaína,
com maior troca de informações e práticas de segurança transnacional”.
Fonte: Revista
Piauí
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