Deputados pecuaristas querem impedir
pesquisas sobre ‘carne de laboratório’
“BOLSA-CARNE” para a
população de baixa renda e proteína suína obrigatória na merenda escolar: há
anos o lobby dos pecuaristas tenta emplacar propostas como essas no Congresso
Nacional para alavancar seus negócios.
Agora, além de
patrocinar medidas para impulsionar a venda de bife, essa ala da bancada
ruralista também atua para dificultar pesquisas científicas sobre as chamadas
“carnes animais cultivadas”. A partir de técnicas de genética, elas são
fabricadas em laboratório, sem a necessidade de criação e abate de rebanhos.
Filho e irmão de
pecuarista, o deputado federal Tião Medeiros (PP-PR), ex-presidente da Comissão
de Agricultura da Câmara, apresentou no começo de março um projeto de decreto
legislativo (PDL 27/2024) para anular uma resolução da Anvisa (Agência Nacional
de Vigilância Sanitária) que trata da “comprovação de segurança e a autorização
de uso de novos alimentos e novos ingredientes”.
Publicada em dezembro,
a resolução permite ao órgão federal analisar pedidos de produção e
comercialização de proteína fabricada em laboratório. Segundo a justificativa
do projeto de lei, “o ato normativo combatido com a presente proposição
contribui para ampliar os riscos sanitários dos alimentos e, em razão disso,
deve ser eliminado do ordenamento jurídico”.
Seis meses antes,
Medeiros já havia apresentado outro PL (4616/2023) para proibir a “pesquisa
privada, produção, reprodução, importação, exportação e comercialização de
carne animal cultivada”. O texto sustenta que a “medida é necessária para
proteger a indústria pecuária nacional”.
Apesar dos familiares
envolvidos com o negócio da pecuária, Medeiros afirma não ter interesse pessoal
em barrar a concorrência da carne de laboratório. “O objetivo do meu projeto é
aprofundar o debate sobre o assunto para que tenhamos uma regulamentação que
priorize a saúde humana. Mas estamos abertos ao diálogo”, sustenta.
• ‘Lobby da pecuária é muito poderoso’
Até o presente
momento, as proposições contra a carne cultivada não avançaram para votação.
Porém, as iniciativas levantam questionamentos sobre potenciais conflitos de
interesses, já que parlamentares ligados à pecuária estariam legislando em
causa própria, afirmam fontes ouvidas pela reportagem.
“Os lobbies da
pecuária e da agricultura são muito poderosos. Mas não é só lobista que está
atuando. Há deputados que são, eles próprios, pecuaristas”, explica a
pesquisadora Daniela Canella, professora de nutrição da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ).
No caso do ainda
inexistente mercado de proteínas animais cultivadas, o projeto de Medeiros
tramita junto à proposta de outro deputado criador de boi: Lucio Mosquini
(MDB-RO). Em novembro, ele apresentou o PL 5402/2023, para impor moratória
técnica e científica à pesquisa e à produção de carne animal cultivada. Dois
meses antes, ele havia protocolado proposta para ajudar pecuaristas, com a
criação de uma linha emergencial de crédito rural.
Em entrevista à
Repórter Brasil, Mosquini alegou que não enxerga conflito de interesses nos
seus projetos porque possui apenas “um pouquinho de gado”, considerando o
rebanho bovino total do país, oficialmente estimado em cerca de 234 milhões de
animais.
“Devo ter 600 ou 700
cabeças de gado. Então, jamais pode-se falar de conflito de interesse para quem
tem um pouquinho de gado como eu”, argumenta Mosquini. “Meu projeto tem cunho
personalístico, sim. Pelo fato de ser produtor rural, eu tenho que realmente
defender os conceitos que prego. Se eu fosse um artista ou músico, estava
lutando pela cultura. Entendo que temos que repensar o avanço de tudo que não
for natural, não só na carne sintética”, complementa o deputado.
• Outros países também tentaram barrar
carne cultivada
A investida
legislativa contra a carne de laboratório não ocorre só no Brasil. Na Itália e
no Paraguai, parlamentares também aprovaram medidas para proibir a produção e a
venda de carnes cultivadas, com discursos em defesa da pecuária tradicional.
Só em Singapura e em
Israel esse tipo de produto já é comercializado para consumo, de acordo com o
Good Food Institute (GFI). A organização promove a pesquisa de bifes cultivados
em laboratório e de outras alternativas ao abate de animais, como proteínas
baseadas em vegetais e produtos fermentados.
Com o avanço de
investimentos do mercado privado e a necessidade de combater o desmatamento e
as emissões de metano do gado, Alexandre Cabral, vice-presidente de políticas
públicas do GFI, avalia que o principal desafio da carne cultivada no momento é
o de “engenharia”: reduzir os custos de produção para ganhar escala.
Cabral também avalia
que o PL de Medeiros viola a Constituição Federal. “O artigo 218 diz que o
Estado promoverá o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação
tecnológica”, argumenta.
• ‘Preocupação é falta de informação’
A primeira tentativa
de produção de carne cultivada no Brasil teve início em 2021, por meio de uma
parceria da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) com a
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade de São Paulo
(USP).
O projeto ganhou
financiamento de quase R$ 1 milhão de um edital aberto pelo GFI. Os
pesquisadores começaram o protótipo com o cultivo de células extraídas de
frangos, misturadas a carboidratos e minerais. A expectativa é de que a
pesquisa seja concluída ainda neste ano, com a finalização de laudos
nutricionais e toxicológicos.
“O Brasil tem que
estudar. Somos o maior exportador mundial de frango. Por que não exportar
também um ingrediente ou produto final cultivado?”, questiona a
pesquisadora-chefe do projeto, Vivian Feddern, da Embrapa Aves e Suínos. “Não
tem o menor sentido a preocupação de pecuaristas. É totalmente falta de
informação”, acrescenta.
A especialista avalia
que a eventual viabilidade comercial da carne cultivada dependerá não só do
barateamento do custo de produção, mas também da funcionalidade nutricional. “A
análise toxicológica e nutricional vai mostrar quanto de proteína tem. Se tiver
pouco, ninguém vai querer comer, a não ser por questão ambiental”, afirma.
A pesquisadora da
Embrapa é otimista ao falar das potenciais qualidades da carne de laboratório.
“É um alimento que pode ser personalizado. Se você estiver com deficiência de
ferro, pode pedir carne cultivada com [mais] ferro”, explica.
Ainda segundo ela, o
produto elimina as doenças zoonóticas, transmitidas por animais. “Na vida real,
planta de frigorífico tem contaminação de salmonela, gripe aviária, etc. Na
carne cultivada, não se cultiva intestino e sangue”, complementa.
A carne cultivada
mobiliza também investimentos milionários de gigantes do mercado de proteína
animal. Líder mundial do segmento, a JBS anunciou aporte superior a R$ 300
milhões para construir seu primeiro centro de pesquisa de proteínas cultivadas,
no Sapiens Parque, em Florianópolis (SC).
• Carne cultivada é um ultraprocessado?
Mas os produtos
cultivados em laboratório também acendem preocupações em pesquisadores. Para
alguns, esses produtos podem inclusive ser considerados um novo tipo de
“ultraprocessados”, como são chamados os alimentos fabricados em várias etapas
de industrialização, à base da adição de químicos e componentes prejudiciais à
saúde.
“É importante a
discussão, porque tem toda a questão ambiental. Mas talvez o caminho seja comer
menos carne e não inventar outra coisa. Vamos comer feijão, grão de bico”,
finaliza a professora Daniela Canella, da UERJ.
Bancada ruralista ignora ciência para
defender ultraprocessados no Congresso
NUGGETS, SUCO EM PÓ,
salgadinho de pacote, miojo e bolacha. Os chamados alimentos “ultraprocessados”
representam uma ameaça à saúde, como mostram os estudos científicos mais
recentes.
No entanto, a bancada
ruralista no Congresso Nacional vem abraçando a tese de que esses produtos não
são tão ruins assim. Com assessoria técnica de um instituto financiado pela
indústria de alimentos e por associações do agronegócio, eles defendem que os
ultraprocessados podem até ser saudáveis e não devem ser restringidos por
políticas públicas.
A Repórter Brasil
identificou ao menos seis projetos de lei (PLs) em que a Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA), braço institucional da bancada ruralista, tentou interferir
para beneficiar os fabricantes de ultraprocessados nos últimos cinco anos.
A FPA reúne 374
deputados e senadores, três quintos do Congresso. O discurso a favor dos
ultraprocessados contraria uma série de evidências científicas que associam o
consumo de produtos do tipo a 32 problemas de saúde, como câncer, diabetes e
obesidade, e a 57 mil mortes precoces ao ano só no Brasil. A classificação de
alimentos de acordo com seu grau de processamento é adotada pelo Ministério da
Saúde desde 2014.
Quando um projeto de
lei menciona o termo “ultraprocessado”, a bancada ruralista usa seus “resumos
executivos” – documentos de orientação – para dar pareceres que atacam a
própria noção de ultraprocessados, como mostram documentos publicados pela
frente parlamentar analisados pela reportagem.
“A briga é para tirar
toda a legitimidade do próprio conceito”, resume o cientista político Pedro
Vasconcellos, assessor de advocacy da FIAN Brasil, organização vinculada ao
Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ). “Mencionar ultraprocessados em uma
legislação vira um problema”, acrescenta.
A Política Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), por exemplo, limita em até 20% os gastos na compra
de alimentos processados e ultraprocessados para merendas. Porém, o termo
“ultraprocessados” só aparece no regramento porque foi incluído em uma resolução
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que não precisa passar
pela aprovação do Congresso.
O Guia Alimentar do
Ministério da Saúde define ultraprocessados como “formulações industriais” que envolvem
diversas etapas de processamento e que adicionam ingredientes como sal,
gorduras, açúcares, entre outras substâncias de uso exclusivamente industrial
para imitar sabores, cores ou aumentar a durabilidade do produto. São refeições
instantâneas, iogurtes saborizados ou molhos prontos, por exemplo.
No início do mês, o
governo federal anunciou a nova composição da cesta básica, sem
ultraprocessados.
• O agro é refrigerante, embutido e
biscoito
Desde 2011, a FPA
recebe “assessoria” técnica do Instituto Pensar Agro, uma organização
financiada pelas principais entidades representativas da cadeia do agronegócio
– entre elas, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que
reúne gigantes do setor como Nestlé, BRF, Cargill, Ambev e Coca-Cola.
À Repórter Brasil, a
Abia disse preferir não se manifestar sobre eventuais orientações repassadas à
bancada do agro. A FPA, por sua vez, ignorou as tentativas de contato da
reportagem.
Um exemplo da
interferência do lobby do agro ocorreu em junho de 2023, quando o deputado
federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) inseriu a diretriz “evitar ultraprocessados”
no texto da lei que recriaria o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do
governo federal. Na ocasião, a FPA orientou a bancada a firmar posição contra o
trecho.
“Restringir a
aquisição de determinados tipos de alimentos, definidos de forma contestável
pela ciência e tecnologia de alimentos, em nada contribui para a formação de
hábitos alimentares saudáveis, que só podem ser obtidos por meio da educação
alimentar”, disse a nota da entidade, que também negou a ligação entre o
consumo de ultraprocessados e a obesidade.
Na sessão que votou o
projeto, em julho de 2023, o próprio presidente da FPA, o deputado Pedro Lupion
(PP-PR), propôs uma emenda removendo a inserção de Boulos. “A ideia é reduzir o
texto, tirar essa menção, até porque há uma problemática na compreensão do que
são os alimentos ultraprocessados. Não há uma definição técnica sobre essa
terminologia”, disse em plenário o deputado Tião Medeiros (PP-PR) que
substituiu Lupion na hora da votação. No fim, a remoção foi aceita e o PAA
acabou aprovado pelo Congresso sem a menção aos ultraprocessados, sendo
sancionado por Lula naquele mês..
• ‘Indústria nega e distorce’
Na avaliação da
nutricionista Nadine Marques, pesquisadora-assistente da Cátedra Josué de
Castro da Universidade de São Paulo (USP), as orientações da FPA são “todas
muito parecidas com o discurso da Abia”, a associação de indústrias de
alimentos que está entre os apoiadores da bancada ruralista. “Um ponto marcante
é a não aceitação da classificação a partir do grau e extensão de processamento
de alimentos, que deu origem ao termo ‘ultraprocessados’”, diz Marques.
Batizada de “NOVA” e
desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em
Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), a classificação já
é usada em políticas públicas de ao menos seis outros países – como Canadá,
Israel e Uruguai. Ela também norteia estudos da Agência Internacional do Câncer
(IARC) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ambas ligadas à
Organização Mundial da Saúde (OMS).
Marques explica que,
no início do século 20, a ciência analisava os alimentos pelas moléculas que os
compõem, o que criou uma subdivisão entre nutrientes vilões (por exemplo,
gorduras saturadas ou açúcar) e mocinhos (vitaminas e minerais) – paradigma que
ficou conhecido como “nutricionismo”.
A partir dos anos
1980, no entanto, os índices de obesidade dispararam, mesmo com a redução do consumo dos “vilões”.
“Se sabíamos quais os nutrientes perigosos e conseguíamos controlá-los,
manipulando-os industrialmente, por que os índices de doenças crônicas
continuavam aumentando?”, questiona Marques.
A partir dos anos
2010, mais pesquisas passaram a investigar como o grau de processamento de
alimentos, e não nutrientes específicos, estava ligado ao surgimento de
doenças, o que reforçou a necessidade de se analisar todo um processo de
produção que vai do campo à indústria até chegar à mesa do consumidor. “A
classificação NOVA é simbólica desse novo paradigma da nutrição, que passa a
olhar para os sistemas alimentares como um todo”, diz a nutricionista.
• Desinformação no Congresso e nas redes
Para enfrentar esse
avanço recente da ciência, a indústria de alimentos mobiliza argumentos
“nutricionistas” em seu lobby no Legislativo. Um projeto de lei de 2022 do
ex-deputado federal Coronel Armando propunha a criação de advertências em
embalagens e restrições à propaganda desses produtos. A proposta era que
rótulos e publicidade incluíssem avisos de riscos à saúde. Porém,a FPA orientou
a bancada a se opor à ideia.
“Ter uma alimentação
saudável significa comer com moderação todos os tipos de alimentos, respeitadas
suas características nutricionais”, justificou a nota da FPA divulgada à época.
“A proposta tem objetivo de estigmatizar produtos da indústria de alimentos,
que são altamente regulados e não possuem, por si próprios, potencial para
prejudicar a saúde do consumidor”, concluiu o documento, em frontal oposição
aos estudos científicos sobre o tema. O PL está parado sem relatoria em uma
comissão da Câmara desde 2022.
A defesa da indústria
alimentícia contrasta com o discurso da FPA de reforçar a produção de alimentos
saudáveis e de qualidade, no lugar de alimentos prontos e com excesso de
ingredientes que fazem mal à saúde. Em janeiro de 2023, por exemplo, um estudo do
NetLab, o laboratório de pesquisa em internet e redes sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
concluiu que a FPA publicava anúncios no Facebook e Instagram – pagos
pelo Instituto Pensar Agro – que espalhavam desinformação sobre agrotóxicos,
regulação ambiental e movimentos sociais.
“Isso de pensarmos no
pequeno produtor quando pensamos em agro é resultado de uma ótima campanha de
comunicação”, diz a pesquisadora Débora Salles, coordenadora do NetLab, que
realizou o estudo. “Eles tentam reforçar que o agricultor familiar é protagonista,
mas existe um movimento simultâneo de esconder os verdadeiros interesses que
estão por trás, que são os das grandes corporações”, avalia Salles.
Fonte: Repórter Brasil
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