Como o Ceará se tornou o primeiro lugar do
Brasil a abolir a escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea
Um dos principais
teatros do Rio de Janeiro de 140 anos atrás, o Polytheama Fluminense, teve uma
noite histórica em 25 de março de 1884. Foi quando se ouviu primeira vez, a
marcha para orquestra Marselhesa dos Escravos, "numa festa em honra ao
Ceará livre" — conforme registrou o antigo jornal Rua do Ouvidor, em uma
edição comemorativa ao movimento abolicionista.
A música foi composta
e regida por Antônio Cardoso de Menezes (1848-1915), um dos mais renomados
musicistas do período conhecido como segundo império brasileiro.
Eram os ecos de um
acontecimento histórico ocorrido naquele mesmo dia a cerca de 2,5 mil
quilômetros da capital do país: na então província do Ceará estava extinta a
escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea decretar o fim desse regime de
trabalho forçado em todo o território nacional.
A declaração coube ao
médico e político Sátiro de Oliveira Dias (1844-1913), então presidente da
província. De acordo com informações do Senado, ele teria dito que "para a
glória imortal do povo cearense e em nome e pela vontade desse mesmo povo, proclamo
ao país e ao mundo que a província do Ceará não possui mais escravos".
Reverberou a notícia
não só localmente. Um dos mais importantes nomes do movimento abolicionista, o
farmacêutico e jornalista José do Patrocínio (1853-1905) estava em Paris e
enviou uma carta ao escritor Victor Hugo (1802-1885), participando a ele a novidade.
A carta de resposta do francês afirmava que a iniciativa cearense era um sinal
de que "a barbárie recua e a civilização avança".
"O grande
significado, o maior impacto [do fato ocorrido no Ceará] foi ter efetivamente
começado, ter sido a primeira abolição do Brasil. Logo depois veio no Amazonas
[em 10 de julho do mesmo ano] e isso mostrava que era um caminho que se
fortalecia", analisa à BBC News Brasil a historiadora Martha Abreu,
professora na Universidade Federal Fluminense e pesquisadora na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
"O movimento
abolicionista estava ganhando os seus primeiros resultados e o país já não era
só escravista", acrescenta ela. "Foi uma vitória simbólica e política
que teve enorme repercussão, animando o movimento abolicionista."
Professor na
Universidade Estadual Paulista, o historiador Paulo Henrique Martinez enfatiza
que, após o ato, "o fim do trabalho escravo se tornava uma realidade
econômica e social concreta" no Brasil.
"Uma opção
política sem riscos para os grandes proprietários rurais que tinham investido
recursos na aquisição e manutenção de cativos", diz ele, à BBC News
Brasil.
Ele também destaca o
"efeito multiplicador" do ocorrido, algo buscado pelas campanhas
abolicionistas. "A abolição mostrava-se como o resultado de ações
efetivas, de uma campanha ativa e dinâmica, impulsionada pela sensibilização e
o engajamento da opinião pública e pela mobilização de maior apoio político e
social", afirma.
"Este foi o
primeiro êxito coletivo, ultrapassando as vitórias alcançadas em situações
individuais, localizadas e de pequenos grupos, como o apoio clandestino a
fugas, a compra de alforrias ou iniciativas humanitárias e piedosas de senhores
de terras e proprietários de cativos em áreas urbanas."
Pesquisador no grupo
Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista, e
professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor
Missiato situa a abolição no Ceará como "um marco dentro de um movimento
amplo pelo fim da escravidão".
"Representa um
marco político institucional, para além de um marco cultural, social e
histórico", avalia ele, à BBC News Brasil. "Marca o início da
abolição e isso ocorra dentro das instâncias representativas, dentro de um
império que não estava mais tão centralizador como antes."
Missato atenta para o
fato de que o ato denota que havia "uma flexibilidade provincial" e
uma certa "autonomia provincial" dentro do império.
“É interessante pensar
e falar sobre esse momento porque a gente fala sobre a abolição longe de uma
perspectiva do episódio. Tratar o 13 de maio de 1888 [data da Lei Áurea] como
um raio no céu azul é bastante complicado porque não é isso, [a abolição] é consequência
de um acúmulo de lutas de atores diversos, de sociedades”, argumenta à BBC News
Brasil o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, autor do livro Escravos da
Religião e pesquisador na Universidade Federal Fluminense.
“São essas pessoas que
conduzem a abolição e não uma canetada da princesa Isabel. Perceber a abolição
mais como um acúmulo de lutas do que como um episódio isolado é sempre muito
bem-vindo e interessante”, defende ele.
• Pouca dependência econômica da
escravidão
Mas é preciso analisar
o contexto da província cearense para entender como e por que esse marco
institucional ocorreu lá. E a primeira razão que explica esse pioneirismo está
não exclusivamente nas pressões sociais, mas também no viés econômico.
"Uma das razões é
que em 1872 os escravos eram apenas 4% da população do Ceará, e esse percentual
foi diminuindo em razão da venda de escravos cearenses para as regiões
cafeeiras de São Paulo", explica o historiador Renato Pinto Venancio,
professor na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de, entre outros,
Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil.
"A grande seca
dos anos 1877-1879 [na região] acelerou esse processo de venda de escravos para
outras regiões", salienta ele. "Em outras palavras, no início da
década de 1880, a classe dominante local não dependia mais economicamente dos escravos."
Abreu concorda.
"Precisamos ver que a escravidão negra não era o carro chefe da mão de
obra no Ceará, não era fundamental para o movimento econômico de lá. Havia
muitos trabalhadores já libertos, muitos indígenas escravizados ou não, então
há uma importância não tão grande da mão de obra escrava negra, o que faz não
haver uma classe senhorial que se agarrasse na escravidão como se aquilo, caso
acabasse, representasse a sua morte", lembra a historiadora.
"A dinâmica
econômica naquela província, por um lado, foi revelando a obsolescência e a
inviabilidade da mão de obra cativa e, por outro, a organização e atuação de
associações e de líderes abolicionistas e que assumiu, naquelas circunstâncias,
dimensões e eficácia política singular", diz Martinez.
"A
excepcionalidade do que aconteceu no Ceará é testemunha dessa circunscrição ao
contexto regional e cearense pois o fato não se repetiu em nenhuma outra
província do Império."
Missiato lembra do
contexto abolicionista brasileiro, sobretudo depois de leis restringindo e,
depois, proibindo o chamado tráfico negreiro, ou seja, a chegada de novos
escravizados, pelo Atlântico, diretamente da África.
Isto acabou
intensificando um comércio interno de escravizados. E o nordeste se tornou um
grande fornecedor para o sudeste, onde a cafeicultura ia crescendo e absorvendo
mais mão de obra.
"Com o café já
deslocando o centro do poder econômico do país para o sul, muitos escravos
começam a sair da região nordeste por meio do tráfico interno", comenta.
"É um contexto que deixou o número de escravos ao norte muito reduzido."
Especificamente no
Ceará, isso era ainda mais intenso. "Porque ali, historicamente, a
agricultura de cana de açúcar não era a única grande produção econômica. Havia
pecuária, circulação comercial e atividades que não exigiam tanto a mão de obra
escrava. Além disso, a presença indígena era muito forte", analisa ele.
• Movimento abolicionista
Contudo, o contexto
social, político e histórico também não pode ser negligenciado. A luta de parte
da sociedade pela abolição era grande em diversos pontos do país — e o Ceará
fazia parte desse movimento.
"Havia no Ceará a
partir de 1850 um movimento político intelectual muito forte, com impacto na
opinião pública e uma incipiente sociedade civil, que lutava pelas ideias
abolicionistas e absorviam as ideias que vinham de fora", diz Missiato.
"A conjuntura do
movimento abolicionista era uma realidade no Brasil", acrescenta Abreu.
"E,
principalmente a partir dos anos 1880, tinha ramificações em todas as grandes
cidades. Estava enraizado nos setores intelectuais, entre os letrados. Era um
movimento urbano, artístico e social muito importante, junto a irmandades
negras e associações de trabalhadores."
O historiador Martinez
ressalta a participação da elite.
"Convém lembrar
que a base social do abolicionismo no Ceará contou com representantes de grupos
econômicos poderosos, os seus contatos no Rio de Janeiro, acesso e influência
parlamentar na Assembleia do Império", pontua.
"No início da
década de 1880 surgiram agremiações de abolicionistas na província. Em 1882,
José do Patrocínio participou de atos e encontros pelo fim da escravidão no
Brasil. Em 1883, foi criada a Confederação Abolicionista com a finalidade de
coordenar campanhas e ações em todas as províncias do Império. A Sociedade
Abolicionista Cearense integrou o agrupamento de entidades associativas que
esteve na origem desta Confederação."
• Jangadeiros
Houve nessa província
um antecedente importante da luta. Por isso, Venancio atenta que, "apesar
dessas condições estruturais favoráveis", não pode ser esquecido o papel
do movimento abolicionista no episódio de 1884. "Ele [o abolicionismo]
existiu no Ceará e inclusive teve apoio popular, como no caso dos
jangadeiros", afirma.
Abreu comenta que os
jangadeiros "foram um grande exemplo" do movimento abolicionista
naquela região.
Em janeiro de 1881, os
jangadeiros que atuavam no Porto de Fortaleza decidiram fazer uma greve,
fechando o porto ao tráfico de escravizados. A ação foi liderada pela Sociedade
Libertadores Cearense. Até 1884, esse movimento teve altos e baixos, inclusive
com confrontos entre os militantes e a polícia.
Os ânimos só começaram
a ser apaziguados quando Sátiro Dias assumiu o governo da província, em 1883.
Simpático às ideias abolicionistas, ele passou a dialogar com os grevistas e,
claro, a extinção da escravidão no Ceará acabou sendo a hábil solução do político.
• Repercussão
"Uma medida
dessas [a abolição cearense] soltou a chama da liberdade, que se espalhou pelo
país inteiro, ainda que naquela época as notícias demorassem um pouco mais para
serem conhecidas", afirma à BBC News Brasil o advogado Humberto Adami, presidente
da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão da Ordem dos Advogados (OAB) do
Brasil no Rio de Janeiro, vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade da
Escradião Negra do conselho federal da OAB e presidente da Comissão de
Igualdade Racial do Instituto dos Advogados Brasileiros.
"A primeira
notícia de abolição da escravidão acabou fazendo com que seguidores dessas
ideias seguissem lutando por elas", complementa.
A historiadora Abreu
lembra que, nesse momento, havia uma verdadeira rede de abolicionistas, com
intercâmbio de informações. "E o Ceará acaba ganhando uma projeção
enorme", ressalta ela.
"Foi o primeiro
rompimento da ordem escravista nacional. Saiu em todos os lugares. Teve
comemorações em Londres e Paris, afinal a rede abolicionista era internacional.
O Ceará passou a fazer parte, junto a outros locais, dessa evidência do fim da
escravidão. Quanto mais territórios livres houvesse no mundo, melhor",
analisa.
Venancio comenta que
"a recepção da abolição do Ceará na corte" foi "muito positiva e
acelerou a adesão ao abolicionismo".
"Os protagonistas
e as ações verificadas no Ceará foram saudados e aclamados pelos dirigentes e
participantes nas campanhas pela abolição em diferentes cidades, jornais e
pronunciamentos públicos, sobretudo no Rio de Janeiro. O líder dos jangadeiros
que promoveram o boicote ao desembarque de cativos no porto de Fortaleza,
posteriormente, foi recebido e festejado no Rio de Janeiro, proporcionando
aglomerações e animando discursos, artigos, conferências e conversas nas ruas,
teatros e salas de visitas", enumera Martinez.
"O debate sobre o
tema e os rumos a serem seguidos para abolir a escravidão em todo o Império
adquiria presença e crescente visibilidade pública. Nos gabinetes ministeriais,
nos discursos parlamentares, nos tribunais, nos círculos de negócio e do comércio
as opiniões, críticas e argumentos sobre a abolição eram aventadas e discutidas
abertamente, sendo incorporadas à agenda política até a Lei Áurea, em
1888."
Segundo o historiador,
a busca de uma solução política a curto prazo se tornou urgente, porque era
preciso espantar "o temor da participação popular e da autonomia que
adquiriram o protesto negro e a revolta dos cativos nas fazendas".
"Ainda que as resistências a ela tenham sido duras e persistentes nos
quatro anos seguintes aos episódios no Ceará", pondera ele.
Fonte: BBC News Brasil
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