'Desconstrução construtiva': Putin sinaliza
liderança russa no multilateralismo, notam analistas
Em entrevista à
Sputnik Brasil, especialistas analisam discurso de Vladimir Putin e apontam que
o presidente russo expôs a ascensão de um bloco calcado no diálogo e na
cooperação contra outro, liderado pelo Ocidente, voltado para a retórica bélica
e de dominação.
O presidente da
Rússia, Vladimir Putin, proferiu nesta quinta-feira (29) seu tradicional
discurso anual na Assembleia Federal, sede do Parlamento do país.
Foi o 19º discurso de
Putin perante parlamentares e, também, o mais extenso: foram 1 hora e 50
minutos de discurso, superando em cinco minutos o recorde do discurso de 2018.
Durante sua fala, Putin abordou temas como a ascensão do multilateralismo, o
estreitamento de laços de Moscou com países árabes e latino-americanos, a
resiliência da economia russa e a construção de uma nova ordem global, apoiada
por uma Rússia forte e soberana.
Em entrevista à
Sputnik Brasil, especialistas analisaram os principais pontos abordados pelo
presidente russo.
Eden Pereira,
professor de história, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre
África, Ásia e as Relações Sul-Sul (NIEAAS), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), e membro do Grupo de Estudos 9 de Maio, destaca a importância
da Rússia enquanto potência diplomática para a construção da nova ordem global
apontada por Putin.
"A Rússia é
evidentemente uma potência militar, e eu acho que isso é um elemento
fundamental quando são discutidas as relações entre os países e,
principalmente, entre as potências. Mas tem outra questão muito importante: a
Rússia resgatou, ao longo das últimas décadas, principalmente a partir do
começo do governo Putin, a sua potência diplomática, que é a sua capacidade de
poder dialogar com outros países, inclusive grupos de países", explica
Pereira.
Ele afirma que,
atualmente, a Rússia tem uma grande presença diplomática junto a países do
continente africano, cultiva um diálogo positivo com países da Associação dos
Estados do Sudeste Asiático (ASEAN) e tem presença em organizações importantes,
como a Organização de Cooperação de Xangai e o próprio BRICS, que ele afirma
representarem "a construção de uma nova arquitetura internacional".
"A Rússia vem
como um ator principal desses blocos, então acho que isso posiciona a Rússia
como um ator muito importante dentro desse novo sistema multilateral", diz
o especialista.
Pereira afirma ainda
que, a partir de sua posição forte dentro desses novos núcleos de poder, a
Rússia mira fomentar "uma distribuição equitativa de responsabilidades em
nível internacional, algo que não é possível hoje ainda".
"Porque prevalece
não só uma ordem internacional restrita, principalmente em nível do âmbito da
ONU [Organização das Nações Unidas], do Conselho de Segurança [da ONU], onde
você tem a presença preponderante de países que eram potentes em 1945, mas porque
também outros países que poderiam fazer parte desses núcleos de poder estão
hoje excluídos, como é o caso, por exemplo, da Índia, do Brasil."
Pereira destaca que
Moscou mira o que ele chama de "desconstrução construtiva", ou seja,
liderando uma grande mudança no cenário geopolítico global, na qual a política
belicista do Ocidente, alimentada por conflitos regionais, é substituída por
uma abordagem multilateral, calcada no diálogo e na cooperação.
"Nos últimos
anos, principalmente a partir da década passada, a Rússia passou a ter uma
interação maior com os países árabes por causa, justamente, das crises
políticas que foram estabelecidas no chamado Médio Oriente, o que a gente pode
chamar também de Sudoeste da Ásia e Norte da África, por causa da chamada
'guerra ao terror'."
Ele ressalta que o
Oriente Médio vivenciou, ao longo das últimas duas décadas, a guerra ao terror,
patrocinada pelos Estados Unidos e outros atores europeus, o que resultou na
destruição de uma série de Estados da região.
"E o que ocorreu
é que, ao longo desse tempo, por meio desse processo, a Rússia foi aumentando a
sua capacidade, a sua importância dentro dessa região, porque ela foi se
inserindo como ator responsável", explica Pereira.
Ele lembra que a
Rússia sempre teve um papel importante no Oriente Médio, desde a época da União
Soviética (URSS), e que essa reinserção atual se dá no âmbito de promover a
estabilidade da região, por meio do diálogo.
"Tem um diálogo
também econômico. A Rússia tem hoje uma aproximação com os países árabes,
sobretudo no que diz respeito a uma questão de projetos econômicos,
principalmente com países como Arábia Saudita e Egito, no que diz respeito ao
mercado do gás e do petróleo."
·
Aproximação com América Latina e Oriente
Médio
Em seu discurso, Putin
sinalizou a importância de maior aproximação com a América Latina e com países
árabes.
"A Rússia tem
boas relações de longa data com os países árabes. Eles representam uma
civilização única, desde o Norte da África ao Oriente Médio, que hoje está se
desenvolvendo dinamicamente. Consideramos importante buscar novos pontos de
contato com nossos amigos árabes para aprofundar todo o conjunto de parcerias.
O mesmo vamos fazer na direção latino-americana", observou o presidente
russo.
Sobre a declaração,
Pereira afirma que a América Latina "é muito importante em nível
internacional" e que a Rússia sempre buscou dar uma atenção especial à
região.
"Desde o período
da União Soviética, existe a tentativa de dialogar com os Estados
latino-americanos, e, hoje, essa possibilidade é muito maior, porque existem
Estados soberanos na região. Temos o caso de Venezuela, Nicarágua, Cuba e
Bolívia. E o Brasil, recentemente, passa por um processo de ascensão global,
não sendo só mais uma potência regional, mas com capacidade de projeção
global", diz o especialista.
Ele afirma que a
aproximação com a Rússia é importante para o Brasil, principalmente na busca do
país por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU), demanda que, recentemente, o chanceler russo, Sergei Lavrov, afirmou
que tem o apoio de Moscou.
"Até porque nunca
esqueçamos que a América Latina não tem nenhum país no Conselho de Segurança
das Nações Unidas, uma reivindicação que durante muito tempo o Brasil fez, mas
nunca conseguiu o devido apoio por uma série de questões diferentes ao longo da
história, mas que agora existe uma possibilidade muito grande, não só por conta
do movimento de integração latino-americano, mas por conta de o Brasil estar
dentro do BRICS", explica Pereira.
"E com a sua
articulação política junto com países como Rússia, China e Índia, por meio do
BRICS, mas sobretudo em diálogo com a Rússia, que é uma potência política
diplomática, o Brasil consegue, junto aos outros países latino-americanos,
reivindicar uma posição de maior poder e responsabilidade a nível
internacional", complementa.
A opinião é
compartilhada pela jornalista e pesquisadora Alessandra Scangarelli Brites,
especialista em política internacional pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre em estudos estratégicos internacionais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), editora-chefe da Revista
Intertelas e editora de mídias sociais da agência de notícias Xinhua.
Em entrevista à
Sputnik Brasil, ela destaca que a cooperação com a Rússia também é benéfica
para o Brasil por ser a Rússia uma grande parceira em questões de
infraestrutura, o que poderia destravar alguns gargalos do país no setor.
Ademais, Moscou também pode contribuir para o avanço do programa espacial
brasileiro nas áreas científica e de tecnologia.
"O próprio Putin,
no discurso dele, salientou muito essa questão da inteligência artificial. E a
Rússia traz uma coisa muito importante, que, infelizmente, a América Latina, e
isso vale para os países árabes também, acaba sendo muito dependente de tecnologias
produzidas em outras regiões. Putin falou muito no discurso dele sobre
soberania tecnológica", diz Brites.
"Isso é muito
importante. Nós vimos agora, por exemplo, na COVID-19, como o Brasil e outros
países ficaram à mercê daqueles que têm a tecnologia da vacina, da medicina. Eu
sei que a Rússia está sofrendo sanções, então ela é mais enfática e para ela se
torna crucial desenvolver tecnologias próprias, mas todos os países deviam ter
isso em mente, ter uma soberania tecnológica", complementa.
Ela acrescenta ainda
que a aproximação de Moscou tanto com países árabes quanto da América Latina
dá-se de maneira equilibrada, diferentemente da abordagem unilateral dos
Estados Unidos.
"A América
Latina, mas, principalmente, eu acho, a América do Sul, é uma região que está
sob certo controle dos Estados Unidos, mas tem aberturas para parcerias
múltiplas. E uma aproximação da Rússia com a América Latina é essencial não só
para a região, para ela ter uma diversidade de parcerias, e ter um equilíbrio
das forças que exercem poder na região, como também para ter outras fontes de
recursos e outras fontes de investimento em áreas muito importantes, como é o
caso da área militar."
·
BRICS cresce enquanto G7 recua
Em seu discurso, Putin
notou que a participação do BRICS na economia mundial em paridade de poder de
compra até 2028 crescerá para 36,6%, enquanto a do G7 cairá para 27,8%.
Questionada sobre a declaração, Alessandra afirma que esses dados sinalizam que
o ciclo histórico de ascensão e queda de potências está novamente sendo
concluído.
"Essa questão de
potências que vão perdendo poder e outras que ressurgem faz parte da história
humana. Sempre foi assim ao longo dos milênios, impérios que surgem, aí depois
acabam. E o que está acontecendo agora, novamente, é uma transferência de poder.
Não tem como você permanecer por séculos [no centro do poder]. Ao longo dos
tempos vão se desfazendo poderes, vão se desfazendo capacidades de poder.
Estados Unidos, vários países da Europa e alguns países da Ásia, como o próprio
Japão, estão enfrentando problemas estruturais, política e economicamente. Suas
economias estão em recessão, porém não é só isso, é uma crise político-social,
crise de valores, crise de como estruturar a sociedade, porque muita coisa
mudou ao longo dos anos", explica a especialista.
Pereira, por sua vez,
aponta que os Estados Unidos e países europeus não fazem um investimento em
seus sistemas de produção e infraestrutura.
"A única coisa
que existe, em termos do orçamento por parte dos países do G7 garantido hoje,
em termos de produção, é a indústria de armas", afirma o especialista.
Ele acrescenta que os
Estados Unidos, por meio de sua indústria armamentista, têm movimentado bilhões
com o conflito ucraniano.
"Alguns países
europeus [também movimentaram], como a Alemanha, por exemplo, que reativou o
seu complexo industrial militar, que há muito tempo estava passando por um
processo de congelamento", afirma Pereira.
"Enquanto de um
lado nós temos o BRICS pensando em infraestrutura, integração tecnológica,
infraestrutural, do outro lado nós temos o G7 pensando em renovar sua indústria
armamentista e seus instrumentos de dominação internacional, porque eles não têm
mais a capacidade produtiva e material de manter essa hegemonia que foi
construída durante cinco séculos, um período de colonização de boa parte do
mundo", complementa.
·
Como a economia russa se mantém forte
diante das sanções?
Em seu discurso, Putin
projetou que a Rússia vai subir de quinta para quarta economia mundial, e disse
que o Ocidente dispara "tiros nos próprios pés" com a política de
sanções. Questionado sobre a declaração, Pereira sublinha que as sanções "tiveram,
evidentemente, um choque muito profundo sobre a economia russa, mas elas não
impediram o dinamismo econômico russo nem o desenvolvimento social do
país".
"Se nós pegarmos
os dados que foram previstos no início da operação militar especial russa, por
parte dos ocidentais, e pegarmos os dados práticos, nós vemos que, em termos de
tentativa de parar o desenvolvimento social e econômico da Rússia, [a política
de sanções] foi um fracasso. Porque a Rússia não só teve um crescimento
econômico no ano passado, em 2023, que superou a média de crescimento nas
economias do mundo, mas, também, a Rússia tem passado por um processo de
industrialização muito forte", destaca.
Alessandra, por sua
vez, aponta que a política de sanções contra a Rússia reflete o uso do dólar
"como uma ferramenta de guerra" por parte dos Estados Unidos.
"Os Estados
Unidos no pós-guerra estabeleceram todo um sistema, que a União Soviética
assentiu também. Ela fez parte dessa construção. Então foi construída toda uma
série de instituições financeiras, econômicas, a própria ONU, com base no
dólar, com base no sistema que os Estados Unidos viam como forma de manter uma
influência mundial. Porque os Estados Unidos têm como herança a visão dos
países europeus, do Ocidente, de império. Não é aquele imperialismo clássico,
de invadir um país e fazer colônias, mas ele captou, absorveu a ideia de
imperialismo, não pelos meios clássicos, mas de controle por outras vias, que
não a militar, que é pelo financeiro, pela economia, por ter a soberania
tecnológica, as patentes científicas", explica.
Nesse contexto, ela
afirma que há uma reação mundial contra essa dominação do dólar, com países
buscando outras formas de transações, como moedas nacionais e também a moeda
discutida pelo BRICS para transações entre o grupo.
"Então eu acho
que a partir do BRICS, e, agora, com a ampliação do BRICS, essa discussão de
forma prática vai ser possível."
·
Qual a importância da diplomacia cultura
russa?
Putin destacou em seu
discurso que Moscou vai investir na difusão da cultura russa ao redor do mundo,
algo que países ocidentais fazem há tempos, e também a China, por meio do
Instituto Confúcio. Questionado o motivo de a Rússia decidir investir em seu soft
power somente agora, Pereira destaca que a Rússia investiu em diplomacia
cultural no período da URSS, que tinha uma grande atividade, sobretudo nos
países do continente africano e também em alguns países asiáticos.
"Essa diplomacia
cultural não era do mesmo período da diplomacia cultural dos Estados Unidos,
mas existia. Durante algum tempo, isso deixou de existir, porque a Rússia, por
uma medida, deixou de visualizar a sua relação com os países do Terceiro Mundo
para poder centralizar a sua relação com os países ocidentais. E os russos,
então, hoje fazem uma autocrítica."
Alessandra sublinha a
importância do investimento em soft power, citando como exemplo a indústria
cinematográfica dos Estados Unidos, que ajudou a incentivar o modo de vida
americano ao redor do mundo. Ela destaca ainda que a China também está ciente
dessa importância, e, hoje, investe pesadamente em filmes americanos. Em troca,
os produtores apresentam uma visão positiva da China em seus filmes.
"A Rússia tem um
potencial imenso [na diplomacia cultural], mas, infelizmente, até o momento,
talvez até pelas questões, essa pressão constante que ela sofre, não conseguiu
ainda poder pensar esse potencial cultural, filosófico e científico a ponto de
ter um planejamento de política externa nesse sentido."
Fonte: Sputnik Brasil
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