quinta-feira, 22 de maio de 2025

UMA SÓ SAÚDE: Produzir sem alimentar

A alimentação é um direito humano fundamental. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconheceu que toda pessoa tem direito a alimentos suficientes para garantir saúde e bem-estar. Esse princípio foi reforçado em 1966, com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil, que consolidou o dever dos Estados de assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Esse direito vai além da disponibilidade de calorias, pois exige acesso regular, permanente e livre a alimentos em quantidade e qualidade adequadas, sem comprometer outras necessidades, respeitando a diversidade cultural e com produção sustentável. Em sociedades democráticas, garanti-lo é promover dignidade e enfrentar desigualdades que negam a milhões de pessoas o direito a uma vida plena e saudável.

•        Direitos Humanos e Insegurança Alimentar

No Brasil, a Constituição de 1988 reconheceu a alimentação como um direito implícito à saúde e à dignidade humana. Mas apenas em 2010 esse direito foi formalmente incluído no artigo 6º como direito social. A criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), em 2006, e a atuação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) fortaleceram institucionalmente a luta pelo DHAA no país.

Valorizar a alimentação como direito é essencial, pois ela é um pilar do desenvolvimento humano — desde a concepção, crescimento físico, desenvolvimento cognitivo e prevenção de doenças, até a promoção da saúde ao longo da vida. No âmbito da saúde coletiva, uma dieta equilibrada é decisiva para a produtividade e o progresso social, enquanto a alimentação inadequada está associada ao adoecimento precoce e à menor expectativa de vida.

Apesar de sua centralidade para a saúde e a dignidade, milhões de brasileiros ainda têm seu Direito Humano à Alimentação Adequada violado. O país vive um paradoxo: fome e obesidade coexistem. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD Contínua do IBGE, de 2023, 27,6% dos domicílios estavam em insegurança alimentar — 18,2% leve, 5,3% moderada e 4,1% grave, o que representa cerca de 3,2 milhões de domicílios convivendo com a fome. Embora mais frequente em áreas urbanas, a insegurança atinge proporcionalmente com mais força as zonas rurais.

Ao mesmo tempo, indicadores de excesso de peso continuam em trajetória ascendente. Segundo o Vigitel, a obesidade entre adultos passou de 11,8% em 2006 para 24,3% em 2023 e o excesso de peso aumentou de 42,6% para 61,4%. No país, a obesidade é mais prevalente em mulheres, cresce entre jovens e pessoas com menor escolaridade, refletindo a forte influência dos determinantes sociais da saúde.

Esse cenário revela os efeitos de um sistema alimentar que, em vez de garantir o DHAA, expõe a população à má alimentação. De um lado, falta extrema de comida; de outro, excesso de alimentos ricos em açúcar, gordura e sódio. A coexistência de fome e obesidade evidencia que a alimentação não depende apenas de escolhas individuais, mas de condições sistêmicas que moldam seu acesso de forma desigual.

Compreender esse paradoxo exige ir além do comportamento individual e examinar criticamente os sistemas alimentares — o conjunto de atividades e elementos relacionados à produção, ao processamento, à distribuição, ao preparo, ao consumo e ao descarte de alimentos — que moldam o que é produzido, quem consome, quem é excluído e como esses processos afetam a saúde das populações.

O mesmo sistema, ao privilegiar práticas insustentáveis de produção e consumo, agrava a crise ambiental global. A convergência entre desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, com raízes estruturais comuns, caracteriza a chamada sindemia global — fenômeno em que essas três crises interagem e se reforçam, exigindo respostas integradas que reconheçam a interdependência entre saúde humana, ecossistemas e sistemas alimentares, base da abordagem de Saúde Única.

•         Produção de alimentos e impactos socioambientais

A estrutura dos sistemas alimentares é profundamente moldada pela forma como a terra é apropriada, ocupada e utilizada. No Brasil, as desigualdades no acesso à terra, acentuadas por processos históricos de concentração fundiária, grilagem e avanço do agronegócio, determinam não apenas o que é produzido, mas também para quem e a que preço. A aquisição de terras por grandes grupos, nacionais e estrangeiros, voltada à exportação de commodities e insumos energéticos, tem redesenhado o campo, agravando a insegurança alimentar e a vulnerabilidade dos pequenos produtores. Entender essas dinâmicas é essencial para enfrentar os desafios à soberania alimentar, à sustentabilidade ambiental e aos direitos humanos.

A rápida expansão da aquisição de terras no Brasil, muitas vezes por meio da grilagem — conhecida no meio acadêmico como land grabbing — tem despertado o interesse internacional. O país, com vastas áreas férteis e poucas restrições à venda de terras a estrangeiros, atrai nações com grandes populações, como a China, ou com escassez de terras agricultáveis, como a Arábia Saudita. A compra de terras férteis e baratas, em um cenário de quase ausência de regulações, torna-se uma estratégia viável. Muitas vezes, há apoio de governos locais brasileiros, que concedem incentivos fiscais sob o argumento de geração de empregos e dinamismo econômico. Contudo, essas iniciativas, baseadas em alta tecnologia e maquinário, reduzem a demanda por mão de obra e frustram a promessa de desenvolvimento inclusivo.

Essa dinâmica agrava a insegurança alimentar. A produção nas áreas adquiridas costuma ser direcionada à exportação, abastecendo populações além-mar. Diante de eventos climáticos extremos — como secas, inundações e ondas de calor —, essa dinâmica reduz a oferta de alimentos para as populações locais e eleva seus preços. O impacto recai principalmente sobre os mais vulneráveis, que deixam de conseguir comprar ou produzir o necessário para o sustento de suas famílias. Sem o apoio do Estado, essas pessoas — parcela expressiva da população — ficam desprotegidas, com dificuldade até para garantir uma alimentação mínima.

Como reflexo desse processo, os preços dos alimentos aumentaram expressivamente nas últimas duas décadas. A figura ilustra esse crescimento na América Latina e na África: os valores médios subiram cerca de 5,5 e 6,5 vezes, respectivamente. Não foram incluídas outras regiões, pois países desenvolvidos tendem a dispor de redes de proteção social mais estruturadas, com recursos abundantes e sistemas de apoio às populações vulneráveis — diferentemente de países em desenvolvimento, onde muitas vezes faltam recursos ou parte deles se perde em práticas não republicanas, como a corrupção.

Como se não bastasse, há também a aquisição de terras por corporações estrangeiras, motivadas não pela segurança alimentar de suas populações, mas por retorno financeiro, especialmente com a produção de energia renovável. Empresas de países com limitações territoriais controlam grandes áreas em regiões férteis e remotas, destinadas à exportação ou à geração de energia, com culturas como cana-de-açúcar, soja, milho e óleo de palma. Embora ligados à cadeia alimentar, esses cultivos visam à produção de biocombustíveis, que, apesar de menos poluentes na queima, competem com a produção de alimentos, reduzindo a oferta e pressionando os preços. Assim, populações mais pobres passam a disputar, indiretamente, os insumos básicos da alimentação com veículos automotores, agravando a insegurança alimentar. 

Apesar dos incentivos do governo federal, como o Programa Nacional do Álcool (1975) e o de Produção e Uso do Biodiesel (2004), ainda é preciso avançar no desenvolvimento de novas gerações de biocombustíveis, com menor custo e maior viabilidade em larga escala, sobretudo para reduzir a poluição urbana. O tipo mais usado hoje ainda pertence à primeira geração, cuja produção depende fortemente de tratores a diesel, agrotóxicos, fertilizantes químicos, queimadas e desmatamento — fatores que comprometem sua eficácia ambiental e limitam o potencial de mitigação de CO₂ ao longo do ciclo produtivo.

No setor financeiro, o biocombustível é tratado como commodity e oferecido por bancos e corretoras em investimentos isentos de imposto de renda, como Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA). Brasileiros e estrangeiros aplicam recursos nessas modalidades buscando lucros elevados e vantagens fiscais. Essa lógica tem impulsionado a compra de terras voltadas à produção de biocombustíveis, diminuindo o espaço para alimentos. Embora o governo justifique o uso desses instrumentos para facilitar o crédito agrícola, alegando vulnerabilidades do setor, o mercado financeiro ignora os impactos socioambientais, priorizando o lucro.

Os agravantes ambientais citados — como uso intensivo da terra, agrotóxicos, fertilizantes e desmatamento — impactam a insegurança alimentar e afetam diretamente a saúde dos consumidores, além de comprometer a vida útil dos solos. A médio e longo prazo, a acumulação de impurezas e a degradação ambiental podem reduzir a capacidade produtiva das áreas, ameaçando a sustentabilidade futura da produção de alimentos, pontos que podem ser solucionados por políticas de base técnico-científicas que protejam o capital natural do país.

•        Políticas públicas e o papel do Estado

Diante dos impactos socioambientais da estrutura produtiva atual, é urgente adotar tecnologias sustentáveis, como os Sistemas de Integração Lavoura-Pecuária e a Agricultura Regenerativa Tropical. Essas práticas utilizam insumos biológicos e compostagem de resíduos e pó-de-rochas para substituir defensivos e fertilizantes químicos, reduzindo os danos da produção predatória. Uma fazenda de 1.500 hectares, por exemplo, pode deixar de usar cerca de 12 toneladas por ano de inseticidas e fungicidas ao adotar o controle biológico. Políticas públicas nesse sentido devem ser promovidas como estratégia de prevenção de doenças e promoção da saúde coletiva.

Outro ponto crítico é a poluição causada por tratores movidos a combustíveis fósseis. A simples adaptação desses motores para uso de etanol — feita em apenas duas horas — pode tornar a atividade agrícola carbono neutro ou próxima disso, reduzindo as emissões de diesel. Técnicas adequadas de plantio e cultivo também aumentam em até 40% a produtividade da área e estendem de cinco para sete o número de safras, diminuindo a pressão por novas áreas de plantio.

No entanto, a adoção dessas soluções exige um concerto político voltado aos interesses da nação como um todo, e não de um grupo restrito que decide com base em interesses imediatistas, muitas vezes em desacordo com o bem-estar das futuras gerações.

As queimadas ainda são amplamente usadas para “limpar” áreas e antecipar novas safras, mas seus impactos são graves: comprometem a qualidade do ar, elevam as emissões de CO₂ e reduzem drasticamente a biodiversidade. Áreas antes diversas tornam-se monoculturas voltadas à exportação, empobrecendo o solo e o ecossistema. Esses efeitos alteram o regime de chuvas, intensificam o aquecimento global e dificultam a produção em pequena escala, especialmente a agroecológica e orgânica.

Diante desse cenário, pequenos produtores enfrentam crescentes dificuldades para manter suas atividades. As mudanças climáticas, aliadas à falta de apoio estatal, os forçam a vender suas terras e migrar para centros urbanos — muitas vezes sem sucesso. Esse êxodo rural alimenta a pobreza urbana, a miséria, a criminalidade e o consumo de entorpecentes. Soma-se a isso a supervalorização das terras, impulsionada pela compra em larga escala por grandes grupos econômicos, o que inviabiliza a permanência dos agricultores no campo e sua subsistência.

Diante da escassez de alimentos, da alta contínua dos preços, da pressão pelo abandono da terra causada pelas mudanças climáticas e da falta de apoio estatal nos momentos críticos, os grupos mais vulneráveis ficam à deriva. Quando os direitos garantidos pela Constituição e por tratados internacionais não são respeitados, muitas vezes resta apenas a mobilização social: ir às ruas em busca de condições dignas de vida.

Nesse cenário de crescente insatisfação, aumenta o risco de confrontos entre grandes grupos populacionais e forças de segurança, com potencial de gerar uma espiral de violência. Isso poderia ser evitado com a garantia do DHAA aos mais vulneráveis, por meio de políticas que protejam pequenos agricultores, limitem a aquisição de grandes áreas por estrangeiros, priorizem alimentos em vez de energia e preservem ou recuperem o meio ambiente. Tais medidas fortaleceriam a democracia, reduziriam desigualdades e dariam visibilidade a cidadãos hoje negligenciados pelo Estado.

É urgente reduzir o abismo das desigualdades para, então, promover um crescimento econômico mais justo. Falta uma visão sistêmica voltada ao bem comum, que não favoreça setores em detrimento de outros. A fome desestabiliza o sistema e ameaça a coesão social. Combater a insegurança alimentar é função central de um Estado democrático, que busca um desenvolvimento saudável, contínuo e efetivo.

Contudo, o que se vê é a persistência de decisões políticas guiadas pela lógica da maximização de lucros privados via captura de mercados, formação de monopólios, especulação de preços e uso desigual de subsídios e incentivos por meio de lobbies. A população afetada por essas escolhas pode aceitar suas consequências ou se organizar coletivamente para pressionar por mudanças estruturais. É nesse movimento que se revela a urgência de uma nova visão de Estado: uma atuação pública que reconheça a interdependência entre saúde, alimentação e ambiente. Superar a insegurança alimentar e fortalecer a coesão social exige políticas que coloquem a vida no centro, compromisso essencial da abordagem de Saúde Única.

 

Fonte: Por Artur Zimerman ], Jaqueline Lopes Pereira e João Carlos de Campos Pimentel, no Le Monde

 

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