Redefinir
as prioridades nacionais
Uma
nota da Andifes merece toda atenção. A associação tem peso histórico, está
associada às políticas de transformação das universidades federais, sendo uma
de suas vozes mais qualificadas, ao lado das representações nacionais de nossas
categorias. Por isso mesmo, usando uma fórmula agora recorrente em seus
documentos, cabe-nos manifestar “profunda preocupação” com o teor de seus
textos mais recentes.
Com
efeito, a Andifes não tem deixado de cumprir seu papel nem de apontar fatos
deveras preocupantes, sobretudo no que se refere a reduções, contingenciamentos
e bloqueios orçamentários. Entretanto, parece fazer de um tudo para não
enunciar uma verdade elementar: a educação superior não é prioridade no atual
governo.
Dirigindo-me
a uma associação que muito prezo e a amigos dirigentes por quem tenho inclusive
afeto pessoal, não posso deixar de apontar, mesmo sem estar em qualquer cargo e
sendo apenas um professor com alguma experiência institucional e uma já extensa
reflexão sobre a universidade pública: a Andifes, nota após nota, tem envolto
os dados preocupantes que apresenta em expedientes retóricos que lhes diminuem
a gravidade.
Com
isso, não denuncia, mas sim lamenta; não critica, mas antes termina por
desculpar. Suas notas, então, se autodestroem e acabam cumprindo um papel
protocolar, que sabemos ser contrário à combatividade individual de cada membro
da atual diretoria e estranho à história da associação.
Cabe
reiterar. Sabemos bem o valor da Andifes e temos em alta conta cada um de seus
dirigentes, mas parecem estar em descompasso com o agravamento da situação que,
não obstante, denunciam. De modo algum podemos imaginar que tenham o temor de
uma crítica ensejar alguma retaliação; bem mais provável é o temor (deveras
errôneo!) de que a crítica a um governo progressista possa favorecer o retorno
do recente obscurantismo.
Reagindo
aos impactos do Decreto nº 12.448, de 30 de abril de 2025, que limita a
execução orçamentária mensal a 1/18 do total autorizado para o exercício, a
recente nota de 14 de maio da ANDIFES é clara.[i] Ela mostra que, de maneira
objetiva, a situação das universidades federais agrava-se de forma inquietante
e, cabe acrescentar, potencialmente devastadora, com impacto imediato e
perverso sobre a assistência estudantil, atingindo assim os mais vulneráveis e
comprometendo toda política de inclusão.
Por
mais que desconfiemos dos interesses e conheçamos as leituras inquinadas da
grande imprensa, as matérias dos jornais sobre a situação das universidades se
multiplicam. Elas escancaram para a opinião pública um quadro sombrio em nossas
instituições – quadro que, aliás, cada um de nós testemunha diretamente e,
conquanto diverso distributivamente em nossas instituições, pode conjuntamente
afetar a qualidade da educação pública superior, além de já comprometer a
obrigação legal do Estado com seu financiamento. Com isso, a própria nação
brasileira, enquanto projeto democrático, está sob ameaça.
A
cautela da Andifes, embora equivocada, não é desprovida de razões. Não podemos
esquecer que enfrentamos muito recentemente formas diversas de obscurantismo,
em graus distintos, desde o período da educada mesóclise (quando ocorreram as
conduções coercitivas de reitores) até o da mais deslavada ignorância (com
ataque direto e explícito à ciência e às universidades). Certamente, qualquer o
grau, lutaremos para que obscurantismos dessa ordem jamais retornem.
Por
outro lado, é também um fato óbvio que a educação superior, antes atacada de
modo até abjeto, não tem tido a devida e merecida prioridade no atual governo,
que comete assim um grave erro – erro alimentado, por vezes, pela falsa
narrativa de uma dicotomia entre a educação básica e a educação superior,
quando, em verdade, a atenção à educação necessita envolver todos os níveis,
conjugadamente.
Estaríamos,
então, com as mãos atadas, limitados a lamentar e expressar “profunda
preocupação”, porque diante de uma tragédia? Ora, a noção de tragédia em
algumas de suas acepções mais clássicas não pode ser aceita, à medida que
poderia envolver uma espécie de rendição ao destino, uma contorção da história
em direção a um evento cuja força se afiguraria inelutável.
Aceitar
essa acepção para a situação trágica ora vivida implicaria permitir que a
sociedade inteira se condene ela própria, renunciando assim ao projeto ainda
adormecido de uma nação verdadeiramente democrática.
Não
podemos aceitar tal condenação. Todavia, colocadas à míngua nossas
instituições, as reações correm o risco de oscilar entre o patético e o
ridículo. Notas continuam a ser e sempre serão importantes, e cumprem seu papel
a Andifes e as reitorias quando as redigem. Não obstante, algumas podem servir
até para entorpecer, porquanto timoratas, quando não lenientes. Além disso,
certas ou erradas em sua forma e no seu momento, o tempo da reação exclusiva
através de notas parece estar superado.
Qual
efeito, afinal, podem ter agora notas institucionais, caso se limitem a um
protesto – sobretudo quando já adiantam um quase pedido de desculpas pelo
simples fato de existirem, nutrindo, quem sabe, a esperança de solucionarem nos
bastidores um quadro de tamanha complexidade?
Essa
falha parece clara na nota da Andifes, que, após apresentar a grave situação,
pondera: “Reconhecemos que o Ministério da Educação tem mantido uma postura de
diálogo aberto com as universidades e demonstrado sensibilidade às pautas da
educação superior.”
Observação
deveras redundante e inócua, agravada pelo agradecimento no mínimo protocolar a
recomposições que já se mostraram insuficientes: “os cortes acumulados ao longo
de vários anos continuam produzindo efeitos significativos, apesar de o MEC ter
realizado algumas recomposições orçamentárias recentemente”.
A
cortesia é um valor, não esqueçamos. A nota não pode ser condenada por ser
cortês, mas sim por essa cortesia ganhar um significado contrário ao seu
propósito. Em situação de profunda inquietação, o que é condição de
possibilidade de diálogo pode tornar-se um expediente para afastar outros
atores, a saber, a própria comunidade e os diversos movimentos sociais que
podem ter interesse em uma nação cuja pauta principal envolva a formação
qualificada de nossa gente, as ciências, as artes, as culturas.
Sobre
serem redundantes, tais concessões parecem doravante insuficientes e sabem mais
à etiqueta do que ao aprofundamento dos pontos. Soam como se a boa vontade do
Ministério da Educação (da qual não duvidamos) ou a competência e a seriedade
do atual Secretário da Educação Superior (bem conhecidas de todos nós)
justificassem alguma contemporização com o difícil quadro orçamentário, quando
sabemos que a aceitação dos atuais contingenciamentos pode comprometer os
melhores projetos do próprio governo.
A
tarefa da Andifes não é ficar em compasso de espera. Deve fazer, sim, a devida
pressão na sociedade, facilitando inclusive a defesa, no interior do próprio
governo, dos melhores interesses da educação por aqueles gestores que, por sua
própria trajetória, são nossos aliados naturais.
É dever
da Andifes enunciar sem meias palavras a necessária redefinição das prioridades
nacionais. Sem essa mobilização, a gestão interna da crise nos ministérios
mitigará quiçá o problema, mas condenar-se-á talvez a um fracasso, por mais
tranquilo que seja agora o diálogo, por mais competentes e sensíveis que o
sejam os gestores.
Medidas
paliativas de liberação de recursos não podem estar no lugar da ação conjunta
que visa a proteger o inteiro sistema das federais e a garantir, por exemplo,
que os recursos sejam suficientes na LOA para ser rodada efetivamente a matriz
Andifes. Por tudo isso, exatamente para valorizar a luta da Andifes e para
favorecer a ação de quantos, no atual governo, compreendem a importância
estratégica das universidades federais, devemos nos fixar na afirmação central
da nota, que não só merece uma ênfase, como também solicita que dela sejam
extraídas as medidas mais consequentes, com uma resposta dos governantes à
altura da gravidade do problema:
As
universidades federais necessitam de liberação urgente do orçamento para que os
pagamentos mensais regulares não permaneçam comprometidos. Além disso, o
orçamento aprovado pelo congresso para este ano é insuficiente para que as
universidades possam honrar com seus compromissos.
Neste
sentido, a recomposição dos cortes aprovados pelo Congresso na LOA 2025 e uma
suplementação no orçamento deste ano são medidas igualmente urgentes e
essenciais para assegurar o funcionamento das universidades federais. (“Nota da
Andifes sobre situação do orçamento das universidades federais”).
Enfatizada
e sem rapapés, a mensagem é clara e ganha consonância com a enunciada urgência.
Afinal de contas, em situação tão adversa para a educação, o próprio governo
não pode mais se omitir, exatamente porque progressista e (assim esperamos!)
decidido a honrar o movimento de expansão das universidades que outrora
inaugurou.
Diante
de ameaça tão grave, o governo deveria ser capaz de convocar a inteira
sociedade brasileira, caso decidido a proteger projetos de longa duração e,
todavia, considere não ter forças sozinho para redefinir os rumos da educação e
as prioridades nacionais.
A
própria Andifes tem autoridade e legitimidade para conclamar a academia e a
sociedade para um profundo debate sobre a educação, oferecendo soluções
inclusive políticas e não apenas caminhos tortuosos para adequar as
universidades a demandas do mercado ou dos governos.
A
capacidade de inovação, afinal de contas, que tem sido apresentada como um
caminho por alguns, decerto faz parte do nosso dever perante a sociedade, mas
não nos define nem nos justifica, como chegaram a propor os que elaboraram o
Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – o malfadado
“Future-se”.
Cabe à
Andifes, portanto, provocar a discussão do financiamento público da educação,
refinando então sua própria matriz de distribuição de recursos para as
federais, de modo que sejam restabelecidas as condições de funcionamento
adequado do sistema e trilhemos o caminho da afirmação das universidades e não
de sua mera sobrevivência – em função da qual, uma vez tomada restritamente,
pode ser quebrado o compromisso essencial e definidor das nossas instituições
com o ensino, a pesquisa e a extensão.
Os
reitores, por sua feita, enquanto precisam, sim, continuar sua luta diuturna
por orçamento, não podem estar satisfeitos com o jogo da captação de emendas e
outros recursos extraorçamentários, sendo ainda pior sua situação quando se
julgam tão isolados e perdidos que acreditam ser sensato dirigir apelos
desesperados à iniciativa privada – apelos que decerto não fariam, caso
tivessem o sistema inteiro lutando a seu favor. Nos dois casos, reforça-se tão
somente a ideia de um descompromisso do Estado com o financiamento público, nas
condições previstas na Constituição Federal e na LDB.
Aqui um
cuidado, vale lembrar. Se o sistema funciona, ninguém larga a mão de ninguém. E
o sistema federal se define pela própria comensurabilidade de condições, pela
qualidade comum a todas as instituições, enquanto universidades públicas,
gratuitas e socialmente referenciadas.
Não é
educado nem civilizado deixar qualquer das instituições em situação de
desespero, e isso é tanto mais imperioso quando se trata da maior das nossas
universidades federais. Neste caso específico, seu calvário vitimiza todo o
sistema de forma bastante objetiva e agora a olhos vistos.
Juntamente
com a Andifes e como representantes em conjunto de um sistema de universidades
federais, os reitores têm, sim, o dever de lançar essa discussão no solo da
universidade e para toda sociedade. E isso é, vale concordar, urgente – palavra
que não temos o direito de usar em vão.
Portanto,
nossos dirigentes deveriam recusar estarem envolvidos em uma busca desenfreada,
fragmentada e competitiva por recursos extraorçamentários, assim como não é
justo que paguem o preço político de se virem obrigados a tomar medidas severas
de restrição de gastos – ao que tudo indica, necessárias.
É
verdade que medidas de contenção já nos serviram até como uma forma de reação
ao obscurantismo. Elas tiveram, então, o significado de uma afirmação
institucional, com a mensagem de que resistiríamos às restrições absurdamente
impostas e jamais deixaríamos a universidade parar. Agora, porém, mesmo sendo
necessárias, não são suficientes e podem inclusive perder tal significado
estratégico. Em suma, elas não substituem uma luta ainda mais decidida.
Parece,
pois, chegado o momento de abrirmos franca e amplamente o debate, de nos
dirigirmos ao parlamento e irmos às ruas, com todos os recursos de luta
pertinentes, dentro e fora das universidades, em manifestação forte e decidida,
na qual se afirme para toda sociedade e em conjunto com as forças progressistas
a mensagem cristalina de que não podemos aceitar o sucateamento das
universidades públicas, de que nunca seremos cúmplices de tamanho absurdo.
Viva o
sistema federal de educação! Viva a Andifes!
¨
Substituição da luta de classes pela guerra cultural. Por
Fernando Nogueira da Costa,
Há uma
tendência estrutural decisiva nas democracias ocidentais no século XXI: a
substituição da centralidade da disputa socioeconômica, expressa na antiga
“luta de classes”, pela guerra cultural, liderada por forças de extrema-direita
nacional-populista. Elas mobilizam valores conservadores, ressentimento
identitário e religiosidade evangélica como forma de organizar o eleitorado
ainda dentro do reducionismo binário do “nós contra eles”.
Essa
mudança não é acidental, mas responde a mutações profundas do capitalismo, da
estrutura de classes e da crise de representação política. Nas democracias
liberais maduras, as políticas econômicas foram progressivamente delegadas a
tecnocracias (bancos centrais independentes, regras fiscais, tratados de
comércio), reduzindo o espaço de escolha popular.
O
espectro político foi reduzido à alternância entre variantes do mesmo
neoliberalismo, com partidos social-democratas aceitando o tripé: austeridade,
livre mercado e rentismo financeiro. Resultado: a política e a economia
perderam sua capacidade de mobilizar afetos e antagonismos, abrindo espaço para
outras pautas simbólicas mais polarizantes.
Com os
acessos à rede social, houve a ascensão da guerra cultural e identitária como
eixo de mobilização. Na pauta da extrema direita, sobressai a defesa da
“família tradicional”, combate ao aborto, ao feminismo, à educação sexual.
Adotou
um nacionalismo econômico seletivo, fazendo ataque a imigrantes, ONGs e elites
globais. Busca a mobilização religiosa contra as “agendas identitárias” como
símbolos de decadência moral ou ameaça à soberania.
Seu
público-alvo é constituído por ex-operários e classes médias ressentidas com a
globalização, desindustrialização e multiculturalismo. Somam-se aos populares
com trabalhos precarizados, religiosamente conservadores, seduzidos pela
retórica de ordem e moral. Tornam-se evangélicos e protestantes, cuja ética de
disciplina, sacrifício e literalismo bíblico se alinha à retórica do “resgate
moral da nação”.
Essa
instrumentalização religiosa e moral da política reúne grupos religiosos
fundamentalistas como blocos de poder político e eleitoral, influenciando
legislação, educação e mídia. Políticos oportunistas (Donald Trump, Jair
Bolsonaro, Viktor Orbán, Giorgia Meloni, Javier Milei, etc.) capturam esse
imaginário para construir coalizões autoritárias sob o disfarce da “liberdade
de expressão” ou da “soberania popular”.
As
consequências sistêmicas são observadas em diferentes esferas, cada qual com
uma transformação observada. A economia foi reduzida à gestão tecnocrática ou
populismo fiscal episódico. Na cultura política, passou a predominar a
polarização simbólica em torno de valores morais, étnicos, religiosos.
Na
representação política, partidos tradicionais entraram em colapso, com a
emergência de outsiders carismáticos. São desqualificados intelectualmente para
a atuação democrática e representativa de toda a nação.
Os
direitos civis sofreram retrocessos em nome da moral, segurança ou soberania
nacional. A própria classe trabalhadora fica dividida entre demandas materiais
(salário, emprego) e valores morais.
A
reforma neoliberal desorganizou a classe trabalhadora, esvaziou a política de
conteúdos redistributivos e deixou um vácuo simbólico preenchido pela
extrema-direita com religiosidade e medo. A esquerda, em muitos casos,
concentrou-se em pautas identitárias legítimas, mas perdeu conexão com o
conflito de classes material, facilitando a hegemonia cultural conservadora
entre as massas.
Essa
transição expressa o esvaziamento do horizonte utópico da esquerda. Ela parece
ter perdido a capacidade de formular projetos de futuro coletivos. O controle
tecnocrático da economia despolitizou temas como orçamento, dívida e regulação.
O uso do medo e da moral como substitutos da justiça social criou lealdades
emocionais não baseadas em interesses materiais como outrora.
Fonte:
Por João Carlos Salles, em A Terra é Redonda

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