As estratégias de sobrevivência em Gaza em
meio a noites frias e comida racionada
O dia havia amanhecido
com a notícia de que o presidente dos EUA, Joe Biden, esperava um cessar-fogo
iminente entre Israel e o Hamas, mas a
maioria da população na Faixa de Gaza não
conseguia pensar em nada além de em preparar algo para comer no café da manhã.
"Antes da guerra,
costumávamos comprar pão, agora nós fazemos o nosso", disse a jornalista
Aseel Mousa, de 26 anos.
A BBC passou o dia
acompanhando a vida de algumas pessoas em Gaza — enquanto
vasculhavam os mercados em busca de alimentos, trabalhavam em hospitais
superlotados e tentavam manter os filhos entretidos.
Houve períodos em que
ficamos sem notícias dos nossos contatos — as mensagens enviadas permaneciam
com apenas um tique no WhatsApp, e os telefonemas caiam direto na caixa postal.
O conflito
Israel-Hamas eclodiu em 7 de outubro do ano passado, quando homens armados do
Hamas se infiltraram no sul de Israel, matando mais de 1,2 mil pessoas e
fazendo outras 253 reféns.
Aproximadamente 130
reféns ainda estão sendo mantidos em Gaza — e não é possível falar com eles. Os
familiares em Israel ficam à espera, sem qualquer ideia das condições em que
estão sendo mantidos.
Pelo menos 29.800
palestinos foram mortos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, administrado
pelo Hamas.
A seguir,
compartilhamos como é atualmente um dia na vida em Gaza.
5h: Em Rafah, Sami Abu Omar, de 59 anos, acorda cedo depois de uma
"noite difícil".
"Qualquer pessoa
nesta situação precisa se acostumar a dormir apenas por uma hora a uma hora e
meia", diz ele, descrevendo o som dos bombardeios.
Depois de sair da
tenda, ele faz uma oração e segue para um centro de distribuição, onde vai
servir sopa de lentilha a famílias desalojadas.
7h: Na cidade de Deir al-Balah, a enfermeira Rewaa Mohsen troca as
fraldas das duas filhas pequenas. Uma delas nasceu dois dias antes da guerra.
Ela conta que todos os
dias agora segue a mesma rotina de tentar sobreviver e cuidar das crianças.
Depois de trocar as fraldas, ela prepara o café da manhã.
9h: Também em Deir al-Balah, a estudante de Medicina e médica
voluntária Nagham Mezied, de 22 anos, tira uma foto do seu café da manhã.
Ela costumava comer às
6h, mas recentemente vem postergando a refeição para tentar evitar ficar com
fome no fim do dia. O prato desta manhã chama-se mankouche — queijo, ervas,
pimenta e azeite no pão.
"Isso é tudo que
como até de noite, se tivermos sorte de fazer outra refeição, caso contrário,
isso é tudo até amanhã."
9h30: O advogado Mosa Aldous caminha por Rafah depois de uma noite
agitada em sua tenda. "Estava muito frio", diz ele.
Ele avista longas
filas em busca de água e comida, mas sua atenção nesta manhã está voltada a
encontrar conexão com a internet.
"Agora estou a
dois quilômetros da minha barraca, tentando encontrar sinal, mas ainda está
muito fraco. Estou andando devagar, devagar, cada vez mais distante da
tenda", afirma.
11h: A jornalista Aseel Mousa também está em Rafah, mas num
apartamento. Ela "aproveitou a oportunidade" para trabalhar um pouco
pela manhã, depois de descobrir que tinha energia elétrica e conexão com a
internet.
Agora, ela está
fazendo pão com a mãe. "Pegamos lenha, acendemos o fogo, preparamos a
massa, dividimos em porções, deixamos crescer. É isso que estamos fazendo
agora. Esse processo leva pelo menos três horas", diz ela.
11h: Por volta mais ou menos do mesmo horário, há uma comoção em
Rafah, quando o advogado Mosa Aldous vê ajuda sendo entregue de avião. Uma
multidão se reúne na praia.
"De repente,
ouvimos um barulho alto no céu, então saímos e vimos grandes aviões lançando
paraquedas com ajuda", ele conta.
11h30: De volta ao centro de distribuição de alimentos, Sami Abu
Omar avisa que quatro panelas grandes de sopa já foram servidas.
"Hoje está
nublado e pode chover em breve. Nossas mães, quando o tempo fica assim, fazem
sopa de lentilha, então preparamos também para os desalojados, para que se
sintam mais em casa", explica.
12h40: Aseel Mousa e a mãe terminaram de fazer o pão, que comeram
com feijão enlatado e ovos.
"Não estava bom,
não gosto de comida enlatada, mas é isso que está disponível em Gaza", ela
diz.
"Eu costumava
comer queijo e torrada de manhã, mas agora esse tipo de comida não está
disponível. Então não foi bom. Mas o pão estava perfeito porque eu e minha mãe
o preparamos."
No passado, Aseel
recorda que pedia para entregar o café da manhã em seu escritório: rolinhos de
canela ou outro tipo de doce.
Ela deixou o laptop na
casa de um vizinho que tem painéis solares para conseguir carregá-lo. Ela faz
isso todos os dias.
14h30: A enfermeira Rewaa Mohsen está tentando manter a filha
mais velha entretida.
"Ela tem os
primos para brincar. Também tem brinquedos", diz ela por mensagem no
WhatsApp. "Tentamos mantê-la ocupada para que não ouça as bombas."
Ela planeja tirar uma
soneca em breve com as duas filhas.
14h40: De volta a Rafah, o advogado Mosa Aldous conta que
desistiu de tentar encontrar uma conexão de internet. Em uma ligação cortada,
ele avisa que está novamente com sua família na tenda. A ligação cai.
15h30: A expectativa de Rewaa de tirar uma soneca não sai
conforme o planejado. Ela envia um vídeo da filha com os olhos arregalados
olhando para a câmera e adiciona um emoji sorridente.
"Ela recusa o
leite engarrafado. Dei um pouco para ela no primeiro mês, e depois disso não
estava disponível, por isso ela depende do leite materno", escreveu.
"Minha mãe e
minha única irmã foram mortas em novembro, e não tenho ninguém para me ajudar
com elas [as filhas]."
16h13: No Hospital dos Mártires de al-Aqsa, onde é voluntária,
Nagham Mezied faz uma reflexão sobre as "duras realidades da guerra".
"Transbordando de
pessoas desalojadas em busca de abrigo — (o hospital) se tornou um refúgio para
aqueles que perderam tudo: suas casas, seus entes queridos, sua sensação de
segurança."
Ela diz que as doenças
estão se espalhando — e que eles enfrentam escassez de equipamentos e
suprimentos básicos.
16h37: Rewaa manda uma foto do seu almoço — frango com pimentão e
azeitonas. Ela diz que os ingredientes custaram mais de US$ 40. Vai ser a
última refeição que ela vai fazer hoje.
"Somos abençoados
por podermos nos dar ao luxo de duas refeições. Algumas pessoas não conseguem
pagar por nenhuma", diz ela.
Enquanto alimenta as
filhas, ela também pensa em como o aumento dos preços está afetando a vida da
família.
A filha mais velha usa
as mesmas roupas de quando a guerra começou. E ela se esforça para conseguir
pagar pelas fraldas.
17h17: Aseel, a jornalista, relembra como sua vida era antes.
"Antes da guerra,
neste horário, eu costumava voltar do trabalho para casa, depois relaxava na
cama e conversava com a minha mãe sobre como havia sido meu dia. Agora, não é
apenas tédio — é ansiedade e tensão o tempo todo", diz ela por mensagem no
WhatsApp.
"Agora vamos
preparar o almoço, que vai ser ervilha em lata, porque não tem nada fresco. Na
verdade, só comemos comida enlatada."
19h45: A médica voluntária Nagham Mezied terminou seu turno há
algumas horas.
Ela sonha em tomar um
banho quente "para aliviar o cansaço do dia", mas não tem gás nem
água.
Ela se prepara para
fazer o jantar — provavelmente grão de bico e fava enlatados — e depois vai
dormir.
"O dia em Gaza
termina cedo porque não temos internet nem eletricidade -- não temos nada para
fazer. Tentamos dormir cedo e descansar um pouco, caso a noite traga bombas e
terror."
Ø
Ataque contra fila de comida em Gaza deixa
mais de 100 mortos
Um ataque israelense
durante uma fila que distribuía comida na Cidade de Gaza deixou
104 pessoas nesta quinta (29/2). As fontes israelenses confirmaram os
tiros contra a multidão, mas negaram a responsabilidade e o Exército israelense
citou que os moradores morreram pisoteados durante a distribuição de
ajuda humanitária.
"O número de
mortos no massacre da rua Al Rashid (onde os alimentos eram distribuídos) é de
104 mortos e 760 feridos", afirmou o porta-voz do Ministério da Saúde
de Gaza, Ashraf
Al Qudra. O primeiro balanço divulgado por um hospital da região
apontava 50 vítimas.
Testemunhas relataram
à AFP que avistaram milhares de pessoas correndo em direção
dos caminhões de ajuda humanitária que se aproximavam da rotatória de Nablus,
localizado ao oeste da Cidade de Gaza, que é a principal cidade do norte do
território.
A Organização das
Nações Unidas (ONU) calcula que 2,2 milhões de pessoas da Faixa de Gaza estão
ameaçadas pela fome, especialmente no norte do território, onde a destruição,
os combates e os saques praticamente impossibilitam a entrega de ajuda
humanitária.
Segundo a Agência das
Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (Unrwa), quase 2.300 caminhões de
ajuda humanitária entraram na Faixa de Gaza em fevereiro, com a média de 82
veículos por dia — quantidade 50% menor do que em janeiro.
·
EUA pede que Israel deixe muçulmanos irem à
mesquita Al Aqsa no ramadã
Os Estados Unidos
instaram Israel, nesta quarta-feira (28), a permitir que os muçulmanos rezem na
mesquita de Al Aqsa, em Jerusalém, durante o mês sagrado do ramadã, depois que
um ministro de extrema direita propôs proibir o acesso ao local dos palestinos
da Cisjordânia ocupada.
"No que diz
respeito a Al Aqsa, seguimos pedindo a Israel que facilite o acesso ao Monte do
Templo aos fiéis pacíficos durante o ramadã", como foi feito no passado,
disse a jornalistas o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, utilizando
o termo com o qual os judeus denominam o local, o mais sagrado do judaísmo.
Fonte: Por Alice Cuddy
(em Jerusalém) e Amira Mhadhbi, da BBC News e BBC Arabic/Correio Braziliense
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