Moisés Mendes: A Venezuela é a mais
dramática encruzilhada das esquerdas
Até a alma de Olavo de
Carvalho foi mobilizada para que a extrema direita mundial bata na eleição
venezuelana. É natural que golpistas brasileiros e americanos estejam se
divertindo com a possibilidade de derrubar Maduro e causar danos a Lula.
O complicado é ver que
uma turma da pesada das direitas extremada e moderada, que reúne de Hamilton
Mourão a Luciano Huck, passando por Monark, Nikolas Ferreira, Tabata Amaral e
Kim Kataguiri, tem posições semelhantes à de muita gente boa das nossas esquerdas.
Estão com o
bolsonarismo e com Trump, com a Folha, com o Estadão e o Globo. Alinham-se a
velhos e novos golpistas e com o que o bolsonarismo, principalmente o mais
dissimulado, expõe de mais repulsivo em momentos graves.
Mas fazer o quê, se
Maduro facilita as coisas para a direita e cria constrangimentos para a
esquerda? A eleição posta em dúvida já era anunciada como armadilha para Lula,
o PT e para quem tem simpatia pelo que resta de chavismo e pelo esforço de
Maduro para levar adiante algo maior do que ele.
Maduro constrange as
esquerdas, mesmo que se reconheça sua bravura no enfrentamento da caçada
comandada pelos Estados Unidos e seus satélites sabotadores e mesmo que esteja
há uma década sob a ameaça permanente de golpe.
O golpismo é
intermitente em toda parte, onde houver esquerda no poder, incluindo o Brasil.
Na Venezuela é pior, porque eles não irão suportar mais seis anos de Maduro.
Poderia, se fosse deles.
Fernando Henrique quis
e ficou mais quatro anos no governo no Brasil, criando uma reeleição que não
existia aqui. E Fernando Henrique nunca será lembrado pela direita como
golpista, mesmo que tenha desejado e arquitetado a reeleição para si
mesmo.
Donald Trump, que
disputa de novo a eleição na mais arrogante e disfuncional das democracias,
anunciou na semana passada a um grupo do que eles chamam genericamente de
cristãos conservadores:
“Eu amo vocês. Saiam,
vocês precisam sair e votar. Vocês não terão que votar mais. Em quatro anos,
vocês não precisarão votar novamente, nós consertaremos tudo tão bem que vocês
não precisarão votar”.
Trump, que não poderá
ser reeleito de novo, se for eleito este ano, já anuncia que algo irá consertar
tudo e solucionar essa barreira. Uma solução que elimine a trabalheira de uma
eleição.
Nenhum direitista
brasileiro irá apontar o dedo na cara de Trump pela insinuação de que pode
virar ditador. Como não fizeram nada depois do 6 de janeiro de 2021, quando da
invasão do Capitólio.
Na Argentina, onde
prenderam mais de 30 estudantes nas manifestações de rua de 12 de junho e cinco
continuam na prisão, especula-se como algo provável que, cada vez mais fraco,
Javier Milei pode tentar algo da ideia de Trump. Não há uma linha sobre os encarcerados
pelo fascismo argentino e suas feições de ditador.
Não se ouve e não se
vê ninguém da direita falando dessa e de outras atitudes da direita extremada,
porque as anormalidades só existem do outro lado.
Mas a esquerda se
comove com situações que levam a conclusões ou suspeitas de que algo está
errado. E Maduro deve ter cometido erros, se forem apenas erros.
É assim que parte das
esquerdas, juntando gente conhecida, políticos com representação e anônimos, se
manifesta, com várias graduações, com críticas e ataques a Maduro. Todos diante
da mais dramática encruzilhada desse século.
Alguns se perguntando
sobre o que é isso, outros achando que algo aconteceu e outros mais com a
certeza de que coisas graves ocorreram.
É o problema das
esquerdas, que a direita e muito menos a extrema direita nunca terão. Essas
últimas não são consumidas pelo dilema de questionar ou não um parceiro
arbitrário. Porque sabotar a democracia é, claro, da natureza deles todos.
As esquerdas sofrem
nessas horas e se açoitam publicamente. Porque acabam reproduzindo as falas de
Mourão, Kataguiri e Nikolas Ferreira e ficando ao lado de Luiz Almagro, o
secretário da OEA (Organização dos Estados Americanos) que acionou o golpe na
Bolívia contra Evo Morales em 2019.
Os Estados Unidos
estão convocando Almagro para que produza relatórios sobre a eleição
venezuelana, como ele fez em 2019 ao insinuar fraude na reeleição de Evo. É com
essa gente que parte das esquerdas faz jogral hoje, mesmo que cantando num tom
mais baixo.
Como consolo, vale
repetir uma tentativa de resumo do que pregava Ruy Fausto, o filósofo das
inquietações éticas. As esquerdas somente terão algum sentido se não pensarem,
não agirem e não reproduzirem o que condenam na direita.
¨ O povo venezuelano permanece com a Revolução Bolivariana. Por
Vijay Prashad
Em 28 de julho, no 70º
aniversário de Hugo Chávez (1954-2013), Nicolás Maduro Moros venceu a eleição
presidencial venezuelana, a quinta desde que a Constituição Bolivariana foi
ratificada em 1999. Em janeiro de 2025, Maduro começará seu terceiro mandato de
seis anos como presidente. Ele assumiu as rédeas da Revolução Bolivariana após
a morte de Chávez por câncer pélvico em 2013. Desde a morte de Chávez, Maduro
enfrentou vários desafios: construir a sua própria legitimidade como presidente
no lugar de um homem carismático que veio a definir a Revolução Bolivariana;
enfrentar o colapso dos preços do petróleo em meados de 2014, que impactou
negativamente as receitas do Estado venezuelano (mais de 90% das quais vinham
das exportações de petróleo); e gerenciar uma resposta às sanções unilaterais e
ilegais impostas pelos Estados Unidos, que se aprofundaram à medida que os
preços do petróleo caíam. Esses fatores negativos pesaram muito sobre o governo
de Maduro, que está no cargo há uma década após ser reeleito nas urnas em 2018
e agora em 2024.
Desde a primeira
vitória eleitoral de Maduro em 2013, a oposição de extrema-direita começou a
rejeitar o processo eleitoral e a reclamar de irregularidades no sistema.
Entrevistas que realizei ao longo da última década com políticos conservadores
deixaram claro que eles reconhecem tanto o domínio ideológico do chavismo sobre
a classe trabalhadora da Venezuela quanto o poder organizacional não apenas do
Partido Socialista Unido da Venezuela de Maduro, mas das redes do chavismo que
vão das comunas (1,4 milhão de pessoas) às organizações juvenis. Cerca de
metade da população votante da Venezuela está fielmente comprometida com o
projeto bolivariano, e nenhum outro projeto político na Venezuela possui o tipo
de máquina eleitoral construída pelas forças da revolução bolivariana. Isso
torna impossível a vitória em uma eleição para as forças anti-Chávez. Para esse
fim, seu único caminho é difamar o governo de Maduro como corrupto e reclamar
que as eleições não são justas. Após a vitória de Maduro — por uma margem de
51,2% a 44,2% — é exatamente isso que a oposição de extrema-direita tem tentado
fazer, incitada pelos Estados Unidos e uma rede de governos de extrema-direita
e pró-EUA na América do Sul.
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A Europa Precisa do Petróleo Venezuelano
Os Estados Unidos têm
tentado encontrar uma solução para um problema que eles mesmos criaram. Tendo
imposto sanções severas tanto contra o Irã quanto contra a Rússia, os Estados
Unidos agora não conseguem encontrar facilmente uma fonte de energia para seus
parceiros europeus. O gás natural liquefeito dos Estados Unidos é caro e
insuficiente. O que os EUA gostariam é de ter uma fonte confiável de petróleo
que seja fácil de processar e em quantidades suficientes. O petróleo
venezuelano atende aos requisitos, mas, dadas as sanções dos EUA à Venezuela,
esse petróleo não pode ser encontrado no mercado europeu. Os Estados Unidos
criaram uma armadilha para a qual encontram poucas soluções.
Em junho de 2022, o
governo dos EUA permitiu que a Eni SpA (Itália) e a Repsol SA (Espanha)
transportassem petróleo venezuelano para o mercado europeu para compensar a
perda de entregas de petróleo russo. Essa permissão revelou a mudança de
estratégia de Washington em relação à Venezuela. Não seria mais possível
sufocar a Venezuela impedindo as exportações de petróleo, já que esse petróleo
era necessário devido às sanções dos EUA à Rússia. Desde junho de 2022, os
Estados Unidos têm tentado calibrar a sua necessidade desse petróleo, a sua
antipatia pela Revolução Bolivariana e as suas relações com a oposição de
extrema-direita na Venezuela.
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Os EUA e a Extrema-Direita Venezuelana
O surgimento do
chavismo — a política de ação massiva para construir o socialismo na Venezuela
— transformou o cenário político no país. Os antigos partidos de direita
(Acción Democrática e COPEI) colapsaram após 40 anos alternando-se no poder.
Nas eleições de 2000 e 2006, a oposição a Chávez foi fornecida não pela
direita, mas por forças dissidentes de centro-esquerda (La Causa R e Un Nuevo
Tiempo). A Velha Direita enfrentou um desafio da Nova Direita, que era
decididamente pró-capitalista, anti-chavista e pró-EUA; esse grupo formou uma
plataforma política chamada La Salida ou A Saída, que se referia à sua desejada
saída da Revolução Bolivariana. As figuras-chave aqui foram Leopoldo López,
Antonio Ledezma e María Corina Machado, que lideraram protestos violentos
contra o governo em 2014 (López foi preso por incitação à violência e agora
vive na Espanha; um funcionário do governo dos EUA em 2009 disse que ele é
“frequentemente descrito como arrogante, vingativo e ávido por poder”). Ledezma
mudou-se para a Espanha em 2017 e foi — com Corina Machado — signatário da
Carta de Madrid de extrema-direita, um manifesto anticomunista organizado pelo
partido espanhol de extrema-direita, Vox. O projeto político de Corina Machado
é sustentado pela proposta de privatizar a empresa petrolífera da Venezuela.
Desde a morte de
Chávez, a direita venezuelana tem lutado com a ausência de um programa
unificado e com uma bagunça de líderes egoístas. Coube aos Estados Unidos
tentar moldar a oposição em um projeto político. A tentativa mais cômica foi a
elevação, em janeiro de 2019, de um político obscuro chamado Juan Guaidó à
presidência. Essa manobra falhou e, em dezembro de 2022, a oposição de
extrema-direita removeu Guaidó como seu líder. A remoção de Guaidó permitiu
negociações diretas entre o governo venezuelano e a oposição de
extrema-direita, que desde 2019 esperava uma intervenção militar dos EUA para
garantir o poder em Caracas.
Os EUA pressionaram a
extrema-direita cada vez mais intransigente a realizar conversações com o
governo venezuelano para permitir que os EUA reduzissem as sanções e deixassem
o petróleo venezuelano entrar nos mercados europeus. Essa pressão resultou no Acordo
de Barbados, de outubro de 2023, no qual os dois lados concordaram com uma
eleição justa em 2024 como base para a retirada gradual das sanções. As
eleições de 28 de julho são o resultado do processo de Barbados. Embora María
Corina Machado tenha sido impedida de concorrer, ela efetivamente concorreu
contra Maduro por meio de seu candidato de procuração Edmundo González e perdeu
em uma eleição acirrada.
Vinte e três minutos
após o fechamento das urnas, a vice-presidente dos EUA Kamala Harris — agora
candidata à presidência nas eleições de novembro nos Estados Unidos — publicou
um tweet admitindo que a extrema-direita havia perdido. Foi um sinal precoce de
que os Estados Unidos — apesar de fazerem barulho sobre fraude eleitoral —
queriam deixar para trás seus aliados de extrema-direita, encontrar uma maneira
de normalizar as relações com o governo venezuelano e permitir que o petróleo
fluísse para a Europa. Essa tendência do governo dos EUA frustrou a
extrema-direita, que recorreu a outras forças de extrema-direita na América
Latina em busca de apoio e que sabe que seu argumento político restante é sobre
fraude eleitoral. Se o governo dos EUA deseja que o petróleo venezuelano chegue
à Europa, terá de abandonar a extrema-direita e acomodar o governo de Maduro.
Enquanto isso, a extrema-direita tomou as ruas com gangues armadas que querem
repetir as perturbações da guarimba (barricada) de 2017.
¨ Derrota da direita venezuelana não surpreendeu ninguém – nem
poderia. Por Paulo Moreira Leite
Um bom resumo do
comportamento da mídia reacionária diante da reeleição de Nicolás Maduro na
Venezuela encontra-se na última linha do editorial de O Globo (29/07/2024):
"O Brasil precisa denunciar a farsa eleitoral de Maduro", conclama o
texto, numa sugestão que, apesar de ridícula, envolve ambições políticas
óbvias.
Numa operação de
sabotagem contra o voto de 11 milhões de eleitoras e eleitores que foram às
urnas neste domingo, propõe-se que o governo Lula dê um tiro no próprio pé,
somando a reconhecida influência regional do país e seu governo numa investida
de inspiração imperialista contra um aliado histórico, já integrado a memória
política e econômica desta região do planeta.
"Em nenhum
momento o processo na Venezuela inspirou confiança. As irregularidades foram
constantes", prossegue a Vênus Platinada, numa retórica previsível de quem
encara uma tarefa vergonhosa – pressionar o governo brasileiro a cometer uma
traição contra um parceiro histórico – e com essa finalidade procura reescrever
os fatos conforme seu interesse e conveniência.
O que se quer, aqui, é
devolver a Venezuela e suas riquíssimas reservas mineiras ao circuito
imperialista, impedindo que parcelas consideráveis desses benefícios sejam
partilhados com as camadas pobres da população, em projetos de investimentos
públicos e distribuição de renda que são a marca principal dos governos
chavistas.
Encerrada a campanha,
o problema de um palavreado tão contundente encontra-se na consistência
gelatinosa – para não dizer nula – das observações negativas sobre uma votação
ocorrida sob o olhar atento da maioria da população do país.
Foram 11 milhões de
eleitores e eleitoras – ou 54% do eleitorado total – que saíram de casa, neste
domingo, obviamente informados sobre a relevância da pauta do dia e em sua
maioria já resolvidos sobre a atitude a tomar nas urnas.
A derrota do candidato
de direita, o diplomata Edmundo Gonzales, não surpreendeu ninguém – nem
poderia. Sua expressão política é nula e ele só ganhou relevância na vida
pública como testa de ferro assumido de uma deputada, Maria Corina Machado,
milionária de extrema direita, que perdeu os direitos políticos por 15 anos
depois que foi condenada numa investigação sobre ocultação da própria fortuna.
Neste ambiente, a
eleição de domingo foi um clássico pleito sul-americano, onde questões como a
fome, o emprego, a escola dos filhos e a aposentadoria dos mais velhos se
encontravam no centro da agenda – e ali devem permanecer enquanto a Venezuela,
ao lado de seus vizinhos, permanecer um país de muitas oportunidades para
poucos e uma imensa desigualdade amargada por quase todos.
Alguma dúvida?
Fonte: Brasil 247
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