Luiz Marques: Lula e as desigualdades
No Brasil, a hegemonia
burguesa fundada na ideia de desenvolvimento integrado nunca se realizou, a não
ser como inserção instável dos trabalhadores no circuito produtivo. As
desigualdades sociais, raciais e de gênero persistem. Falar que os banqueiros
nunca acumularam como nos governos do PT (Partido dos Trabalhadores) atesta o
limite das medidas que melhoraram a vida de 30 milhões de cidadãos. Não se
vence a opressão sem enfrentar a resistência do status quo. Governar é optar. A
esquerda não pode abdicar do discurso utópico em nome do conformismo com a
ordem liberal. O Estado de direito democrático, per se, não enche barriga e não
fabrica emprego com dignidade.
Ademais, os índices
crescentes do PIB (Produto Interno Bruto) nem sempre conduzem à diminuição das
diferenças socioeconômicas e culturais na sociedade. Ao se afirmar que em certo
período “todos foram beneficiados”, há que arguir quais grupos despontaram e
por que outros conseguiram pouco. Marcelo Medeiros, em Os ricos e os pobres,
enfatiza que para haver uma política de ataque direto ao desigualitarismo é
preciso que a riqueza contemple os necessitados no saneamento básico, na saúde,
na educação e nos equipamentos urbanos, além do que concerne a renda. A visão
deve ser holística. O povo tem pressa em realizar seus sonhos, e jovens não são
guardiões do establishment.
É incorporando
elementos que se confronta as iniquidades, no conjunto. A destruição provocada
pela perfect storm / tempestade perfeita (conservadora, neofascista,
neoliberal) e o atraso da representação congressual são obstáculos que exigem a
sensibilidade de um estadista. Ao pautar a taxação das grandes fortunas em
nível nacional e internacional (G-20), o governo mira o consenso global para
compensar a desfavorável correlação de forças internas. A pressão de fora é o
gatilho. Os recursos permitiriam cumprir as promessas igualitaristas nas
comunidades periféricas.
Anos atrás, Marilena
Chaui rebateu a desqualificação de um ilustre metalúrgico. Então o esporte do
“andar de cima” era rir da subescolarização do petista: o líder com mais
títulos de Doutor Honoris Causa em instituições renomadas. Oppositum sensu, a
filósofa elencou primeiros-ministros da Europa sem curso superior, nem por isso
estigmatizados na imprensa. 350 anos de escravidão, aqui, geraram o preconceito
que ainda cospe os memes de ressentimento: “Ele não deve improvisar”.
• Para uma ascensão social
O balanço do terceiro
mandato do filho de dona Lindu é positivo. Alcançamos o menor desemprego desde
2015 e o maior crescimento da massa salarial, desde 1995. A inflação tombou. O
repasse aos estados e municípios pelo Fundo Nacional de Saúde e o Fundo Nacional
de Segurança aumentaram, em 2023. “O aumento do repasse de recursos é a
expressão do que é cuidar de gente”, adverte o ministro Fernando Haddad. A
filiação da mídia adversativa à lógica dos “investidores” impede-a de criticar
os juros desindustrializantes (10,75%) do Banco Central. Preferem o jogral de
Benjamin Netanyahu.
O Bolsa Família
atingiu o valor médio de R$ 680,60 e registrou 55,7 milhões de beneficiários. O
Programa de Transferência de Renda unipessoal, usado e abusado para promoção de
um genocida, voltou a amparar as famílias. O Programa Mais Médicos atingiu 25.421
profissionais, quase que a totalidade formada de médicos brasileiros nas
regiões dos municípios desassistidos. Mais de nove milhões de contribuintes
usufruíram da gratuidade do Farmácia Popular, que morria à míngua.
Assim também aconteceu
com o reajuste da merenda escolar e o fomento às escolas de tempo integral. O
valor das contratações do Plano Safra cresceu. As exportações do agronegócio
subiram. A recomposição do Programa Para Aquisição de Alimentos (PPA) aumentou.
O desmatamento da Amazônia encolheu. Sem citar o acesso à água nas áreas rurais
e os recursos ao Luz para Todos. O saldo positivo da balança comercial ficou em
US$ 98,9 bilhões. Foi lançada a Nova Indústria Brasil (NIB), um programa de
reindustrialização sustentável com R$ 300 bilhões para o financiamento.
As conquistas gritam.
Ao kit se junta o anúncio do presidente no último 12 de março que incide,
direto, nas assimetrias: os 100 novos Institutos Federais de Educação Ciência e
Tecnologia (IFs). A iniciativa cobre todas as unidades federativas, com 140 mil
vagas, a maioria em cursos integrados ao ensino médio. Os Institutos Federais
são instrumentos de ascensão social. O projeto envolve R$ 3,9 bilhões em obras
– campus, refeitórios estudantis, ginásios, bibliotecas, salas de aula,
equipamentos eletrônicos.
• A experiência de Harvard
A discussão entre
conservadores e progressistas invoca mais os meios de chegar à meritocracia do
que o seu conceito. Conservadores alegam que as categorias de raça e etnia para
o ingresso nas universidades são ilegítimas. Progressistas defendem ações afirmativas
para remediar as injustiças persistentes. “A verdadeira meritocracia depende de
se acabar com as enormes desigualdades entre pessoas privilegiadas e pessoas em
desvantagens”, frisa Michael J. Sandel, em A tirania do mérito.
As universidades
tiveram um reconhecimento proporcional ao aumento do abismo entre as classes
nas sociedades ocidentais, em décadas recentes. O medo de cair potencializa o
desejo de entrar em uma instituição superior, que contribua para assegurar o
futuro. Não é difícil enxergar como a fé nos mercados prepara o cenário para um
descontentamento em largos segmentos da população, que procura alternativas.
Para Max Weber, “os afortunados necessitam crer que têm o direito à boa sorte
para se convencer de que os desafortunados igualmente estão recebendo o que
merecem”. Ora, ora.
Nos anos 1940, no
intento de racionalizar o ingresso no big three, o grandioso trio (Harvard,
Yale, Princeton), que pressupunha ter estudado nos internatos particulares que
atendiam às famílias de classe média alta da elite protestante, o reitor da
Universidade de Harvard buscou mecanismos de seleção que não fossem por
hereditariedade, mas por talentos independentes da hierarquia social. Mulheres
eram excluídas, negros eram barrados e judeus tinham matrículas restringidas
por cotas formais e informais. O objetivo era substituir a elite
antidemocrática e hereditária por uma elite nova, inteligente, dedicada ao
bem-estar social, vinda de muitos contextos dos Estados Unidos.
O plano audacioso
implicava modificações no arcabouço do país, por intermédio da educação, para
uma sociedade mais móvel – e não mais igual. O reitor não queria universalizar
as portas do ensino universitário, apenas garantir a entrada dos capacitados sem
os fortes pistolões. Décadas depois, Harvard continuava priorizando os filhos
de ex-alunos, em 87% das vagas. O sistema brasileiro de cotas é o que, em pouco
tempo, obtém de longe os melhores resultados contra as desigualdades.
• Quem deve desculpas hoje
De acordo com o IBGE,
a Lei de Cotas fez o número de negros nas universidades aumentar 400% e o de
indígenas 842%. No painel do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Anísio Teixeira), os dados sobre as trajetórias dos ingressantes em 2017 mostram
que a taxa de desistência acumulada até 2021 foi de 39% nas universidade
federais e de 59% nas universidades privadas. Na USP (Universidade de São
Paulo) se afigura o menor índice de evasão entre as instituições, 17%. As taxas
maiores de evasão estão na física, química e matemática. Bolsas de estudos
servem de dique.
A partir dos anos
2000, tivemos avanços ao transitar para outro padrão de coesão social. “A volta
da mobilidade social foi impulsionada pela recuperação do crescimento econômico
e do nível de emprego concomitante com a adoção das políticas públicas de elevação
do salário mínimo e de transferências de renda”, diz Marcio Pochmann, em
Desigualdade econômica no Brasil, publicado antes do impeachment e do
retrocesso civilizacional. Não à toa, se desde 1960 o índice Gini aponta queda
na desigualdade pela expansão dos rendimentos dos mais pobres; houve elevação
em 2018.
Esther Dweck e Pedro
Rossi, em “Desmonte neoliberal e alternativas para o Brasil” (In: Brasil em
colapso, organizado por Esther Solano Gallego), corroboram o mesmo
entendimento. “Desde 2015, indicadores de desigualdade de renda voltaram a
crescer e níveis de pobreza e pobreza extrema, em queda desde 2003, reverteram
sua trajetória. Pari passu, o desemprego permanece em patamares elevados e a
lenta criação de emprego é limitada ao emprego informal, precário, temporário e
sem garantias de direitos aos trabalhadores”. Detalhe, a assertiva dos autores
foi redigida em 2019. O pesadelo se agravou desde então, sob a premeditação do
Old parliamentarian e do Chicago boy.
Adriana M. Amado e
Maria de Lourdes R. Mollo, em “Desafios econômicos na nova era Lula” (In:
Brasil sob escombros, organizado por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe
Osório), estão em consonância. “O consumo tem se apresentado como variável
importante para o crescimento. O desemprego, a precarização do trabalho e
salários baixos, fruto da austeridade fiscal, da reforma trabalhista e da
previdenciária impedem que essa variável cumpra papel alavancador, de modo a
reduzir a desigualdade”. O desafio é superar a barreira para consolidar a
democracia e romper os grilhões que prendem a economia ao “equilíbrio fiscal”
(déficit zero), do Consenso de Washington.
Alheios ao que importa
para construir uma autêntica nação para as brasileiras e os brasileiros, o
Jornal Nacional e a Globo News entoam o temor da mudança nas estruturas. Sem
pejo, divulgam fake news sobre o patrimônio mobiliário das residências oficiais
da Presidência da República, ao admoestar o casal Lula e Janja por terem
acusado os antigos inquilinos pelo sumiço de 261 peças. Devagar com o andor. A
informação consta no próprio relatório assinado pela incúria da desastrosa
gestão anterior. Foram necessários meses para achar as peças extraviadas. Só
ingênuos ou hipócritas esperariam daquela família algum cuidado com a coisa
pública. – Quem deve desculpas a quem?
Fonte: A Terra é
Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário