A algoritmização do
divã: psicólogos e o trabalho em plataformas digitais
No
início dos debates sobre o trabalho algoritmizado, o foco estava naquilo que
era chamado de “uberização”, justamente, para dar ênfase à plataforma de
transporte. Mesmo incipiente e um tanto rudimentar, a discussão ainda estava
presa à forma de trabalho e na sua estrutura plataformizada não no modo em que
estava se construindo. A algoritmização do trabalho é um fenômeno denso e que
arregimenta um grande número de trabalhadores na famigerada falácia do “eu
empreendedor”, sem que percebam sua subserviência ao algoritmo. Não são
empreendedores e nunca serão donos dos seus meios de produção, são empregados
de um robô imaterial que é capaz de gerenciar suas atividades e podem,
eventualmente, excluir qualquer um da plataforma. O profissional algoritmizado
é alguém disposto a vender sua mão-de-obra (sem que isso seja necessariamente
uma escolha e raramente é), independente de qualificação ou natureza, por
valores baixos em uma estrutura digital capaz de precarizar seu ofício.
Antes,
o trabalho algoritmizado era constituído por profissionais de baixa ou nenhuma
qualificação, como motoristas e entregadores. Indubitavelmente, a
algoritmização não se limitaria ao ofício não qualificado. É uma questão de
tempo sua entrada em alguma atividade e, por via de regra, construir uma
estrutura de trabalho precarizada, marginalizando o trabalhador e retirando
dele os seus direitos.
Se
é possível entender a gênese do trabalho algoritmizado no aplicativo Uber, não
será fácil desenhar uma linha do tempo com ramificações que surgiram com a
entrada de novas empresas. Fato é que hoje diferentes profissionais como
advogados, educadores físicos, professores, designers, contadores e tantos
outros podem ofertar seus serviços em sites e outras plataformas, sem
formalização ou garantias.
Um
ponto de atenção é que o trabalhador entrega, além da sua força de trabalho, a
sua privacidade. Um trabalhador algoritmizado é um profissional em atividade
perene, com poucos intervalos de descanso e sempre vigiado. Inclusive, é essa
vigilância que trará ao indivíduo os estímulos necessários para que sempre
esteja trabalhando e produzindo algo, não para si e sim, para plataforma.
Nota-se
que um aplicativo de trabalho é formatado como parte de uma engrenagem que se
complementa em outras tecnologias. A Uber, por exemplo, não está isolada ou
impermeabilizada, pelo contrário, ela é capaz de conectar e trocar informações
com os aplicativos da Meta (Facebook), Alphabet (Google) e Spotify, que por sua
vez, podem ser conectados a outras plataformas e tecnologias. Na prática, há
uma rotina de vigilância e sem a devida proteção de dados e privacidade que se
consolida em redes interconectadas com diferentes aplicativos. São como grandes
nuvens que acompanham indivíduos 24 horas por dia e 7 dias por semana.
• Biodados e o garimpo de emoções
A
algoritmização chegou aos profissionais de saúde, como médicos e psicólogos. No
primeiro grupo, há ainda algumas barreiras para o avanço desse tipo de
trabalho, enquanto entre os psicólogos, a forma já está na rotina de
muitos. As sessões de terapia online são
uma realidade há algum tempo e são observados os avanços de aplicativos e
plataformas digitais para conectar profissionais aos seus possíveis clientes. É
o caso da Zenklub, uma das maiores empresas nesse segmento, que permite não só
o trabalho de psicólogos, mas também de outros profissionais sem nenhuma
qualificação e que podem oferecer serviços “terapêuticos”, como coaches.
Esses
profissionais que utilizam a plataforma como meio de garantir renda têm, em
média, 30% do valor pago pela sessão “retido” pela empresa, como “um custo da
operação da plataforma”. A renda desses trabalhadores está em risco, basta
acessar as plataformas de sessões online para ver que muitos profissionais
cobram valores inferiores ao piso estipulado pelo Conselho Federal de
Psicologia. Esse é um efeito natural do trabalho algoritmizado, a redução da
renda como uma forma de garantir o trabalho frequente e, praticamente,
ininterrupto.
A
ideia de que o divã cabe em um celular é sedutora, principalmente, pela
ausência de espaços físicos de um consultório e seus custos envolvidos. É preciso
refletir, portanto, se o ambiente virtual compreende o essencial para que uma
sessão transcorra dentro dos padrões exigidos.
Sabe-se
que um dos princípios básicos para a realização de uma sessão de terapia, é um
ambiente seguro para que paciente e psicólogo possam criar um sistema de
confiança, garantindo a confidencialidade da consulta. Eis, então, um desafio
das plataformas, como crer que partes ou uma sessão inteira não será gravada e
armazenada? Ou como é possível garantir que diagnósticos não estão vulneráveis
a ataques hacker?
Ao
falar em privacidade, é preciso debater como informações sigilosas podem (e
vão) ser utilizadas para publicidade e consumo. Em um e-mail marketing
distribuído pelo Google no dia 22 de março de 2023, é destacado como “biodados
prometem mudar o trabalho no marketing” e enfatizam que há uma “nova fronteira
da tecnologia que está na coleta e no uso de dados que vão além da demografia
ou da sequência de cliques”. O texto continua dizendo que hoje vem sendo criada
uma “infraestrutura que abarca casas inteligentes, cidades inteligentes,
objetos de uso pessoal e smartphones” e concluem com um absurdo “assim como
dados biométricos, reconhecimento de emoções e biodados pode gerar
possibilidades realmente interessantes”. Entende-se como “possibilidades
realmente interessantes” o lucro a partir de dados coletados de “smarts”, algo
que já abordei em um texto em 2020 aqui no Le Monde Diplomatique Brasil.
Percebe-se,
então, que os “biodados” irão demonstrar emoções e outras condições psicológicas
de um indivíduo. Assim sendo, a tarefa do psicólogo, nesse sistema
algoritmizado, é ser um “garimpeiro de emoções”, o que foge de forma completa
do escopo de trabalho desse profissional. A saúde mental deve ser observada não
como um produto a ser explorado como insumo para o capitalismo e sim, como
direito humano garantido.
Há
de se destacar que a atividade “garimpo de emoções” com o foco de potencializar
a extração de “biodados” pode ser exercida por outros profissionais, como os já
conhecidos coaches e suas vertentes messiânicas. O subconsciente, então, é um
profundo espaço a ser explorado e, com o objetivo de obter lucro, não importa a
qualificação de quem irá ser o garimpeiro.
A
sessão de terapia pode ser vista por essas plataformas não como um processo
terapêutico essencial para a saúde mental de qualquer indivíduo e sim, um local
estruturado par a exploração do subconsciente com fins de “exploração de
biodados”. Nesse sentido, o custo irá diminuir gradualmente pois o objetivo é
explorar emoções com fins de informações e dados e não a cura de enfermidades.
Logo o “garimpeiro de emoções” pode não ser, necessariamente, um psicólogo e
nem um ser humano e tal atividade pode ser operacionalizada por um algoritmo,
uma Inteligência Artificial ou qualquer outra tecnologia que não necessita da
interferência humana.
Não
é cabível aceitar de forma plácida o uso de novas tecnologias que possam
capitalizar a privacidade e a intimidade de indivíduos. Após explorar recursos
naturais e o trabalho, o capitalismo avança naquilo que parecia intransponível,
o subconsciente. Logo, é mais um recurso de exploração humana e controle de
indivíduos.
O
desafio do futuro para os conselhos de classe está em como entender as
potencialidades dessas novas tecnologias e os impactos na exploração do
subconsciente. Outro ponto importante é exigir garantias de que aquele
profissional realizando o atendimento por meio de plataformas é certificado e
autorizado a exercer a profissão. O Conselho Federal de Psicologia exige o
cadastro no e-psi, no entretanto, não há garantias de que os profissionais que
estão atendendo se enquadram nas regras e diretrizes estabelecidas. Será que é
muito irreal pensar, ainda, que em um futuro (não muito distante) uma estrutura
baseada em Inteligência Artificial pode ser capaz de atuar como um psicólogo ou
na melhor das hipóteses, ser auxiliar de seu ofício? E nesse sentido, como os
conselhos de classe estão monitorando ou compreendendo esse novo papel da
tecnologia? Não é, apenas, uma questão de substituir um profissional (como se
isso já não fosse grave o suficiente) e sim, garantir a condução de um processo
terapêutico dentro de normas pautadas em privacidade e em um espaço seguro.
• Psicólogos além da psicologia
Criar
plataformas que permitem sessões de terapia é construir um cenário em que
psicólogos estarão à mercê da precarização. Ora, esses trabalhadores irão
competir com seus pares para “conquistar” clientes e, para isso, precisam
construir marcas de si mesmos com o propósito de ter boa reputação nos sites e
aplicativos. Nesse sentido, duas frentes são necessárias: acompanhar as
avaliações de clientes e construir uma marca através de massiva presença na
web, principalmente, nas redes sociais.
Uma
herança da “uberização” está o sistema de pontuação dos profissionais, que são
avaliados de forma constante por seus pacientes. Há, ainda, a possiblidade de
deixar avaliações que podem aumentar a reputação de um psicólogo ou garantir
sua exclusão da plataforma. Entende-se, portanto, que o profissional deva criar
uma estrutura de comunicação para atrair pacientes e, consequentemente,
aumentar suas consultas pela plataforma, bem como, garantir boas avaliações de
suas sessões. Nesse sentido, esses profissionais recorrem aos vídeos e
conteúdos em redes sociais, sendo obrigados a se tornarem influencers ou
marketeiros para que consigam mais seguidores que possam converter em clientes.
Os
psicólogos estão diante da necessidade de espetacularização de suas carreiras e
se sentem obrigados a produzir material – de forma não remunerada – que possa
atrair mais clientes para a plataforma que eles atendem e assim, geram mais
lucro para as empresas e, como destacado acima, criam uma engrenagem de garimpo
de emoções a serem utilizadas como mercadoria por outras empresas e plataformas.
A
algoritmização da saúde avança, ainda, para os médicos na mesma formatação, que
é a produção de conteúdo para atrair clientes que possam ser atendidos em
consultórios e clínicas. No caso da medicina, aplicativos e plataformas estão
mais atrelados aos planos de saúde e há mais resistência para a entrada dessa
forma de trabalho pelos profissionais envolvidos.
O
profissional da saúde famoso se torna uma marca e, como tal, tem um imaginário
de consumo, um desejo e uma consulta é uma aquisição de valor, como se um
médico ou psicólogo fosse um artigo de luxo, deixando de ser um profissional de
saúde, se tornando um health influencer, alguém que vai alimentar a engrenagem
do meio digital, produzindo conteúdo que será consumido por uma legião de
seguidores.
Não
há, todavia, a necessidade de tornar a prática de produção de conteúdo como
algo a ser proibido. É preciso compreender que essa dinâmica é fruto da
interseção da algoritmização da vida com a precarização do trabalho. Assim, é
preciso que conselhos e outros órgãos possam garantir ao profissional boas
condições de trabalho e barreiras capazes de arrefecer o processo de
precarização, principalmente, através da algoritmização desse tipo de trabalho.
• Algoritmização do divã
A
algoritmização do trabalho vem rompendo barreiras e aumentando a penetração em
diferentes tipos de ofício qualificado, como a psicologia. A urgência está em
compreender que as relações de poder e vigilância nessa forma de labor aumentam
o caráter explorador e deixa um rastro de precarização. Logo, a regulação desse
trabalho é, apenas, um primeiro passo e terá pouco efeito se não houver
políticas públicas e legislação específica para atuar diretamente em
algoritmos.
Ainda,
a ideia de que os algoritmos são criados por desenvolvedores humanos é
limitante, haja vista que esses sistemas são capazes de evoluírem de forma
autônoma como visto em inovações em machine learning. Logo, as novas
tecnologias baseadas em algoritmos têm seus processos iniciados em uma relação
humano-máquina e podem evoluir suas potencialidades sem a interferência humana.
Nesse fio condutor, sempre teremos um robô virtual que irá gerenciar e vigiar
um trabalhador, logo, teremos sessões de terapia conduzidas por um profissional
certificado e monitorada por uma Inteligência Artificial construída por meio de
algoritmos que pode determinar o valor a ser pago, qual avaliação será dada ao
psicólogo e se, talvez, pode ser demitido ou continuar atendendo na plataforma.
Ainda, pode se conectar com outros aplicativos que podem oferecer desde uma
série ou podcast até um novo remédio ou avisar ao plano de saúde que o paciente
precisa de cuidados de outras áreas médicas. A ruptura do espaço seguro da
atividade terapêutica é o fim da privacidade dos indivíduos ali envolvidos.
Portanto,
o ponto central de todo esse processo é como a algoritmização dilui o conceito
de privacidade e torna a saúde mental tanto como um componente de “biodados”
que podem ser utilizados tanto como vetores de consumo quanto para a
precarização do trabalho do psicólogo que se vê como um “garimpeiro de
biodados”. Obviamente, os profissionais de psicologia devem estar no centro do
debate e refletir sobre essas novas tecnologias. Ao mesmo tempo, pacientes
devem apontar quais os descontentamentos e receios diante da entrada dos
algoritmos como mediadores e vigias de sessões de terapia.
A
algoritmização do divã não deve ser encarada de forma romântica ou simplesmente
uma evolução do trabalho sob a égide das novas tecnologias. E se essa é uma
condição irreversível, que possam ser criados mecanismos de proteção,
privacidade (de pacientes e psicólogos) e a garantia de direitos trabalhistas.
Se a algoritmização não for conduzida para a melhoria do trabalho e renda de
indivíduos, ela nada mais é que recrudescimento da exploração neoliberal.
Fonte:
Por Herbert Salles, no Le Monde
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