quarta-feira, 27 de março de 2024

Deputados pecuaristas querem impedir pesquisas sobre ‘carne de laboratório’

“BOLSA-CARNE” para a população de baixa renda e proteína suína obrigatória na merenda escolar: há anos o lobby dos pecuaristas tenta emplacar propostas como essas no Congresso Nacional para alavancar seus negócios.

Agora, além de patrocinar medidas para impulsionar a venda de bife, essa ala da bancada ruralista também atua para dificultar pesquisas científicas sobre as chamadas “carnes animais cultivadas”. A partir de técnicas de genética, elas são fabricadas em laboratório, sem a necessidade de criação e abate de rebanhos.

Filho e irmão de pecuarista, o deputado federal Tião Medeiros (PP-PR), ex-presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, apresentou no começo de março um projeto de decreto legislativo (PDL 27/2024) para anular uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que trata da “comprovação de segurança e a autorização de uso de novos alimentos e novos ingredientes”.

Publicada em dezembro, a resolução permite ao órgão federal analisar pedidos de produção e comercialização de proteína fabricada em laboratório. Segundo a justificativa do projeto de lei, “o ato normativo combatido com a presente proposição contribui para ampliar os riscos sanitários dos alimentos e, em razão disso, deve ser eliminado do ordenamento jurídico”.

Seis meses antes, Medeiros já havia apresentado outro PL (4616/2023) para proibir a “pesquisa privada, produção, reprodução, importação, exportação e comercialização de carne animal cultivada”. O texto sustenta que a “medida é necessária para proteger a indústria pecuária nacional”.

Apesar dos familiares envolvidos com o negócio da pecuária, Medeiros afirma não ter interesse pessoal em barrar a concorrência da carne de laboratório. “O objetivo do meu projeto é aprofundar o debate sobre o assunto para que tenhamos uma regulamentação que priorize a saúde humana. Mas estamos abertos ao diálogo”, sustenta.

•        ‘Lobby da pecuária é muito poderoso’

Até o presente momento, as proposições contra a carne cultivada não avançaram para votação. Porém, as iniciativas levantam questionamentos sobre potenciais conflitos de interesses, já que parlamentares ligados à pecuária estariam legislando em causa própria, afirmam fontes ouvidas pela reportagem.

“Os lobbies da pecuária e da agricultura são muito poderosos. Mas não é só lobista que está atuando. Há deputados que são, eles próprios, pecuaristas”, explica a pesquisadora Daniela Canella, professora de nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

No caso do ainda inexistente mercado de proteínas animais cultivadas, o projeto de Medeiros tramita junto à proposta de outro deputado criador de boi: Lucio Mosquini (MDB-RO). Em novembro, ele apresentou o PL 5402/2023, para impor moratória técnica e científica à pesquisa e à produção de carne animal cultivada. Dois meses antes, ele havia protocolado proposta para ajudar pecuaristas, com a criação de uma linha emergencial de crédito rural.

Em entrevista à Repórter Brasil, Mosquini alegou que não enxerga conflito de interesses nos seus projetos porque possui apenas “um pouquinho de gado”, considerando o rebanho bovino total do país, oficialmente estimado em cerca de 234 milhões de animais.

“Devo ter 600 ou 700 cabeças de gado. Então, jamais pode-se falar de conflito de interesse para quem tem um pouquinho de gado como eu”, argumenta Mosquini. “Meu projeto tem cunho personalístico, sim. Pelo fato de ser produtor rural, eu tenho que realmente defender os conceitos que prego. Se eu fosse um artista ou músico, estava lutando pela cultura. Entendo que temos que repensar o avanço de tudo que não for natural, não só na carne sintética”, complementa o deputado.

•        Outros países também tentaram barrar carne cultivada

A investida legislativa contra a carne de laboratório não ocorre só no Brasil. Na Itália e no Paraguai, parlamentares também aprovaram medidas para proibir a produção e a venda de carnes cultivadas, com discursos em defesa da pecuária tradicional.

Só em Singapura e em Israel esse tipo de produto já é comercializado para consumo, de acordo com o Good Food Institute (GFI). A organização promove a pesquisa de bifes cultivados em laboratório e de outras alternativas ao abate de animais, como proteínas baseadas em vegetais e produtos fermentados.

Com o avanço de investimentos do mercado privado e a necessidade de combater o desmatamento e as emissões de metano do gado, Alexandre Cabral, vice-presidente de políticas públicas do GFI, avalia que o principal desafio da carne cultivada no momento é o de “engenharia”: reduzir os custos de produção para ganhar escala.

Cabral também avalia que o PL de Medeiros viola a Constituição Federal. “O artigo 218 diz que o Estado promoverá o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica”, argumenta.

•        ‘Preocupação é falta de informação’

A primeira tentativa de produção de carne cultivada no Brasil teve início em 2021, por meio de uma parceria da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade de São Paulo (USP).

O projeto ganhou financiamento de quase R$ 1 milhão de um edital aberto pelo GFI. Os pesquisadores começaram o protótipo com o cultivo de células extraídas de frangos, misturadas a carboidratos e minerais. A expectativa é de que a pesquisa seja concluída ainda neste ano, com a finalização de laudos nutricionais e toxicológicos.  

“O Brasil tem que estudar. Somos o maior exportador mundial de frango. Por que não exportar também um ingrediente ou produto final cultivado?”, questiona a pesquisadora-chefe do projeto, Vivian Feddern, da Embrapa Aves e Suínos. “Não tem o menor sentido a preocupação de pecuaristas. É totalmente falta de informação”, acrescenta.

A especialista avalia que a eventual viabilidade comercial da carne cultivada dependerá não só do barateamento do custo de produção, mas também da funcionalidade nutricional. “A análise toxicológica e nutricional vai mostrar quanto de proteína tem. Se tiver pouco, ninguém vai querer comer, a não ser por questão ambiental”, afirma.

A pesquisadora da Embrapa é otimista ao falar das potenciais qualidades da carne de laboratório. “É um alimento que pode ser personalizado. Se você estiver com deficiência de ferro, pode pedir carne cultivada com [mais] ferro”, explica.

Ainda segundo ela, o produto elimina as doenças zoonóticas, transmitidas por animais. “Na vida real, planta de frigorífico tem contaminação de salmonela, gripe aviária, etc. Na carne cultivada, não se cultiva intestino e sangue”, complementa.

A carne cultivada mobiliza também investimentos milionários de gigantes do mercado de proteína animal. Líder mundial do segmento, a JBS anunciou aporte superior a R$ 300 milhões para construir seu primeiro centro de pesquisa de proteínas cultivadas, no Sapiens Parque, em Florianópolis (SC).

•        Carne cultivada é um ultraprocessado?

Mas os produtos cultivados em laboratório também acendem preocupações em pesquisadores. Para alguns, esses produtos podem inclusive ser considerados um novo tipo de “ultraprocessados”, como são chamados os alimentos fabricados em várias etapas de industrialização, à base da adição de químicos e componentes prejudiciais à saúde.

“É importante a discussão, porque tem toda a questão ambiental. Mas talvez o caminho seja comer menos carne e não inventar outra coisa. Vamos comer feijão, grão de bico”, finaliza a professora Daniela Canella, da UERJ.

 

       Bancada ruralista ignora ciência para defender ultraprocessados no Congresso

 

NUGGETS, SUCO EM PÓ, salgadinho de pacote, miojo e bolacha. Os chamados alimentos “ultraprocessados” representam uma ameaça à saúde, como mostram os estudos científicos mais recentes.

No entanto, a bancada ruralista no Congresso Nacional vem abraçando a tese de que esses produtos não são tão ruins assim. Com assessoria técnica de um instituto financiado pela indústria de alimentos e por associações do agronegócio, eles defendem que os ultraprocessados podem até ser saudáveis e não devem ser restringidos por políticas públicas.

A Repórter Brasil identificou ao menos seis projetos de lei (PLs) em que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da bancada ruralista, tentou interferir para beneficiar os fabricantes de ultraprocessados nos últimos cinco anos.

A FPA reúne 374 deputados e senadores, três quintos do Congresso. O discurso a favor dos ultraprocessados contraria uma série de evidências científicas que associam o consumo de produtos do tipo a 32 problemas de saúde, como câncer, diabetes e obesidade, e a 57 mil mortes precoces ao ano só no Brasil. A classificação de alimentos de acordo com seu grau de processamento é adotada pelo Ministério da Saúde desde 2014.

Quando um projeto de lei menciona o termo “ultraprocessado”, a bancada ruralista usa seus “resumos executivos” – documentos de orientação – para dar pareceres que atacam a própria noção de ultraprocessados, como mostram documentos publicados pela frente parlamentar analisados pela reportagem.

“A briga é para tirar toda a legitimidade do próprio conceito”, resume o cientista político Pedro Vasconcellos, assessor de advocacy da FIAN Brasil, organização vinculada ao Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ). “Mencionar ultraprocessados em uma legislação vira um problema”, acrescenta.

A Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por exemplo, limita em até 20% os gastos na compra de alimentos processados e ultraprocessados para merendas. Porém, o termo “ultraprocessados” só aparece no regramento porque foi incluído em uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que não precisa passar pela aprovação do Congresso.

O Guia Alimentar do Ministério da Saúde define ultraprocessados como  “formulações industriais” que envolvem diversas etapas de processamento e que adicionam ingredientes como sal, gorduras, açúcares, entre outras substâncias de uso exclusivamente industrial para imitar sabores, cores ou aumentar a durabilidade do produto. São refeições instantâneas, iogurtes saborizados ou molhos prontos, por exemplo.

No início do mês, o governo federal anunciou a nova composição da cesta básica, sem ultraprocessados.

•        O agro é refrigerante, embutido e biscoito

Desde 2011, a FPA recebe “assessoria” técnica do Instituto Pensar Agro, uma organização financiada pelas principais entidades representativas da cadeia do agronegócio – entre elas, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que reúne gigantes do setor como Nestlé, BRF, Cargill, Ambev e Coca-Cola.

À Repórter Brasil, a Abia disse preferir não se manifestar sobre eventuais orientações repassadas à bancada do agro. A FPA, por sua vez, ignorou as tentativas de contato da reportagem.

Um exemplo da interferência do lobby do agro ocorreu em junho de 2023, quando o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) inseriu a diretriz “evitar ultraprocessados” no texto da lei que recriaria o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal. Na ocasião, a FPA orientou a bancada a firmar posição contra o trecho.

“Restringir a aquisição de determinados tipos de alimentos, definidos de forma contestável pela ciência e tecnologia de alimentos, em nada contribui para a formação de hábitos alimentares saudáveis, que só podem ser obtidos por meio da educação alimentar”, disse a nota da entidade, que também negou a ligação entre o consumo de ultraprocessados e a obesidade.

Na sessão que votou o projeto, em julho de 2023, o próprio presidente da FPA, o deputado Pedro Lupion (PP-PR), propôs uma emenda removendo a inserção de Boulos. “A ideia é reduzir o texto, tirar essa menção, até porque há uma problemática na compreensão do que são os alimentos ultraprocessados. Não há uma definição técnica sobre essa terminologia”, disse em plenário o deputado Tião Medeiros (PP-PR) que substituiu Lupion na hora da votação. No fim, a remoção foi aceita e o PAA acabou aprovado pelo Congresso sem a menção aos ultraprocessados, sendo sancionado por Lula naquele mês..

•        ‘Indústria nega e distorce’

Na avaliação da nutricionista Nadine Marques, pesquisadora-assistente da Cátedra Josué de Castro da Universidade de São Paulo (USP), as orientações da FPA são “todas muito parecidas com o discurso da Abia”, a associação de indústrias de alimentos que está entre os apoiadores da bancada ruralista. “Um ponto marcante é a não aceitação da classificação a partir do grau e extensão de processamento de alimentos, que deu origem ao termo ‘ultraprocessados’”, diz Marques.

Batizada de “NOVA” e desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), a classificação já é usada em políticas públicas de ao menos seis outros países – como Canadá, Israel e Uruguai. Ela também norteia estudos da Agência Internacional do Câncer (IARC) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ambas ligadas à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Marques explica que, no início do século 20, a ciência analisava os alimentos pelas moléculas que os compõem, o que criou uma subdivisão entre nutrientes vilões (por exemplo, gorduras saturadas ou açúcar) e mocinhos (vitaminas e minerais) – paradigma que ficou conhecido como “nutricionismo”.

A partir dos anos 1980, no entanto, os índices de obesidade dispararam,  mesmo com a redução do consumo dos “vilões”. “Se sabíamos quais os nutrientes perigosos e conseguíamos controlá-los, manipulando-os industrialmente, por que os índices de doenças crônicas continuavam aumentando?”, questiona Marques.

A partir dos anos 2010, mais pesquisas passaram a investigar como o grau de processamento de alimentos, e não nutrientes específicos, estava ligado ao surgimento de doenças, o que reforçou a necessidade de se analisar todo um processo de produção que vai do campo à indústria até chegar à mesa do consumidor. “A classificação NOVA é simbólica desse novo paradigma da nutrição, que passa a olhar para os sistemas alimentares como um todo”, diz a nutricionista.

•        Desinformação no Congresso e nas redes

Para enfrentar esse avanço recente da ciência, a indústria de alimentos mobiliza argumentos “nutricionistas” em seu lobby no Legislativo. Um projeto de lei de 2022 do ex-deputado federal Coronel Armando propunha a criação de advertências em embalagens e restrições à propaganda desses produtos. A proposta era que rótulos e publicidade incluíssem avisos de riscos à saúde. Porém,a FPA orientou a bancada a se opor à ideia.

“Ter uma alimentação saudável significa comer com moderação todos os tipos de alimentos, respeitadas suas características nutricionais”, justificou a nota da FPA divulgada à época. “A proposta tem objetivo de estigmatizar produtos da indústria de alimentos, que são altamente regulados e não possuem, por si próprios, potencial para prejudicar a saúde do consumidor”, concluiu o documento, em frontal oposição aos estudos científicos sobre o tema. O PL está parado sem relatoria em uma comissão da Câmara desde 2022.

A defesa da indústria alimentícia contrasta com o discurso da FPA de reforçar a produção de alimentos saudáveis e de qualidade, no lugar de alimentos prontos e com excesso de ingredientes que fazem mal à saúde. Em janeiro de 2023, por exemplo, um estudo do NetLab, o laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),  concluiu que a FPA publicava anúncios no Facebook e Instagram – pagos pelo Instituto Pensar Agro – que espalhavam desinformação sobre agrotóxicos, regulação ambiental e movimentos sociais.

“Isso de pensarmos no pequeno produtor quando pensamos em agro é resultado de uma ótima campanha de comunicação”, diz a pesquisadora Débora Salles, coordenadora do NetLab, que realizou o estudo. “Eles tentam reforçar que o agricultor familiar é protagonista, mas existe um movimento simultâneo de esconder os verdadeiros interesses que estão por trás, que são os das grandes corporações”, avalia Salles.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

Nenhum comentário: