terça-feira, 30 de setembro de 2025

João dos Reis Silva Júnior: Travessia sem roteiro

A rejeição da PEC da Blindagem foi um sinal: o pacto de 1988 se esgotou. Agora, a energia horizontal das ruas navega o dilema histórico entre ser absorvida pela conciliação ou forjar uma ruptura inédita...

<><> O ciclo encerrado

No artigo “O Espelho da República”, postado no site A Terra é Redonda, busquei mostrar-se que o pacto de 1988 entrou em colapso. O 7 de setembro não foi apenas desfile cívico, mas espelho de um arranjo que se desfazia. Quarenta mil pessoas em São Paulo e no Rio, clamando por “anistia já” e desafiando o Supremo, mostraram que a extrema-direita ainda mobiliza, enquanto a esquerda institucional revela limites.

A geração de 1968, que estruturou mobilizações por sindicatos, partidos e universidades, exauriu-se. Seu tripé organizativo foi corroído pela precarização, pela financeirização e pela perda de confiança social. O sindicalismo tornou-se gestor de conflitos, os partidos imobilizaram-se em cálculos eleitorais e a universidade foi sitiada pela lógica dos rankings. Quando as ruas voltaram em setembro de 2025, voltaram sem a marca de 1968. O que emergiu foi indignação difusa, convocada por redes e articulada pela recusa à conciliação.

A comparação é inevitável. Em 1968, estudantes se organizavam pela UNE; em 1984, milhões marchavam pelas Diretas Já, amparados por partidos e frentes amplas; em 2013, as jornadas de junho nasceram de movimentos estudantis organizados. Em 2025, nenhuma dessas mediações existia. Houve apenas redes, mensagens cifradas e chamadas anônimas. Potência inédita, fragilidade extrema.

Esse vazio é sintoma da dependência. Ruy Mauro Marini lembrava que países periféricos vivem crises recorrentes porque não completam seus ciclos de acumulação de forma autônoma. No campo político, algo análogo se repete: ciclos de mobilização se abrem e se fecham sem consolidar transformações estruturais. O colapso do pacto de 1988 marca o fim de um ciclo e abre travessia incerta.

<><> O dual da dependência

É nesse ponto que proponho, em diálogo com a Teoria Marxista da Dependência e com a Crítica à Razão Dualista de Francisco de Oliveira, o conceito de “dual da dependência”. Ele nomeia o mecanismo pelo qual elites preservam privilégios ao mesmo tempo em que concedem direitos limitados, de modo a manter intacta a condição estrutural da dependência.

Na Nova República, o dual tomou forma no pacto de 1988: de um lado, cidadania inscrita na Constituição; de outro, blindagem institucional que protegeu os de cima. O arranjo só sobreviveu enquanto o fundo público pôde financiar políticas sociais sem tocar nos privilégios do capital. Quando a financeirização sequestrou o orçamento, o pacto implodiu.

As ruas de 2025 são expressão da crise terminal desse dual: a recusa da conciliação mostra que a fórmula que sustentava a Nova República não funciona mais. É natural que parte da academia torça contra a formulação. A inveja, o personalismo e o ressentimento fazem parte do nosso meio. Mas não se trata de agradar: trata-se de nomear. E nomear é um gesto político.

Nesse ponto, Antonio Candido ajuda a compreender o peso da crítica que nasce da própria experiência social. Sua Dialética da malandragem mostrou como formas aparentemente marginais revelam contradições estruturais da sociedade brasileira. O que parece vazio ou desordem pode ser leitura aguda de nossa formação. O mesmo ocorre com a rua sem liderança: sua irregularidade, longe de simples fragilidade, denuncia os limites de uma democracia pactuada entre senhores.

<><> O tribunal e a pedagogia

No artigo “Cinco dias de suspense”, também postado em A Terra é Redonda, descrevi como o Supremo buscou mostrar-se pedagógico ao condenar Jair Bolsonaro e Braga Netto a mais de duas décadas de prisão. A transmissão ao vivo converteu-se em rito civilizatório. Mas a rua antecipou o tribunal: antes da sentença, já se gritava “sem anistia”.

O Judiciário tentou ensinar pela punição; a rua ensinou pela recusa. Hannah Arendt lembrava que a política só se realiza quando homens e mulheres se reúnem para agir em comum. Jacques Rancière advertiria que isso só ganha força quando produz uma nova partilha do sensível. Foi o que aconteceu: a rua mostrou que a condenação não era generosidade togada, mas resposta atrasada a uma exigência popular.

O problema é que o tribunal ensina seletivamente, enquanto a rua ensina sem mediação. Uma democracia que aprende apenas pelos ritos institucionais anda devagar; uma que aprende apenas pelo grito corre o risco de dispersar-se.

Em “A coreografia da farsa” [https://aterraeredonda.com.br/a-coreografia-da-farsa/], mostrei a duplicidade: o Supremo punia alguns, mas o Congresso blindava muitos. Era conciliação explícita: sacrificar peças para manter o tabuleiro.

Aqui está a versão reescrita e completada: “Desde a Independência conduzida por um príncipe europeu, passando pela Abolição sem reforma agrária e chegando à transição pactuada de 1985, as elites brasileiras conservaram seus privilégios ao custo de ceder apenas símbolos. Florestan Fernandes (1975) conceituou esse movimento como modernização conservadora, um processo em que se alteram as formas institucionais para garantir a permanência da estrutura social de dominação. Francisco de Oliveira (2003), ao retomar essa formulação, mostrou como a modernização conservadora se articula à dependência, revelando a estratégia de “mudar para manter” que acompanha a trajetória histórica do capitalismo brasileiro”.

As ruas de 2025 reagiram. Em Brasília, São Paulo, Recife e Porto Alegre, multidões nomearam os responsáveis. Não havia palanques, apenas cartazes improvisados. A ausência de liderança buscou mostrar-se como força. Mas a história ensina que elites esperam a energia difusa se dissipar.

<><> O risco da captura

A ausência de liderança é potência e perigo. Potência, porque rompe com mediações domesticadoras. Perigo, porque pode ser capturada por quem sabe organizar símbolos. O Brasil conhece esse risco. Em 1964, a insatisfação popular foi usada para legitimar o golpe. Em 2013, as ruas começaram contra tarifas e terminaram abrindo espaço ao antipetismo e ao bolsonarismo. A energia popular não morreu: foi sequestrada.

Hoje, a indignação contra a PEC da Blindagem pode seguir rota semelhante. Grupos conservadores podem apresentar-se como tradutores da raiva. As Forças Armadas, desonradas pelo julgamento do 8 de janeiro, podem buscar recuperar prestígio. O risco maior é a tutela militar voltar disfarçada de nacionalismo.

O Supremo expôs documentos que vincularam militares ao golpe. Saíram humilhados. Instituições humilhadas raramente ficam quietas. Ainda que enfraquecidas, podem agir indiretamente, apoiando discursos de “retorno à ordem”. O militarismo brasileiro nunca desapareceu. De Deodoro a Castelo Branco, passando por 1930, sempre voltou quando elites civis se sentiram incapazes de arbitrar conflitos. Agora, com reputação arranhada, a tentação é reaparecer como fiador da ordem.

Guillermo O’Donnell falava em autoritarismo de baixa intensidade: democracias que convivem com enclaves militares. O Brasil cabe nessa definição. A ausência de liderança popular clara só amplia o risco.

Nas últimas cinquenta horas, a rua mostrou-se resistência e risco. Em Brasília, a marcha pelo Eixo Monumental ocupou seis faixas, com cartazes que chamavam o Congresso de “inimigo do povo” e a PEC de “PEC da Bandidagem” (AGÊNCIA BRASIL, 2025). Pesquisas indicaram que 83% das menções à PEC nas redes foram negativas (CNN BRASIL, 2025).

As mobilizações foram espontâneas e eficazes: pressionaram o Senado, reforçaram a rejeição da PEC, mostraram que a indignação difusa produz efeitos. No dia 24 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou o parecer favorável à PEC, acompanhando a pressão popular e a crítica do relator Alessandro Vieira. Esse desfecho parcial mostra como a rua pode, mesmo sem lideranças, influir na política institucional.

No dia 24 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou porunanimidade o parecer favorável à PEC, acompanhando a pressão popular e a crítica do relator Alessandro Vieira. No mesmo dia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, determinou o arquivamento da proposta, o que significa sua derrota definitiva. Esse desfecho mostrou que, mesmo sem lideranças formais, a mobilização social foi capaz de impor limite à conciliação protetora das elites políticas. Se a Nova República foi marcada por pactos de blindagem, setembro de 2025 revelou que esse expediente já não encontra a mesma legitimidade.

Mas, sem projeto, permanecem vulneráveis à captura. Judith Butler lembra que corpos reunidos produzem materialidade de resistência. Mas, sem continuidade, essa materialidade se dissipa. O Brasil conhece esse dilema: de Canudos a 2013, as ruas sempre estiveram entre esperança e tragédia.

<><> Conciliação ou guinada?

A conciliação é a técnica recorrente das elites: blindar, adiar, anistiar. A guinada é o horizonte que as ruas sugerem: recusar privilégios, afirmar que ninguém está acima da lei.

O fim da geração de 1968 não produziu vazio, mas uma gramática nova: horizontal, fragmentada, incisiva. Michael Hardt e Antonio Negri a chamariam de multidão. Resta saber se pode virar projeto. Uma guinada democrática precisa mais que punir. Precisa reformar estruturas, desfazer blindagens, devolver dignidade, refazer pactos. Se não, a conciliação seguirá como norma. Francisco de Oliveira dizia: o pacto é entre senhores, nunca entre povo. As ruas de 2025 querem romper isso.

Aqui novamente Antonio Candido é iluminador. Em Formação da literatura brasileira, mostrou que a vida cultural só se explica em tensão com as estruturas sociais. Não há literatura sem sociedade, nem sociedade sem seus modos de expressão. Aplicado ao presente, não há rua sem projeto: a fúria coletiva precisa ser transfigurada em construção política, ou se perderá como tantas vezes na história.

Setembro de 2025 é travessia. O meu artigo “O Espelho da República” mostrou o colapso do pacto. As ruas mostraram indignação sem líderes. O sertão rosiano lembra que cada vereda é risco e promessa. O sertão, em Guimarães Rosa, é lugar de escolhas incertas. Assim também as ruas: podem reinventar a democracia, ou abrir espaço a regressões. A travessia está em curso. Não há garantias. Só a urgência de aprender com a história para não repeti-la como farsa ou tragédia.

A chamada PEC 3/2021, conhecida popularmente como PEC da Blindagem, foi derrotada no Senado após forte mobilização social. Desde sua tramitação, o projeto foi percebido como um mecanismo de autoproteção das elites políticas, alimentando a crítica de que se tratava de mais um episódio de conciliação destinado a preservar privilégios. Nas ruas, a reação foi imediata: em setembro de 2025, milhares de pessoas ocuparam o Eixo Monumental em Brasília e avenidas de capitais como São Paulo, Recife e Porto Alegre. Cartazes improvisados nomeavam o Congresso como “inimigo do povo” e denunciavam a proposta como “PEC da Bandidagem”. O repúdio ganhou força nas redes sociais, onde levantamentos apontaram que 83% das menções eram negativas, revelando o isolamento político da medida.

A pressão popular incidiu diretamente sobre o processo legislativo. No dia 24 de setembro de 2025, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou o parecer favorável à PEC, acompanhando o posicionamento crítico de parlamentares como Alessandro Vieira e ecoando a insatisfação das ruas. O episódio demonstrou que, mesmo sem lideranças formais, a mobilização social foi capaz de interferir no andamento de uma proposta institucional. Trata-se de uma vitória parcial, já que a rejeição na CCJ não equivale a arquivamento definitivo, mas representa a primeira derrota substantiva do texto no Congresso.

Esse desfecho confirma a tendência de enfraquecimento das fórmulas de conciliação que marcaram a Nova República. Se antes a blindagem institucional encontrava respaldo na inércia social, agora a recusa coletiva mostrou-se mais forte. A derrota da PEC 3 expôs a distância entre elites políticas e sociedade, ao mesmo tempo em que reafirmou a capacidade das ruas de tensionar os limites da democracia pactuada. Mas a história brasileira parece negar a completude democrática. Vejamos.

>>> 1930: Revolução pelo alto

O movimento de 1930 é muitas vezes lembrado como ruptura, mas no fundo foi uma conciliação entre frações das elites regionais. Getúlio Vargas chegou ao poder com apoio de setores médios e militares, mas a promessa de transformação estrutural ficou aquém. Houve centralização do Estado, início da industrialização e algumas reformas trabalhistas, mas sempre como concessões calculadas para evitar uma democratização real.

O campesinato, as massas urbanas e os trabalhadores entraram como força de pressão, mas não como sujeitos constituintes da nova ordem. Foi, como disse Florestan Fernandes, “uma revolução dentro da ordem”, que instaurou a modernização conservadora: mudança de forma para manter o fundo social da desigualdade.

>>> 1985: A transição pactuada

O fim da ditadura militar também poderia ter sido uma ruptura. As Diretas Já mostraram o poder das ruas, mobilizando milhões em todo o país. No entanto, o processo foi canalizado para uma transição pactuada. A eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney simbolizou essa conciliação: militares garantiram sua saída sem julgamento, elites econômicas mantiveram o controle, e a Constituição de 1988, ainda que avançada em direitos sociais, preservou a estrutura de privilégios. A democracia retornou, mas já marcada pela incompletude, incapaz de romper com a lógica de conciliação que, no fundo, blindava o núcleo de poder.

<><> O retorno das ruas

Hoje, diante da crise de 2013 em diante, da ascensão da extrema direita e do desgaste dos arranjos institucionais, a rua volta a ser protagonista. Mas há novidade: setores populares e identitários (mulheres, negros, indígenas, juventudes periféricas, movimentos ambientais) ocupam a cena de modo mais autônomo, sem depender apenas da mediação sindical ou partidária. Isso abre a possibilidade de uma ruptura qualitativa com a tradição conciliatória.

O fato de que parte da esquerda institucional se encontra imobilizada em cálculos eleitorais reforça o contraste: a rua emerge como espaço de reinvenção da política, em busca da completude da democracia que nunca se realizou.

O dilema é claro: ou as ruas abrem um processo de transformação radical, tensionando os limites institucionais, ou o país verá novamente a energia popular ser absorvida em acordos por cima, reproduzindo a fórmula histórica de “mudar para manter”. A diferença em relação a 1930 e 1985 é que a combinação de crise econômica, financeirização e colapso ambiental dificulta a estabilização via conciliação. A rua pode ser, desta vez, não apenas o espaço da pressão, mas o lugar da ruptura necessária para que a democracia brasileira deixe de ser promessa e se torne experiência plena.

As ruas de setembro de 2025 revelaram tanto a potência quanto a vulnerabilidade da ação coletiva no Brasil. A rejeição da chamada PEC da Blindagem mostrou que, mesmo sem lideranças formais, a mobilização popular pode alterar o curso da política institucional, impondo limites à conciliação histórica entre elites. O episódio não apenas expôs o esgotamento do pacto de 1988, mas também sinalizou a emergência de novas gramáticas de contestação, mais horizontais e fragmentadas, capazes de desafiar a lógica da blindagem que sustentou a Nova República.

O desafio, no entanto, permanece. Sem projeto articulado, a energia das ruas corre o risco de repetir trajetórias anteriores em que insatisfações foram capturadas e desviadas para manter intacta a estrutura da dependência. A travessia aberta em setembro de 2025 não oferece garantias, apenas a urgência de transformar indignação em construção política.

A história brasileira ensinou que conciliação e regressão sempre rondam os momentos de ruptura; cabe agora às ruas, em sua pluralidade, decidir se essa experiência se dissipará como tantas outras ou se abrirá espaço para uma democracia enfim completa.

A rejeição da PEC 3/2021 no Senado, após intensa mobilização social, simboliza o esgotamento de uma fórmula histórica de conciliação que atravessa o Brasil desde a Independência. De 1930 a 1985, e mesmo após a Constituição de 1988, a política brasileira seguiu pautada pela lógica de concessões seletivas, blindagens institucionais e pactos entre elites. Setembro de 2025, entretanto, trouxe sinais de ruptura: corpos anônimos nas ruas, articulados por redes horizontais e sem mediações tradicionais, forçaram a derrota de uma proposta que pretendia institucionalizar a impunidade. O episódio revela que a democracia brasileira, ainda incompleta, pode ser tensionada por formas novas de ação coletiva que escapam da gramática de partidos, sindicatos e lideranças personalizadas.

Esse processo, contudo, está longe de encerrar-se. A história nacional ensina que momentos de insurgência popular frequentemente foram capturados ou desviados em nome da estabilidade, reforçando a dependência estrutural diagnosticada por Ruy Mauro Marini (2000), Vânia Bambirra (2015) e Theotonio dos Santos (2000). O desafio atual é impedir que a energia difusa das ruas se dissipe como tantas vezes antes. A categoria de “dual da dependência” (SILVA JÚNIOR, 2025) ajuda a compreender a armadilha: elites abrem concessões aparentes enquanto preservam seus privilégios, renovando a incompletude democrática. A recusa da conciliação, expressa nos cartazes que nomearam o Congresso como inimigo do povo, evidencia que parte da sociedade já não aceita a farsa do pacto.

O desfecho da PEC da Blindagem não garante uma democracia plena, mas abre possibilidade de travessia. Guimarães Rosa lembrava que o sertão é lugar de veredas incertas, risco e promessa. Do mesmo modo, as ruas de 2025 anunciam um futuro aberto: podem constituir a base de uma guinada efetivamente democrática, ou recair em mais um ciclo de conciliação. O que está em jogo é a capacidade de transfigurar indignação em projeto político, recusar blindagens e instituir uma democracia que, pela primeira vez, não se limite a ser promessa adiada. O tempo presente exige coragem para não repetir a história como farsa ou tragédia, mas para reinventá-la como possibilidade concreta de emancipação.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

Tesouros guardados

Era um domingo lento, desses em que as horas parecem se alongar. A conversa na sala girava em torno de relógios antigos, sem corda, ocupando espaço em gavetas. O neto perguntou se não seria melhor dar fim àqueles ponteiros parados, vendê-los ou doar a um relojoeiro. A avó apenas sorriu, como quem já tinha a resposta, e trouxe uma caixa de joias gasta pelo tempo, rangendo ao abrir-se como um segredo.

Dentro, havia um universo de pequenos fragmentos: moedas que nada comprariam, bijuterias com pedras soltas, presilhas de festas familiares, anéis com zircônias faltando. Cada peça trazia uma história. O relógio era presente de formatura, a presilha brilhou em um baile, a moeda fora dada pelo pai como amuleto. O gesto da avó não era oferecer objetos, mas memórias. O neto percebeu: não se tratava de herança em dinheiro, mas de afeto.

Surge, então, o dilema: o que vale mais, o preço de mercado ou o peso emocional? Como medir o sorriso de quem se vê transportado para outra época ao tocar um objeto banal? Para um avaliador, seriam quinquilharias. Mas o valor não se mede em catálogos de leilão. Guardar pode ser resistência silenciosa à lógica capitalista que descarta o que não gera lucro. É afirmar: “isso é meu tesouro, ainda que ninguém o queira”.

Guy Debord (1998) já alertava que o espetáculo transforma experiências em imagens e mercadorias. A nostalgia, nesse cenário, é vendida em camisetas retrô e brinquedos relançados. Mas segurar a moeda do avô não é consumir um produto, é reviver uma memória única, não escalável. A avó talvez não pensasse em crítica social, mas ao valorizar o que não tinha preço, realizava um gesto de recusa ao mercado. Quem olhasse de fora diria: “isso não vale nada!”. Certo no dinheiro, errado no valor.

O neto viu a contradição: as mesmas mãos que guardam presilhas sem valor podem desejar vitrines da nostalgia fabricada. Mas quando o tesouro é íntimo, uma pedra plástica mal colada, nenhum mercado o traduz. Ali existe memória, não mercadoria. E memória, neste caso, não se vende. O curioso é que, ao revisitarmos lembranças, o passado se tinge de rosa. Tudo parece mais feliz, quase perfeito. Mas será que foi mesmo?

Ao idealizar, corremos o risco de apagar dores e desigualdades. Guardar é também escolher: lembrar e esquecer. Essa memória seletiva dá conforto, mas mascara realidades incômodas. E o sistema sabe explorar a armadilha, vendendo passados polidos, relançando brinquedos com edições de colecionador, apagando contextos difíceis. Ao consumir esse passado fabricado, arriscamo-nos a alienar-nos, presos a uma nostalgia confortável demais.

A caixa da avó, símbolo privado de resistência, revela esse embate: guardar torna-se um gesto político, um vínculo não mediado pelo consumo. Cada memória, cada relíquia ali contida é como a Gota do Príncipe Rupert, aparentemente resistente e impenetrável, capaz de suportar pressões externas graças a tensões internas cuidadosamente mantidas. Mas, tal como a gota, esse equilíbrio é frágil: um toque errado, um atrito intenso, e tudo pode ruir em milhares de fragmentos, transformando tesouros em pó.

Quando essas práticas pessoais são expostas às redes sociais ou inseridas no mercado da memória, o efeito se potencializa: coleções se tornam conteúdo, objetos se transformam em posts, lembranças passam a ser acumuláveis, compartilháveis, comercializáveis e a delicada resistência do íntimo corre risco de se despedaçar.

O valor sentimental desafia a lógica capitalista. Objetos usualmente considerados “inúteis”, como uma carta, uma pulseira quebrada, um ingresso antigo, só têm valor no universo de quem os carrega. Para o mercado, esses itens valem tão pouco que seriam descartados sem culpa. O capitalismo tenta quantificar tudo, licenciar, relançar, transformar até a saudade em produto. Réplicas de brinquedos antigos, séries ressuscitadas, coleções de fotos vintage negociam nostalgia. A cada novo produto, a memória vira mercadoria e o afeto, matéria-prima do lucro.

Por outro lado, cada pessoa, ao guardar, redefine valor: escolhe um vínculo subjetivo em detrimento do preço objetivo. Não raro, guardar é subverter: recusar a equivalência mercantil e criar outra balança, em que recordação e significado são inegociáveis.

O prazer da nostalgia atua como distração e anestesia. Recuperar o passado demais pode impedir de imaginar um futuro diferente e, mais grave, mascara as dores reais do passado: racismo, desigualdades, sofrimentos silenciados. O capitalismo se alimenta desse conforto emotivo, pois ele desvia do incômodo e paralisa o impulso por mudanças. Uma infância idealizada, uma sociedade “melhor” e antiga vendidas em campanhas apagam as fissuras do passado, tornadas invisíveis pelo filtro nostálgico.

O risco é alienar-se, perder capacidade de questionar. Quando o passado é idealizado, ficamos cegos à necessidade de reelaboração histórica e o mercado perpetua esse ciclo, oferecendo emoções prontas, embaladas em coisas.

Vivemos uma era do efêmero. O que será tesouro para as próximas gerações? Com celulares, fotos digitais, músicas em streaming, ingressos virtuais, o conceito de relíquia se fragmenta. Tudo se esvai: arquivos são deletados, mídias ficam obsoletas, conversas somem. O futuro das caixas de lembrança talvez seja um backup, uma selfie, um print e até a chave de bitcoin, que se tornará amuleto simbólico.

O valor escapa da materialidade e se torna experiência digital. Se antes um objeto físico era relíquia, hoje pode ser um arquivo salvo, uma mensagem pinada. O desafio: como lidar com o excesso material e a infinitude digital, sem desvalorizar o que nos constitui?

Ecléa Bosi ensina que memória não é acervo de fatos, mas ponte entre corpo e experiência. O passado não desaparece, apenas se transforma e ecoa de diferentes modos no presente. Quando guardamos, estabelecemos laços: entre o que fomos, o que somos e aquilo que podemos ser. Essa elaboração é vital para que a memória seja criativa, produtiva, e não apenas um arquivo morto.

No entanto, vivemos na contramão, fotografamos compulsivamente, registramos tudo, mas raramente revisamos. O risco é transformar lembrança em dado, saturar a memória até esvaziá-la. Cultivar práticas de revisitação, organização e diálogo é o caminho para que guardar não se torne prisão ou acúmulo, mas processo ativo de construção de sentido.

A nuvem, o HD externo, o backup digital passam a reproduzir a função tradicional das caixas de recordação. Guardamos selfies, conversas, músicas, vídeos num espaço infinito. Mas, diferentemente do objeto físico, a facilidade digital pode esvaziar significado. É preciso curadoria, vontade, intenção para que o armazenamento virtual se torne ritual: separar o que importa, nomear arquivos, contar histórias associadas às imagens. Se a caixa digital for só acúmulo, vira depósito; se for escolhida e ritualizada, pode perpetuar vínculos tão fortes quanto uma carta manuscrita.

Nostalgia toca profundamente porque conecta, conforta, arranca do presente instável o solo de emoções passadas. Psicólogos argumentam que, em tempos de crise, revisitamos memórias para reafirmar identidade, encontrar estabilidade. Entretanto, excesso de nostalgia pode virar fuga. Em vez de impulsionar mudanças, cristalizamos a vontade de volta, de repetição. O mercado, atento, explora esse desejo fabricando memórias polidas e rebaixando experiências genuínas à lógica do consumo.

O desafio psicológico é usar a nostalgia como ponte e não como cela: uma experiência de contato, não de repetição cega. Só assim podemos evitar que o tempo vire mercadoria e a saudade, paralisia.

Bosi chama de “memória-hábito” a prática de atribuir um sentido explicativo aos objetos: guardar e, ao revisitar, reinterpretar. No mundo digital, esse hábito corre perigo: objetos físicos trazem texturas, cheiros, marcas do tempo e gestos que produzem história, enquanto arquivos virtuais são idênticos, reprodutíveis, assépticos. Ritualizar o digital é caminho de resistência: criar pastas temáticas, escolher fotos, narrar memórias em legendas, construir narrativas ao invés de apenas acumular capturas de tela.

A memória-hábito só se perpetua se for ativa, se houver curadoria e compartilhamento. Afasta-se o automatismo dos algoritmos, aproximando-se da criação intencional do sentido. Latour alerta que objetos não são neutros: guardá-los exige responsabilidade, manutenção, espaço físico e emocional.

Quem acumula é transformado por aquilo que guarda. Guardar pode trazer orgulho, mas também culpa, dor, sobrecarga. Em excesso, vira prisão, a vida corre o risco de virar museu, e a lembrança, fardo. O guardião deixa de ser apenas protetor, passa a ser alvo dos próprios afetos. Selecionar e deixar ir não é traição ao passado, mas sinal de maturidade. A memória deve iluminar o presente, não sufocar.

O desafio ético é aprender a modular: o que nos serve, o que nos prende, o que fortalece e o que pesa. Guardar deve ser gesto de vida, não de imobilidade. O que resta quando abrimos nossas caixinhas? Guardar tesouros íntimos é mais do que colecionar objetos desprovidos de valor material. É processo de autodefinição: cada caixa ajuda a construir quem somos, onde estivemos, com quem nos importamos. Guardar é afirmar, aquele fragmento do passado tem valor inegociável, mesmo quando não é medido externamente.

A memória, ao ser cultivada, tece continuidade: o fio entre o passado que nos formou e o presente que nos desafia. Guardar é traçar um mapa afetivo, entender de onde viemos para saber quem somos. Contudo, o excesso de lembranças pode aprisionar. Cada objeto exige atenção, e a vida corre o risco de se transformar em museu de si mesma. Quantos não se veem cercados por caixas sem fim, incapazes de se desfazer de nada, transformando a memória em fardo?

Bruno Latour nos mostra que os objetos agem sobre nós: podem acolher ou oprimir. Por isso, guardar exige equilíbrio. Selecionar, deixar ir, não é trair o passado, mas reconhecê-lo sem prisão. A memória deve iluminar o presente, não sufocá-lo.

O protetor de relíquias precisa cuidar não apenas dos objetos, mas de si. Se a memória vira peso, perde sua função vital. Guardar deve ser gesto de vida, não de paralisia. Ao longo da partilha entre avó e neto, vemos que as caixinhas de lembrança não são depósitos, mas espelhos de identidade. Cada moeda, cada anel, cada presilha sussurra: “isso fez parte de mim”. Guardar é gesto de autodefinição, de marcar quem somos.

A memória, contudo, não é apenas individual: estabelece continuidade. Ao guardar, conectamos passado e presente, construímos um fio que nos orienta. O neto, ao ouvir a avó, não recebeu só objetos, mas um legado simbólico. A caixa tornou-se deles, ponte entre gerações. A memória, assim, é diálogo. Mas o tempo não poupa nada. Objetos se desgastam, fotos desbotam, arquivos corrompem. Guardar é gesto contra a impermanência, tentativa de fixar o que escapa.

Talvez seja esse o motivo do apego: sabemos que somos finitos, e guardar é resistir ao esquecimento. Mas não é energia perdida: é afirmação de vida. Guardar não é congelar, é lembrar que estivemos aqui. E há também o cuidado: polir uma joia, organizar uma caixa, salvar uma foto em pasta especial. Esses gestos fortalecem vínculos e projetam nossa história. Quando partilhados, ganham ainda mais força: não guardamos só para nós, mas para quem, um dia, abrirá e ouvirá as histórias.

No fim, guardar tesouros sem valor monetário é ato profundamente humano. É resistência contra a lógica que tudo mede em dinheiro, é escolha por aquilo que não se troca nem se vende. É exercício de identidade, continuidade, cuidado e partilha. O risco é o excesso, a nostalgia paralisante ou a mercantilização do íntimo. Mas o gesto em si, quando consciente, é sempre ato de amor.

Talvez seja isso que a avó quis ensinar ao abrir sua caixa: mais que coisas, guardamos vínculos. Enquanto houver quem abra a caixa e conte a história, nenhuma lembrança estará perdida.

 

Fonte: Por Lucas Silva Pamio, em A Terra é Redonda

 

Semaglutida diminui em 57% o risco de infarto e AVC, diz pesquisa

Os avanços no tratamento para pessoas com sobrepeso ou obesidade e doença cardiovascular (DCV) ganharam um novo capítulo. Um estudo apresentado neste domingo (31/8) no Congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC), em Madrid, revelou que a semaglutida pode reduzir em 57% o risco de infarto, AVC ou morte por complicações cardiovasculares.

A pesquisa, que é um estudo retrospectivo e usa dados de vida real, foi conduzida pela farmacêutica Novo Nordisk e comparou a eficácia do Wegovy (semaglutida 2.4mg) com o Mounjaro (tirzepatida 15mg). O estudo, intitulado STEER, avaliou mais de 21 mil pacientes norte-americanos com 45 anos ou mais, que tinham obesidade e doença cardiovascular, mas sem histórico de diabetes.

Em nota enviada ao Correio, a empresa do Mounjaro, Eli Lilly, afirma que "continua a estudar a tirzepatida para potenciais benefícios cardiovasculares". "Além disso, o SURMOUNT-MMO é um ensaio clínico global de fase 3 que avalia se o tirzepatida pode reduzir o risco de eventos cardiovasculares graves e morte em adultos com obesidade ou sobrepeso, mas sem diabetes, com resultados esperados para 2027", completa. (Leia a nota na íntegra ao fim da matéria)

No estudo STEER, os participantes foram divididos em dois grupos, de acordo com o tratamento medicamentoso. Durante o período de análise, foram registradas apenas 15 ocorrências de doenças cardiovasculares (0,1%) no grupo que utilizou Wegovy, contra 39 eventos (0,4%) entre os que usaram Mounjaro.

Cerca de 31% dos adultos brasileiros são considerados obesos, de acordo com o Atlas Mundial da Obesidade para 2025. Além disso, 37% das pessoas no Brasil estão com sobrepeso. A doença, que é considerada crônica pela Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta diretamente a vida do paciente, que pode desenvolver problemas como doenças cardíacas, diabetes, osteoartrite e depressão.

<><> O estudo

A análise segue a metodologia de “vida real”, que consiste em coletar e investigar dados disponíveis sobre pacientes que usam os medicamentos. No caso do STEER, os pesquisadores analisaram, por meio do banco de dados Komodo Research, as compras das substâncias e os problemas desenvolvidos pelos pacientes de cada grupo.

Dessa forma, não há certeza de que as pessoas tomaram o medicamento corretamente, o que poderia influenciar o resultado final da pesquisa. Apesar disso, a professora de medicina cardiovascular na UC San Diego (EUA), Pam Taub, que não participou do estudo, pontua que o resultado é significativo para a medicina e mostra como os medicamentos podem melhorar a vida do paciente.

“O problema com esses estudos de vida real é que você não controla fatores. Mas ainda são dados muito interessantes. A grande perspectiva é que o Wegovy tem impacto em resultados cardiovasculares”, afirma Pam. No entanto, ela reforça que não é possível definir se uma substância é melhor do que a outra, já que o tratamento, nesses casos, deve seguir a medicina personalizada.

“Há pacientes que melhoram com uma droga ou outra, e eu vejo isso na prática clínica. Há alguns pacientes que podem ter intolerância com uma, nós mudamos para a outra e melhoram. Precisamos abraçar, no campo, o fato de que é bom ter múltiplas drogas para nossos pacientes”, comenta. A pesquisa reforça, ainda, que é importante fazer a análise de “mundo real” em conjunto com dados de exames clínicos, diz a especialista.

<><> Tratamentos que levam à longevidade

A especialista Pam completa que a novidade da pesquisa está nas melhorias no tratamento desses pacientes, o que gera maior qualidade de vida e perspectiva de futuro. “Quando você tem uma droga como a semaglutida, o que você vê é uma perda de peso, uma melhoria na pressão sanguínea, no colesterol, na hemoglobina A1c e no decréscimo de gordura líquida”, afirma Pam.

“Os medicamentos não são apenas sobre perda de peso. É sobre longevidade, qualidade de vida. E isso também tira o estigma, porque, às vezes, pensam que são só para pessoas que estão tentando perder peso. São remédios que melhoram os parâmetros importantes que lidam com a longevidade”, comenta.

Além disso, o objetivo da pesquisa foi entender como a substância pode “melhorar a vida dessas pessoas”, define Henrik Jorlav, vice-presidente global da área médica de Doença Cardiorrenal Metabólica e Alzheimer da Novo Nordisk. “A obesidade limita tarefas simples do dia a dia, como caminhar pequenas distâncias ou ir do carro ao supermercado. Quando conseguimos melhorar isso, transformamos a vida dos pacientes”, completou.

Assim, a pesquisa e a professora Pam Taub ressaltam a importância de os médicos entenderem os benefícios de cada um dos medicamentos para cuidar de um problema específico e único de cada pessoa.

<><> Nota da Eli Lilly (empresa do Mounjaro)

Não temos dúvidas dos benefícios da tirzepatida, que demonstrou perda de peso superior em comparação com a semaglutida no ensaio clínico randomizado SURMOUNT-5. Embora estudos de vida real possam oferecer informações adicionais, estamos analisando os dados do estudo STEER e observamos possíveis falhas de metodologia, como o baixo índice de eventos, curto período de acompanhamento e inconsistências nas dosagens estudadas, fatores que exigem uma interpretação cautelosa da publicação.

A Lilly continua a estudar a tirzepatida para potenciais benefícios cardiovasculares. Os resultados completos do SURPASS-CVOT, um grande estudo de resultados cardiovasculares em pessoas com diabetes tipo 2, serão apresentados no Congresso da Associação Europeia para o Estudo do Diabetes (EASD) no final deste mês. Além disso, o SURMOUNT-MMO é um ensaio clínico global de fase 3 que avalia se o tirzepatida pode reduzir o risco de eventos cardiovasculares graves e morte em adultos com obesidade ou sobrepeso, mas sem diabetes, com resultados esperados para 2027.

•        Pesquisa brasileira abre debate sobre tratamentos alternativos para insuficiência cardíaca

Uma nova técnica para o tratamento de insuficiência cardíaca tem ganhado destaque na medicina mundial, com estudos produzidos nos Estados Unidos e em países da Europa. O método, conhecido como estimulação fisiológica, é mais simples que a terapia convencional e busca imitar o sistema elétrico natural do coração.

Embora promissora e mais viável economicamente, a técnica não foi tão eficiente em pacientes brasileiros, como aponta o estudo PhysioSync-HF, coordenado pelo Hospital Moinhos de Vento, apresentado no Congresso da European Society of Cardiology (ESC), nesta sexta-feira (29/08). A pesquisa, feita com apoio do Ministério da Saúde por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), mostra que o tratamento tradicional ainda é mais seguro e eficiente para a população do país.

“A insuficiência cardíaca é uma doença que deixa o coração mais dilatado e mais fraco”, explica o cardiologista André Zimerman, que é Head da Unidade de Ensaios Clínicos do Hospital Moinhos de Vento. O método convencional consiste no implante de um marcapasso que sincroniza os batimentos do coração nos lados direito e esquerdo. Mas, o especialista alerta que o procedimento tem um custo elevado e pode não funcionar em todos os casos.

É neste contexto que surge a estimulação fisiológica, que faz a estimulação no centro do órgão para bater de forma natural. ”Com isso, em teoria, conseguiria fazer o coração bater mais sincronizado e a um custo muito mais baixo do que o tratamento convencional. Mas, entre teoria e prática, é preciso fazer estudos robustos, principalmente na nossa população”, esclarece.

Segundo o cardiologista, a expectativa era de que o resultado do estudo comprovasse que os procedimentos eram equivalentes no âmbito médico. “O fisiológico seria mais barato e conseguiria abranger mais pessoas no Brasil”, afirma André. Conforme o especialista, a diferença de valor entre a estimulação fisiológica e o tratamento convencional pode chegar a R$ 17 mil.

O estudo foi produzido com o foco na população brasileira e diferentes classes sociais, com uma equipe heterogênea de pacientes de todo o Brasil, que já estavam em terapia médica otimizada tanto no Sistema de Saúde Único (SUS) quanto particular.

“A população brasileira não é representada nos estudos europeus nem nos norte-americanos. E o nosso estudo foi representativo de vários centros no Brasil. Quando a gente tava olhando os dados, encontramos algo que foi contra a tendência dos estudos internacionais”, comenta a chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital Moinhos de Vento, Carisi Anne Polanczyk. A especialista reforça que o resultado do estudo abre um debate em escala mundial, principalmente com a apresentação no Congresso da ESC.

<><> Resultado da pesquisa

De acordo com o cardiologista André Zimerman, o marcapasso, que é o ressincronizador tradicional, foi superior ao fisiológico nos pacientes do estudo. “O novo tratamento resultou em mais morte, mais internações e uma menor melhora do desempenho cardíaco de modo geral”, comenta.

No entanto, o especialista ressalta que os pacientes de ambos os grupos foram “muito bem”. “Todos eles melhoraram a função cardíaca, melhoraram a capacidade física, caminharam mais, as pessoas se sentiram melhor. Os exames melhoraram nos dois braços. Mas, nós vimos que do ponto de vista econômico foi uma grande questão”, completa.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Trabalho escravo no Brasil: números que chocam

Em 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil e pôs fim a uma das formas mais brutais de exploração do trabalho. No entanto, essa realidade cruel, que parece tão distante, ainda se faz presente nos dias de hoje. Um levantamento da Predictus, maior base de dados jurídicos do país, revela que, entre 2015 e 2025, o Brasil registrou, em média, 1.856 novos processos por ano relacionados ao trabalho análago a escravidão, o equivalente a mais de cinco casos por dia, ao longo de uma década.

Ao todo, a análise reuniu 20.414 processos judiciais, formando a maior base de dados já examinada sobre o tema. Os números revelam um Brasil pouco conhecido: um país em que a escravidão moderna movimenta R$ 7,06 bilhões em disputas judiciais e atinge desde pequenos comércios até grandes conglomerados que faturam mais de R$ 1 bilhão por ano.

Casos recentes confirmam essa realidade. Em agosto, uma operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho resgatou 563 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em uma obra de usina de etanol em Porto Alegre do Norte, no Mato Grosso. Recrutados sobretudo nas regiões Norte e Nordeste por meio de anúncios, muitos foram atraídos por promessas de altos salários, mas ao chegarem ao canteiro de obras, depararam-se com abusos, precariedade, jornadas exaustivas e um sistema de dívidas ilegais que restringia a liberdade de deixar o emprego, configurando aliciamento por dívida.

No mesmo mês, 59 trabalhadores foram resgatados em fazendas de café em Minas Gerais, onde enfrentavam condições degradantes: sem registro em carteira, precisavam comprar suas próprias ferramentas e equipamentos de proteção, trabalhavam sem acesso a banheiros, água potável ou locais adequados para refeições, e eram alojados em casas improvisadas, sem mobília e até sem energia elétrica. O caso mais extremo foi o de um idoso que viveu por quase 40 anos em uma propriedade rural sem jamais ter seus direitos reconhecidos.

Também em agosto, seis bolivianos e quatro argentinos, com idades entre 19 e 37 anos, foram libertados de um restaurante argentino em Porto Alegre. Recrutados em seus países de origem com promessas de salários altos eles se depararam com uma realidade oposta: alojamentos precários, remuneração muito inferior à prometida, jornadas que chegavam a 15 horas por dia, além do descumprimento de uma série de direitos trabalhistas básicos.

De acordo com o advogado Paulo Freire, especialista em direitos humanos e direito administrativo e sócio do escritório Cezar Britto Advocacia, o trabalho escravo, em sua conceitualização histórica, pode ser entendido como a privação integral dos direitos de uma pessoa. "Com a promulgação da Lei Áurea, houve a proibição da propriedade de uma pessoa sobre a outra. Entretanto, na contemporaneidade, o cerceamento de direitos de trabalhadores persiste, o que pode caracterizar trabalho em condições análogas à escravidão", explica.

No âmbito jurídico, o conceito está previsto no artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime a partir de quatro elementos:

(I) trabalho forçado: quando o trabalhador sofre coação física e/ou psicológica para exercer determinada atividade;

(II) jornada exaustiva: imposição de carga horária que excede os limites legais (44 horas semanais, segundo a Constituição Federal), comprometendo a integridade física e psicológica;

(III) condições degradantes: ausência de higiene, alimentação inadequada, falta de equipamentos de segurança, exposição a ambientes insalubres, entre outros fatores;

(IV) restrição de locomoção por dívida: impedimento de o trabalhador se desligar da atividade em razão de débitos contraídos, frequentemente criados de forma fraudulenta ou abusiva.

Paulo destaca que a presença de qualquer um desses elementos já é suficiente para a caracterização do trabalho análogo à escravidão. "Essa definição brasileira é amplamente referenciada por organismos internacionais por sua completude", ressalta.

O estudo também quantificou cinco modalidades de trabalho escravo nos processos examinados, excluindo deliberadamente o critério de "condições degradantes" para evitar distorções nos dados. O trabalho análogo à escravidão foi o mais identificado, representando 96,50% dos casos. Em seguida, aparecem: jornada exaustiva (3,54%), trabalho forçado (0,39%), restrição de locomoção (0,09%) e trabalho decorrente de tráfico de pessoas (0,03%).

<><> Impunidade

Quanto ao perfil das vítimas, a análise de gênero — baseada em metodologia que redistribuiu casos inicialmente classificados como indeterminados — apontou que 71,08% dos processos se referem a homens, 26,47% a mulheres e 2,45% a entidades coletivas, como sindicatos. O levantamento também revelou que 76,4% dos casos receberam justiça gratuita, confirmando o perfil de vulnerabilidade socioeconômica das vítimas.

O perfil de vulnerabilidade dos trabalhadores escravizados, segundo Paulo Freire, é um dos principais fatores que explicam a persistência de tantos casos de trabalho análogo à escravidão. Essa vulnerabilidade também se revela como o maior obstáculo para que essas pessoas consigam denunciar ou romper com essa realidade. Freire aponta que a falta de conhecimento sobre direitos básicos, a descrença na efetividade da Justiça e o receio de perder os poucos recursos que garantem a sobrevivência são elementos decisivos para a permanência nessas condições de exploração.

“A ausência de conhecimento sobre garantias fundamentais, como o direito ao salário mínimo, ao FGTS, à jornada de trabalho limitada a 44 horas semanais, além da vedação absoluta a situações degradantes ou de tortura, faz com que muitos trabalhadores sequer percebam que estão em um contexto ilegal”, afirma o especialista.

Outro ponto destacado por Freire é a distância geográfica entre os locais de maior incidência de irregularidades e as instituições de fiscalização e proteção, como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU). “Além disso, a força econômica e, muitas vezes, a influência política dos responsáveis pela exploração geram insegurança, levando o trabalhador a não enxergar na Justiça um instrumento de apoio, punição e reparação”, observa.

Os números reforçam essa percepção. Segundo a Predictus, os desfechos processuais seguem um padrão preocupante: 49,48% dos casos são encerrados por acordo judicial, e não por condenação, o que alimenta a sensação de impunidade.

Para o advogado, a impunidade, somada ao alto benefício econômico obtido com a exploração, é o que sustenta a persistência do trabalho escravo no Brasil. Ele afirma que as punições aplicadas aos empregadores flagrados não têm se mostrado eficazes para inibir a reincidência.

Segundo Freire, embora a lei preveja pena de reclusão de dois a oito anos e a inclusão do infrator na chamada “lista suja” do trabalho escravo, a efetividade dessas medidas ainda é reduzida. Ele cita estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que revela: entre 2008 e 2019, dos 2.679 empregadores denunciados, apenas 112 (4,2%) foram condenados em última instância.

Um exemplo de impunidade é o caso da Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como “Fazenda Volkswagen”, pois pertencia a uma subsidiária da companhia. De acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra e da CNBB, enviado ao Ministério Público do Trabalho em 2019, a fazenda chegou a empregar cerca de 900 trabalhadores entre as décadas de 1970 e 1980, sendo dois terços em condições análogas à escravidão.

Enquanto cerca de 300 atuavam em funções administrativas e de manejo de gado, outros 600, sem vínculo empregatício, realizavam atividades de desmate e roçagem, submetidos a vigilância armada, impedidos de deixar a fazenda e vivendo em alojamentos insalubres, sem água potável, alimentação adequada ou acesso a cuidados médicos. Apesar da gravidade, a condenação da empresa só foi proferida este ano.

Nesse contexto, o especialista destaca a relevância da Emenda Constitucional nº 81/2014, que acrescentou o art. 243 à Constituição Federal, prevendo a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for constatada a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. “Essas terras seriam destinadas à Reforma Agrária, sem qualquer indenização ao proprietário. Entretanto, a sanção ainda não foi efetivamente aplicada, pois depende de regulamentação, atualmente em tramitação no Senado por meio do PL 5.970/2019”, lamenta Freire.

<><> Quem explora

Na percepção de Paulo Freire, o perfil de quem explora é justamente o de quem mais lucra. “Em geral, são empresários com poder econômico e político que se aproveitam da vulnerabilidade dos trabalhadores e da baixa fiscalização para obter lucro”, afirma.

Uma das descobertas da investigação desmonta o mito de que o trabalho escravo no Brasil é um problema restrito a pequenos negócios informais. Na verdade, quase metade dos casos (47,92%) está ligada a grandes empresas, a maior categoria entre todas. Em termos estatísticos, isso significa que é mais provável encontrar trabalho escravo em uma grande corporação do que em um pequeno empreendimento.

Quase um em cada cinco casos (19,25%) envolve grupos econômicos bilionários, o que representa 1.946 processos contra empresas pertencentes a conglomerados que faturam mais de R$ 1 bilhão por ano. Além disso, 15,88% das ocorrências dizem respeito a grupos com mais de 5.000 funcionários, grandes corporações que, em teoria, deveriam dispor de estruturas sólidas de compliance e recursos suficientes para assegurar condições dignas de trabalho.

Outra constatação é que o trabalho escravo no Brasil contemporâneo não se restringe mais a fazendas isoladas do interior. O estudo identificou 880 setores econômicos diferentes envolvidos em casos. A construção civil lidera, com 777 ocorrências, refletindo um histórico de vulnerabilidade do setor. Mas a presença de bancos múltiplos (222 casos) e até da administração pública (279 casos) mostra que o problema extrapolou os limites tradicionais.

O estado com maior número de processos relacionados ao trabalho escravo é São Paulo. Se a prática fosse uma doença, o estado estaria em situação de epidemia: são 10.387 processos, mais da metade de todos os casos do país (50,88%). Só a capital paulista concentra 6.234 processos, o equivalente a 30,53% do total nacional. Para se ter ideia da dimensão, a cidade de São Paulo sozinha registra mais casos de trabalho escravo do que 24 estados brasileiros inteiros.

“São Paulo não é apenas o maior estado em população e economia. É também onde a fiscalização atua com mais eficiência e onde as denúncias chegam mais facilmente à Justiça”, aponta a análise.

¨      Brasil ainda enfrenta desafios no combate ao racismo

O Brasil celebra o Dia da Raça, em 05 de setembro, data criada para valorizar a diversidade cultural do povo brasileiro, formada pela miscigenação entre indígenas, negros, brancos e imigrantes, além de reforçar a importância do respeito às diferenças. Mais do que simbólica, a data é um chamado à conscientização sobre a tolerância e à construção de uma sociedade inclusiva e harmoniosa, diante da persistência do racismo e da intolerância.

Apesar dos avanços, os números revelam o crescimento dos crimes raciais no país. Em 2024, o Brasil registrou 18.200 casos de injúria racial, representando um aumento de 41,4% em relação aos 12.813 casos registrados em 2023. O número de ocorrências de racismo também cresceu, passando de 14.919 para 18.923 no mesmo período, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados evidenciam a permanência do preconceito estrutural e a necessidade de ações efetivas para combater a discriminação.

Para o advogado criminalista e professor de direito processual penal Osmar Callegari, esse crescimento está ligado a dois fatores centrais: a maior conscientização das vítimas, que passaram a registrar as ocorrências, e a naturalização de discursos de ódio tanto nas redes sociais quanto em ambientes presenciais. "Ou seja, não se trata apenas de um aumento de registros, mas da revelação de um problema estrutural que sempre existiu e agora aparece com mais clareza", ressalta.

Atualmente, as redes sociais concentram cerca de 60% dos casos registrados, conforme levantamento da SaferNet Brasil, mostrando que o ambiente digital amplifica práticas discriminatórias. O advogado explica que as redes funcionam como um megafone, dando voz a grupos racistas que antes se limitavam a círculos privados. "O anonimato, a ausência de filtros éticos e o alcance massivo criam um ambiente propício para a propagação da intolerância. É um espaço onde o preconceito se mascara de opinião e encontra audiência instantânea", afirma o especialista.

Entre janeiro e novembro de 2024, o Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, recebeu mais de 5,2 mil relatos de violações envolvendo racismo e injúria racial, abrangendo residências, escolas e ambientes virtuais. Para Callegari, isso revela que o problema não é isolado: "O racismo atravessa o lar, a sala de aula e os espaços digitais. Crianças, adolescentes e adultos convivem diariamente com práticas discriminatórias, do bullying escolar às ofensas em grupos de mensagens", destaca.

Na visão do advogado, o Dia da Raça deve ser entendido como um marco pedagógico. "Não é apenas uma data simbólica, mas uma oportunidade de repensar a história do Brasil, reconhecer a contribuição dos povos negros e indígenas e reafirmar o respeito à diversidade como pilar democrático", afirma.

Um avanço importante, segundo ele, foi a Lei 14.532/23, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo. A norma alterou o Código Penal e a Lei nº 7.716/89, estabelecendo pena de dois a cinco anos de reclusão, além de multa, e garantindo que a vítima tenha acompanhamento jurídico em todos os atos processuais.

"A lei trouxe rigor ao tratar a injúria racial como crime contra a coletividade, imprescritível e com maior poder de investigação do Estado. A mensagem é clara: ofender alguém por sua cor ou origem não é mais 'mero xingamento', é crime", ressalta o especialista.

No entanto, ele destaca que a legislação deve ser acompanhada de conscientização social. "Não basta apenas punir; é necessário que a sociedade se mobilize para promover o respeito às diferenças e combater o preconceito estrutural", explica.

Callegari afirma que a lei atinge a conduta, mas não elimina a mentalidade, pois o racismo estrutural está presente nas relações sociais, na desigualdade de acesso a oportunidades e na perpetuação de estereótipos. "A conscientização social é a única ferramenta capaz de alterar esse cenário, porque ensina desde cedo que diversidade é riqueza e que preconceito não pode ser tolerado", declara.

À reportagem, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) informou que, para identificar um crime racial no Brasil, é preciso avaliar a intenção do ofensor. Se a ação visa ofender a dignidade de uma pessoa específica com palavras ou gestos racistas, trata-se de injúria racial; se atinge um grupo ou coletividade, impedindo-o de exercer algum direito com base na raça, o crime é de racismo. Todos os crimes estão descritos na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Esses delitos são inafiançáveis e imprescritíveis.

O órgão ressalta que é necessário que as pessoas denunciem esses crimes, seja por meio de registro de ocorrência, seja informando diretamente ao MP por sua Ouvidoria. Também é imprescindível que sejam ampliadas políticas públicas de equidade racial e a conscientização da população sobre o racismo, para que, de fato, a sociedade se torne livre de discriminações.

De acordo com Nauê Bernardo Azevedo, diretor de Igualdade Racial da OAB-DF, ainda existem muitos pontos que precisam avançar para que a legislação atual, que combate o racismo e a injúria racial, funcione com efetividade. Ele explica que, apesar do aumento na aplicação de penas para quem comete esse tipo de crime, ainda existe uma grande cifra oculta de casos. Isso ocorre principalmente devido à resistência de alguns órgãos do sistema de justiça criminal em adotar mecanismos capazes de receber e processar essas denúncias de forma adequada.

Na percepção do advogado, um dos principais desafios para a efetiva aplicação das leis que punem esses crimes está no fato de que o racismo também pode se manifestar na forma como integrantes do sistema de justiça criminal enxergam a prática. Quando prevalece a visão de que se trata de uma ofensa menor ou não suficientemente grave para justificar a aplicação da lei, cria uma barreira à sua efetividade. "Por isso, a correta implementação da norma depende de um processo contínuo de letramento e sensibilização dos agentes responsáveis", declara.

Azevedo destaca ainda que a advocacia exerce um papel fundamental na luta pela igualdade racial, pois é a principal responsável por levar os casos ao Poder Judiciário. Cabem aos advogados e advogadas elaborar as teses a serem apreciadas, bem como trabalhar a jurisprudência e os precedentes. Por isso, é essencial que toda a classe esteja preparada para identificar e lidar adequadamente com esse tipo de situação.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

Trump dá sinais de que o desgaste de sua popularidade o obriga a mudar o andar da carruagem

As ressonâncias dos pronunciamentos dos chefes de Estado nas Nações Unidas não cessam de provocar considerações de imenso interesse no mundo. As dissonâncias também.

Se a cada dia que passa o discurso do presidente do Brasil recebe unânimes aplausos e leitura atenta pela imprensa internacional, onde sistematicamente é classificado como um ponto de virada no clima angustiante dos últimos meses, os discursos do presidente Trump e do chefe de governo de Israel, em contrapartida, são objeto de perplexidade um e de constrangimento o outro.

O discurso de Trump talvez se notabilize sobretudo pelas críticas profundas à própria ONU, desfigurando seu papel no pós-guerra e os ideais dos próprios representantes dos Estados Unidos que se notabilizaram pela sempre unânime defesa da paz inscrita na Carta de São Francisco.

Um discurso entre arrogante e inepto a tornar transparente que a política externa dos Estados Unidos da América tem muito ou quase nada a dizer, senão a ilusória pretensão de seu presidente de receber obrigatoriamente o prêmio Nobel da Paz, sabe-se lá por quê.

Já o discurso do chefe de governo de Israel foi pronunciado diante de um plenário esvaziado pelo que talvez seja o maior gesto de repúdio, expresso na saída deliberada de grande parte dos representantes governamentais antes de o orador tomar a palavra; nada mais foi do que uma clara e desafiadora manifestação contra o triste cenário de morticínio na Faixa de Gaza.

As conclusões são óbvias. Tanto o MAGA de Trump quanto a hostilidade à criação de um Estado Palestino receberam reprovação da comunidade internacional representada por seus mais altos dirigentes.

O MAGA, em sua expressão internacional, se revela um Consenso de Washington elevado à décima casa da barbaridade geopolítica. A tentativa de destruição da ONU, tão clara e cínica, terá espantado os mais céticos diante do multilateralismo surgido pós-Segunda Guerra.

Trump simplesmente associa o crescimento dos Estados Unidos à eliminação de todos os mecanismos e regras em defesa do comércio internacional, e os substitui por um jogo de cartas marcadas em que todos os baralhos são devidamente embaralhados com mão de ferro.

MAGA é o novo nome do neocolonialismo mais retrógrado, mais agressivo e mais indiferente ao destino do planeta, às mudanças climáticas e sobretudo ao aumento óbvio dos desajustes sociais e econômicos a que estamos a assistir.

Há porém uma outra face nesta cenografia. Por mais que se queira camuflar, a reação de repúdio internacional, densa e quase unânime, parece romper finalmente o sombrio nevoeiro de impasses sucessivos.

O próprio Trump dá sinais, esperto que é, de que o desgaste de sua popularidade, inclusive internamente, o obriga a docemente mudar o andar da carruagem.

Há indicações claras de que a repercussão do discurso de Lula abre a porta de um debate ansiado faz tempo por vozes frequentes nas Nações Unidas e fora dela. Ou se reforma e se recompõe a Carta das Nações Unidas, inclusive com a reforma de seu Conselho de Segurança, ou a remilitarização crescente dos Estados tenderá, mais cedo ou mais tarde, a provocar a multiplicação de conflitos regionais, o desarranjo do sistema de finanças e comércio internacionais.

O movimento de reforma não será tão rápido quanto deveria. Há velhas e enrustidas ideologias que ainda se supõem verdades absolutas. Mas, como no caso do MAGA, os retrocessos evidentes se mostram insustentáveis e certamente serão prejudiciais a estados e megaempresas.

No centro do debate, os exageros e aspirações indevidas das big techs e a lambança da liberdade de expressão, hoje tão empobrecida nos Estados Unidos, onde até comédia dá cadeia.

Mas é exatamente aí que vejo sucessivas correntes marinhas, sucessivas grutas povoadas de moreias. A questão da chamada liberdade de expressão é o novo nome da Torre de Babel.

Os Estados Unidos de Trump, embora a relativize internamente, parecem opor-se a regulamentações nacionais como já vimos frequentemente. E, como se sabe, os Estados Unidos são mestres em não-aceitar jurisdições internacionais e apregoam a soberania da lei americana erga omnes.

Nas conversações Trump-Lula, convém recordar, agendas pré-acordadas nem sempre são respeitadas na Casa Branca. Temo que o tema seja temível para gregos e troianos.

A soberania aí pode ser desacatada com argumentos jurídicos "pret-à-porter". Terreno movediço, onde ressonâncias e dissonâncias tendem a se confundir.

¨      EUA se preparam para a maior renúncia em massa da história enquanto Trump continua com cortes profundos

O governo Trump deve supervisionar a maior renúncia em massa da história dos EUA na terça-feira, com mais de 100.000 funcionários federais prestes a pedir demissão formalmente como parte da última onda de seu programa de demissão adiada .

Com o Congresso enfrentando o prazo de terça-feira para autorizar mais financiamento ou desencadear uma paralisação do governo , a Casa Branca também ordenou que agências federais elaborem planos para demissões em larga escala de trabalhadores se a luta partidária não resultar em um acordo.

Trabalhadores que se preparam para deixar o governo como parte do programa de demissão — um dos vários pilares dos cortes radicais de Donald Trump na força de trabalho federal — descreveram como meses de "medo e intimidação" os deixaram com a sensação de que não tinham escolha a não ser partir.

“Os funcionários federais ficam para a missão. Quando essa missão lhes é retirada, quando são usados ​​como bodes expiatórios, quando sua segurança no emprego é incerta e quando seu pequeno equilíbrio entre vida pessoal e profissional é destruído, eles vão embora, disse um funcionário antigo da Agência Federal de Gestão de Emergências (Fema) ao Guardian. Foi por isso que eu saí.

O programa de demissão total deve custar US$ 14,8 bilhões , com 200.000 trabalhadores recebendo seus salários e benefícios integrais enquanto estiverem em licença administrativa por até oito meses, de acordo com um relatório dos democratas do Senado em julho.

Autoridades de Trump argumentam que esse gasto vale a pena. O Escritório de Gestão de Pessoal alegou que os custos pontuais reduzem os gastos de longo prazo do governo federal. Também criticou as proteções trabalhistas dos servidores públicos federais, alegando que o governo deveria ter uma "estrutura de emprego moderna e à vontade, como a maioria dos empregadores".

Um porta-voz da Casa Branca afirmou que não houve "nenhum custo adicional para o governo", já que os funcionários receberiam seus salários independentemente do programa. "Na verdade, este é o maior e mais eficaz plano de redução de força de trabalho da história e economizará US$ 28 bilhões anualmente para o governo", acrescentou.

O número total de saídas esperadas por meio de programas de demissão tardia e separação voluntária, rotatividade e aposentadoria antecipada é de cerca de 275.000 funcionários, disse o porta-voz.

Milhares de funcionários federais adicionais foram demitidos como parte da redução de efetivos ordenada pelo governo. O êxodo em massa representa o maior declínio anual no emprego civil federal desde a Segunda Guerra Mundial.

Funcionários federais que aceitaram a oferta de demissão adiada pediram para falar anonimamente na esperança de retornar ao governo federal no futuro e proteger futuras perspectivas de emprego.

Eles estão entrando em um mercado de trabalho em declínio , já que a taxa de desemprego em agosto de 2025 subiu para 4,3%, a mais alta desde 2021, e apenas 22.000 empregos foram criados em meio a interrupções e incertezas causadas pelas tarifas de Trump.

“É um processo de luto enorme”, disse um funcionário do Departamento de Assuntos de Veteranos (VA) que aceitou a oferta de demissão adiada. “Eu e muitos outros que conheço realmente esperávamos encerrar nossas carreiras no governo. Nos sentíamos muito presos, especialmente no VA, à missão.”

“Muitos de nós pensávamos que poderíamos fazer melhor pelos nossos clientes, pelos nossos veteranos fora do VA, e muitos de nós estávamos tão esgotados pelos seis meses anteriores à demissão adiada que, na verdade, foi uma decisão de saúde mental para muitos também.”

Comunicar o motivo da saída tem sido um desafio durante a busca por um novo emprego, disse o funcionário do VA. "O mercado de trabalho está péssimo agora", disse ele. "É ótimo não trabalhar mais de 60 a 70 horas por semana, mas você também perde o apoio daqueles que ficaram e daqueles que podem te julgar por ter saído."

Um arqueólogo do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), veterano militar, disse que "amava" o seu trabalho, mas aceitou o adiamento da demissão por medo e pressão do governo. "Fui forçado a aceitar o plano de demissão. Não fisicamente, nem por meios legais, mas por medo e intimidação", disse ele.

Eles citaram comentários de Russell Vought, chefe do Escritório de Gestão e Orçamento de Trump, que disse sobre os funcionários federais em outubro passado: "Quando eles acordarem de manhã, queremos que não queiram ir trabalhar, porque são cada vez mais vistos como vilões. Queremos que o financiamento deles seja interrompido... Queremos deixá-los traumatizados."

"Foi exatamente isso que aconteceu", disse o funcionário do USDA. "Eu estava com medo de ir trabalhar. Com medo de que o dia seguinte fosse demitido ou impedido de prestar serviços no futuro, com medo de esperar muito tempo para sair e não encontrar um emprego, e simplesmente vivendo cada dia com um nervo à flor da pele."

A difamação pública dos funcionários federais levou muitos a aceitar o programa de demissão, sugeriu o arqueólogo, já que eles eram constantemente inundados com ameaças de cortes e demissões.

Outro funcionário do Departamento de Agricultura dos EUA foi demitido em fevereiro como funcionário em estágio probatório, reintegrado em abril apenas para aceitar a oferta de demissão adiada.

“Naquele momento, senti que eles poderiam me demitir a qualquer momento”, disseram ao Guardian. “É difícil se concentrar no trabalho quando eles podem simplesmente enviar um e-mail e você pode ir embora, e eles mudaram completamente os termos do meu contrato. Eu esperava que as coisas se estabilizassem e houvesse uma oportunidade de voltar, mas agora parece que não haverá mais.”

A Federação Americana de Funcionários do Governo e outros sindicatos que representam trabalhadores federais entraram com uma ação judicial que ainda está em andamento sobre o programa de demissão diferida no início deste ano, alegando que a aquisição contorna a autoridade do Congresso, prejudica funções exigidas por lei de agências governamentais ao perder funcionários em massa e foi promulgada com a ameaça de demissões.

“Expurgar o governo federal de funcionários federais de carreira dedicados terá consequências vastas e não intencionais que causarão caos para os americanos que dependem de um governo federal funcional”, disse o presidente da AFGE, Everett Kelley, em fevereiro. “Esta oferta não deve ser vista como voluntária.

“Entre a enxurrada de decretos executivos e políticas antitrabalhadores, fica claro que o objetivo do governo Trump é transformar o governo federal em um ambiente tóxico onde os trabalhadores não podem permanecer, mesmo que queiram.”

¨      Trump se reunirá com líderes do Congresso dos EUA em último esforço para evitar paralisação

Donald Trump mudou de ideia e supostamente planeja sediar uma reunião bipartidária dos quatro principais líderes do Congresso dos EUA na Casa Branca na tarde de segunda-feira, em um último esforço para evitar uma iminente paralisação do governo , disse o presidente da Câmara e colega republicano do presidente dos EUA, Mike Johnson, no domingo.

A retirada de Trump ocorre dias depois de ele ter cancelado uma reunião planejada para discutir a crise com Hakeem Jeffries e Chuck Schumer , os respectivos líderes da minoria democrata na Câmara e no Senado.

O presidente acusou a dupla de fazer "exigências ridículas e pouco sérias" em troca de votos democratas para apoiar um acordo de financiamento republicano para manter o governo aberto além da noite de terça-feira - mas deixou a porta aberta para uma reunião "se eles levarem a sério o futuro da nossa nação".

Johnson, em entrevista à CNN, disse que conversou longamente com Trump no sábado e que os dois democratas concordaram em se juntar a ele e John Thune, o líder da maioria republicana no Senado, para uma discussão no Salão Oval na segunda-feira.

Ele não disse se Trump negociaria diretamente com os democratas, mas retratou Trump como alguém interessado em "tentar convencê-los a seguir o bom senso e fazer o que é certo pelo povo americano".

Schumer, falando ao programa Meet the Press da NBC, disse que estava "esperançoso de que pudéssemos fazer algo de verdade" — mas não tinha certeza do humor que encontrariam em Trump quando se sentassem para o discurso das 14h (horário do leste dos EUA).

“Se o presidente nesta reunião for desabafar, gritar com os democratas, falar sobre todas as suas supostas queixas e dizer isso, aquilo e aquilo outro, não faremos nada”, disse Schumer.

"Não queremos uma paralisação. Esperamos que eles se sentem e tenham uma negociação séria conosco."

De acordo com a CBS News no domingo, Trump não tem esperança de que a reunião leve a um acordo.

O correspondente nacional chefe da rede, Robert Costa, disse à Face the Nation que falou com Trump por telefone na manhã de domingo e que uma paralisação do governo "parece provável neste momento, com base na minha conversa... Ele diz que ambos os lados estão em um impasse".

Costa disse: “Dentro da Casa Branca, fontes dizem que o presidente Trump na verdade acolhe uma paralisação no sentido de que ele acredita que pode exercer o poder executivo para se livrar do que ele chama de desperdício, fraude e abuso.”

Se nenhum acordo for alcançado, setores do governo federal deverão fechar já na quarta-feira de manhã, com a Casa Branca dizendo às agências para se prepararem para licenciar ou demitir dezenas de trabalhadores .

Líderes republicanos e democratas vêm apontando o dedo um para o outro há dias, à medida que o prazo final para um acordo de financiamento se aproxima, na terça-feira.

A estreita maioria republicana na Câmara aprovou um projeto de lei de gastos de curto prazo conhecido como resolução contínua no início de setembro, que manteria o governo financiado por sete semanas, mas enfrenta oposição no Senado, onde precisa do apoio de pelo menos oito democratas para ser aprovado.

Os democratas fizeram da extensão das proteções de saúde que estão expirando uma condição de seu apoio, alertando que os cortes de gastos planejados pelos republicanos afetariam milhões de pessoas.

"Se não estendermos os créditos fiscais do Affordable Care Act, mais de 20 milhões de americanos terão prêmios, copagamentos e franquias dramaticamente aumentados, em um ambiente onde o custo de vida na América já é muito alto", disse Jeffries à CNN no domingo.

“Deixamos claro que estamos prontos, dispostos e aptos a nos reunir com qualquer pessoa, a qualquer hora e em qualquer lugar, para garantir que possamos realmente financiar o governo, evitar uma paralisação dolorosa causada pelos republicanos e resolver a crise de saúde que os republicanos causaram e que está afetando os americanos comuns.”

Mas Trump e os republicanos acusaram repetidamente seus oponentes políticos de explorar a questão para forçar uma paralisação enquanto ainda havia tempo de sobra para consertar o sistema de saúde antes que os subsídios expirassem em 31 de dezembro.

“Os subsídios do Obamacare são um debate político que precisa ser determinado até o final do ano, não agora, enquanto estamos simplesmente tentando manter o governo aberto para que possamos ter todos esses debates”, disse Johnson.

Não há nada de partidário nesta resolução em andamento, nada. Não adicionamos nenhuma prioridade partidária ou cláusula adicional. Estamos agindo de boa-fé para conseguir mais tempo.

Thune, no Meet the Press, também tentou culpar os democratas pela potencial paralisação e disse que "a bola está na quadra deles" quanto ao próximo desenvolvimento.

“Há um projeto de lei em pauta no Senado agora, podemos pegá-lo hoje e aprová-lo, que foi aprovado pela Câmara e será sancionado pelo presidente para manter o governo aberto”, disse ele.

“O que os democratas fizeram foi tomar o governo federal como refém, e por extensão o povo americano, para tentar obter uma longa lista de coisas que eles querem.”

Mas o senador americano Chris Van Hollen, um democrata de Maryland que já havia pedido à liderança de seu partido para ser mais firme na resistência ao governo Trump, disse que o problema era os republicanos entregando "um cheque em branco" ao presidente para gastar dinheiro em seus próprios interesses políticos, e não nos da nação.

“Até agora, o presidente disse que preferia paralisar o governo do que impedir que os custos da saúde disparassem”, disse ele à CNN.

“Os democratas estão unidos neste momento sobre esta questão. Estou feliz que finalmente estamos conversando. Vamos ver o que acontece.”

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Fonte: Por Adhemar Bahadian, no JB/The Guardian