UMA
SÓ SAÚDE: Produzir sem alimentar
A
alimentação é um direito humano fundamental. Em 1948, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos reconheceu que toda pessoa tem direito a alimentos
suficientes para garantir saúde e bem-estar. Esse princípio foi reforçado em
1966, com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ratificado pelo Brasil, que consolidou o dever dos Estados de assegurar o
Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Esse direito vai além da
disponibilidade de calorias, pois exige acesso regular, permanente e livre a
alimentos em quantidade e qualidade adequadas, sem comprometer outras
necessidades, respeitando a diversidade cultural e com produção sustentável. Em
sociedades democráticas, garanti-lo é promover dignidade e enfrentar
desigualdades que negam a milhões de pessoas o direito a uma vida plena e
saudável.
• Direitos Humanos e Insegurança Alimentar
No
Brasil, a Constituição de 1988 reconheceu a alimentação como um direito
implícito à saúde e à dignidade humana. Mas apenas em 2010 esse direito foi
formalmente incluído no artigo 6º como direito social. A criação do Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), em 2006, e a atuação do
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) fortaleceram
institucionalmente a luta pelo DHAA no país.
Valorizar
a alimentação como direito é essencial, pois ela é um pilar do desenvolvimento
humano — desde a concepção, crescimento físico, desenvolvimento cognitivo e
prevenção de doenças, até a promoção da saúde ao longo da vida. No âmbito da
saúde coletiva, uma dieta equilibrada é decisiva para a produtividade e o
progresso social, enquanto a alimentação inadequada está associada ao
adoecimento precoce e à menor expectativa de vida.
Apesar
de sua centralidade para a saúde e a dignidade, milhões de brasileiros ainda
têm seu Direito Humano à Alimentação Adequada violado. O país vive um paradoxo:
fome e obesidade coexistem. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, a PNAD Contínua do IBGE, de 2023, 27,6% dos domicílios estavam em
insegurança alimentar — 18,2% leve, 5,3% moderada e 4,1% grave, o que
representa cerca de 3,2 milhões de domicílios convivendo com a fome. Embora
mais frequente em áreas urbanas, a insegurança atinge proporcionalmente com
mais força as zonas rurais.
Ao
mesmo tempo, indicadores de excesso de peso continuam em trajetória ascendente.
Segundo o Vigitel, a obesidade entre adultos passou de 11,8% em 2006 para 24,3%
em 2023 e o excesso de peso aumentou de 42,6% para 61,4%. No país, a obesidade
é mais prevalente em mulheres, cresce entre jovens e pessoas com menor
escolaridade, refletindo a forte influência dos determinantes sociais da saúde.
Esse
cenário revela os efeitos de um sistema alimentar que, em vez de garantir o
DHAA, expõe a população à má alimentação. De um lado, falta extrema de comida;
de outro, excesso de alimentos ricos em açúcar, gordura e sódio. A coexistência
de fome e obesidade evidencia que a alimentação não depende apenas de escolhas
individuais, mas de condições sistêmicas que moldam seu acesso de forma
desigual.
Compreender
esse paradoxo exige ir além do comportamento individual e examinar criticamente
os sistemas alimentares — o conjunto de atividades e elementos relacionados à
produção, ao processamento, à distribuição, ao preparo, ao consumo e ao
descarte de alimentos — que moldam o que é produzido, quem consome, quem é
excluído e como esses processos afetam a saúde das populações.
O mesmo
sistema, ao privilegiar práticas insustentáveis de produção e consumo, agrava a
crise ambiental global. A convergência entre desnutrição, obesidade e mudanças
climáticas, com raízes estruturais comuns, caracteriza a chamada sindemia
global — fenômeno em que essas três crises interagem e se reforçam, exigindo
respostas integradas que reconheçam a interdependência entre saúde humana,
ecossistemas e sistemas alimentares, base da abordagem de Saúde Única.
• Produção de alimentos e impactos
socioambientais
A
estrutura dos sistemas alimentares é profundamente moldada pela forma como a
terra é apropriada, ocupada e utilizada. No Brasil, as desigualdades no acesso
à terra, acentuadas por processos históricos de concentração fundiária,
grilagem e avanço do agronegócio, determinam não apenas o que é produzido, mas
também para quem e a que preço. A aquisição de terras por grandes grupos,
nacionais e estrangeiros, voltada à exportação de commodities e insumos
energéticos, tem redesenhado o campo, agravando a insegurança alimentar e a
vulnerabilidade dos pequenos produtores. Entender essas dinâmicas é essencial
para enfrentar os desafios à soberania alimentar, à sustentabilidade ambiental
e aos direitos humanos.
A
rápida expansão da aquisição de terras no Brasil, muitas vezes por meio da
grilagem — conhecida no meio acadêmico como land grabbing — tem despertado o
interesse internacional. O país, com vastas áreas férteis e poucas restrições à
venda de terras a estrangeiros, atrai nações com grandes populações, como a
China, ou com escassez de terras agricultáveis, como a Arábia Saudita. A compra
de terras férteis e baratas, em um cenário de quase ausência de regulações,
torna-se uma estratégia viável. Muitas vezes, há apoio de governos locais
brasileiros, que concedem incentivos fiscais sob o argumento de geração de
empregos e dinamismo econômico. Contudo, essas iniciativas, baseadas em alta
tecnologia e maquinário, reduzem a demanda por mão de obra e frustram a promessa
de desenvolvimento inclusivo.
Essa
dinâmica agrava a insegurança alimentar. A produção nas áreas adquiridas
costuma ser direcionada à exportação, abastecendo populações além-mar. Diante
de eventos climáticos extremos — como secas, inundações e ondas de calor —,
essa dinâmica reduz a oferta de alimentos para as populações locais e eleva
seus preços. O impacto recai principalmente sobre os mais vulneráveis, que
deixam de conseguir comprar ou produzir o necessário para o sustento de suas
famílias. Sem o apoio do Estado, essas pessoas — parcela expressiva da
população — ficam desprotegidas, com dificuldade até para garantir uma
alimentação mínima.
Como
reflexo desse processo, os preços dos alimentos aumentaram expressivamente nas
últimas duas décadas. A figura ilustra esse crescimento na América Latina e na
África: os valores médios subiram cerca de 5,5 e 6,5 vezes, respectivamente.
Não foram incluídas outras regiões, pois países desenvolvidos tendem a dispor
de redes de proteção social mais estruturadas, com recursos abundantes e
sistemas de apoio às populações vulneráveis — diferentemente de países em
desenvolvimento, onde muitas vezes faltam recursos ou parte deles se perde em
práticas não republicanas, como a corrupção.
Como se
não bastasse, há também a aquisição de terras por corporações estrangeiras,
motivadas não pela segurança alimentar de suas populações, mas por retorno
financeiro, especialmente com a produção de energia renovável. Empresas de
países com limitações territoriais controlam grandes áreas em regiões férteis e
remotas, destinadas à exportação ou à geração de energia, com culturas como
cana-de-açúcar, soja, milho e óleo de palma. Embora ligados à cadeia alimentar,
esses cultivos visam à produção de biocombustíveis, que, apesar de menos
poluentes na queima, competem com a produção de alimentos, reduzindo a oferta e
pressionando os preços. Assim, populações mais pobres passam a disputar,
indiretamente, os insumos básicos da alimentação com veículos automotores,
agravando a insegurança alimentar.
Apesar
dos incentivos do governo federal, como o Programa Nacional do Álcool (1975) e
o de Produção e Uso do Biodiesel (2004), ainda é preciso avançar no
desenvolvimento de novas gerações de biocombustíveis, com menor custo e maior
viabilidade em larga escala, sobretudo para reduzir a poluição urbana. O tipo
mais usado hoje ainda pertence à primeira geração, cuja produção depende
fortemente de tratores a diesel, agrotóxicos, fertilizantes químicos, queimadas
e desmatamento — fatores que comprometem sua eficácia ambiental e limitam o
potencial de mitigação de CO₂ ao longo do ciclo produtivo.
No
setor financeiro, o biocombustível é tratado como commodity e oferecido por
bancos e corretoras em investimentos isentos de imposto de renda, como Letras
de Crédito do Agronegócio (LCA) e Certificados de Recebíveis do Agronegócio
(CRA). Brasileiros e estrangeiros aplicam recursos nessas modalidades buscando
lucros elevados e vantagens fiscais. Essa lógica tem impulsionado a compra de
terras voltadas à produção de biocombustíveis, diminuindo o espaço para
alimentos. Embora o governo justifique o uso desses instrumentos para facilitar
o crédito agrícola, alegando vulnerabilidades do setor, o mercado financeiro
ignora os impactos socioambientais, priorizando o lucro.
Os
agravantes ambientais citados — como uso intensivo da terra, agrotóxicos,
fertilizantes e desmatamento — impactam a insegurança alimentar e afetam
diretamente a saúde dos consumidores, além de comprometer a vida útil dos
solos. A médio e longo prazo, a acumulação de impurezas e a degradação
ambiental podem reduzir a capacidade produtiva das áreas, ameaçando a
sustentabilidade futura da produção de alimentos, pontos que podem ser
solucionados por políticas de base técnico-científicas que protejam o capital
natural do país.
• Políticas públicas e o papel do Estado
Diante
dos impactos socioambientais da estrutura produtiva atual, é urgente adotar
tecnologias sustentáveis, como os Sistemas de Integração Lavoura-Pecuária e a
Agricultura Regenerativa Tropical. Essas práticas utilizam insumos biológicos e
compostagem de resíduos e pó-de-rochas para substituir defensivos e
fertilizantes químicos, reduzindo os danos da produção predatória. Uma fazenda
de 1.500 hectares, por exemplo, pode deixar de usar cerca de 12 toneladas por
ano de inseticidas e fungicidas ao adotar o controle biológico. Políticas
públicas nesse sentido devem ser promovidas como estratégia de prevenção de
doenças e promoção da saúde coletiva.
Outro
ponto crítico é a poluição causada por tratores movidos a combustíveis fósseis.
A simples adaptação desses motores para uso de etanol — feita em apenas duas
horas — pode tornar a atividade agrícola carbono neutro ou próxima disso,
reduzindo as emissões de diesel. Técnicas adequadas de plantio e cultivo também
aumentam em até 40% a produtividade da área e estendem de cinco para sete o
número de safras, diminuindo a pressão por novas áreas de plantio.
No
entanto, a adoção dessas soluções exige um concerto político voltado aos
interesses da nação como um todo, e não de um grupo restrito que decide com
base em interesses imediatistas, muitas vezes em desacordo com o bem-estar das
futuras gerações.
As
queimadas ainda são amplamente usadas para “limpar” áreas e antecipar novas
safras, mas seus impactos são graves: comprometem a qualidade do ar, elevam as
emissões de CO₂ e reduzem drasticamente a biodiversidade. Áreas antes diversas
tornam-se monoculturas voltadas à exportação, empobrecendo o solo e o
ecossistema. Esses efeitos alteram o regime de chuvas, intensificam o
aquecimento global e dificultam a produção em pequena escala, especialmente a
agroecológica e orgânica.
Diante
desse cenário, pequenos produtores enfrentam crescentes dificuldades para
manter suas atividades. As mudanças climáticas, aliadas à falta de apoio
estatal, os forçam a vender suas terras e migrar para centros urbanos — muitas
vezes sem sucesso. Esse êxodo rural alimenta a pobreza urbana, a miséria, a
criminalidade e o consumo de entorpecentes. Soma-se a isso a supervalorização
das terras, impulsionada pela compra em larga escala por grandes grupos
econômicos, o que inviabiliza a permanência dos agricultores no campo e sua
subsistência.
Diante
da escassez de alimentos, da alta contínua dos preços, da pressão pelo abandono
da terra causada pelas mudanças climáticas e da falta de apoio estatal nos
momentos críticos, os grupos mais vulneráveis ficam à deriva. Quando os
direitos garantidos pela Constituição e por tratados internacionais não são
respeitados, muitas vezes resta apenas a mobilização social: ir às ruas em
busca de condições dignas de vida.
Nesse
cenário de crescente insatisfação, aumenta o risco de confrontos entre grandes
grupos populacionais e forças de segurança, com potencial de gerar uma espiral
de violência. Isso poderia ser evitado com a garantia do DHAA aos mais
vulneráveis, por meio de políticas que protejam pequenos agricultores, limitem
a aquisição de grandes áreas por estrangeiros, priorizem alimentos em vez de
energia e preservem ou recuperem o meio ambiente. Tais medidas fortaleceriam a
democracia, reduziriam desigualdades e dariam visibilidade a cidadãos hoje
negligenciados pelo Estado.
É
urgente reduzir o abismo das desigualdades para, então, promover um crescimento
econômico mais justo. Falta uma visão sistêmica voltada ao bem comum, que não
favoreça setores em detrimento de outros. A fome desestabiliza o sistema e
ameaça a coesão social. Combater a insegurança alimentar é função central de um
Estado democrático, que busca um desenvolvimento saudável, contínuo e efetivo.
Contudo,
o que se vê é a persistência de decisões políticas guiadas pela lógica da
maximização de lucros privados via captura de mercados, formação de monopólios,
especulação de preços e uso desigual de subsídios e incentivos por meio de
lobbies. A população afetada por essas escolhas pode aceitar suas consequências
ou se organizar coletivamente para pressionar por mudanças estruturais. É nesse
movimento que se revela a urgência de uma nova visão de Estado: uma atuação
pública que reconheça a interdependência entre saúde, alimentação e ambiente.
Superar a insegurança alimentar e fortalecer a coesão social exige políticas
que coloquem a vida no centro, compromisso essencial da abordagem de Saúde
Única.
Fonte:
Por Artur Zimerman ], Jaqueline Lopes Pereira e João Carlos de Campos Pimentel,
no Le Monde

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