'Bebês
reborn são cópia da exploração de crianças reais por seus pais nas redes
sociais'
Por que
incomoda tanto que mulheres adultas brinquem com bonecas, enquanto hobbies
masculinos como vestir-se de herói em encontros de fãs de séries são
naturalizados?
O
questionamento é feito pela psicanalista Thaís Basile diante da repercussão do
fenômeno dos bebês reborn — bonecos hiper-realistas que caíram nas graças de
algumas mulheres e viraram meme, motivo de piada e de projetos de lei que
buscam coibir sua utilização para furar fila ou acessar serviços públicos.
Autora
dos livros Nossa infância, nossos filhos (Matrescência, 2020) e Atravessando o
deserto emocional (Paidós, 2024), Basile afirma que a onda de influencers
"mães" de bebês reborn é uma extensão da fetichização de bebês reais,
expostos pelos pais nas redes sociais.
Ela
também defende que esse "retorno ao infantil" seja analisado não sob
um ponto de vista individual, mas como manifestação de uma sociedade que impõe
às mulheres uma "maternidade compulsória" e as sobrecarrega com
tarefas de cuidado.
"Somos
socializadas para o cuidado e a hiper-responsabilização desde muito cedo, às
custas da própria infância. Cuidamos de irmãos, dos próprios pais imaturos,
depois dos filhos, dos pets. É um sintoma que estejamos apostando num cuidado
imaginário, em que posso fantasiar ser uma cuidadora perfeita para este ser que
não me exige nada", afirma.
Em sua
opinião, a sociedade não tolera ver mulheres se permitindo exercer esse papel
de forma "imatura".
"Enquanto
mulheres cuidam de crianças reais, pets e plantas, ainda estão exercendo um
cuidado esperado. Quando falamos de reborn, estamos falando de um cuidado
fantasioso, e isso toca na ferida do nosso desamparo estrutural", diz
Basile.
"'Como
assim as pessoas que estruturam a sociedade, de quem se espera que sejam
maduras, estão agindo de forma tão imatura?' Isso pode ser
desorganizador."
Para a
psicanalista, parlamentares estão "surfando nesta onda" para
conseguir visibilidade com projetos que "não trazem nenhum benefício real
à população", em vez de criar políticas públicas que ajudem mães de
crianças de verdade.
"Nós,
mulheres, precisamos de leis que tragam apoio e recursos à maternidade
real."
Leia, a
seguir, a íntegra da entrevista:
• Por que as críticas às mulheres adultas
que têm bebês reborn te incomodam?
Thaís
Basile - Me incomoda, mas não me surpreende, que as críticas estejam sendo a
todas as mulheres que brincam de bonecas. Homens sempre puderam se reunir para
praticar hobbies dos mais esquisitos, como correr de kart, se fantasiar de
heróis em encontros de fãs ou mesmo comunicar-se entre si com um idioma próprio
— caso dos fãs da série Star Trek.
Isso
sem falar no assunto delicado das bonecas que são usadas para simular sexo, que
é um mercado advindo da pornografia e é majoritariamente de consumidores
homens. Mulheres que cuidam de bonecas estão sendo mais patologizadas do que
homens que penetram bonecas.
Começaram
a patologizar um grupo todo por fazer role play [atuações] nas redes, com
situações de parto, de passeios filmados. Precisamos contextualizar um retorno
ao infantil, ao idílico, à fantasia de completude e amor absolutos que essa
busca das mulheres pode estar revelando, enquanto meninas são
hiperssexualizadas e hiperadultizadas cada vez mais cedo.
É
preciso ler os comportamentos como sintomas e denúncias, e não apenas
permanecer na culpabilização pessoal. Um grupo inteiro sendo chamado de
"loucas" porque algumas mulheres foram vistas querendo furar a fila
do mercado com bebês falsos é apenas misoginia.
• O que a popularidade desses bonecos
hiper-realistas pode revelar sobre a forma como as mulheres são criadas?
Basile
- É preciso que a gente traga à consciência o fenômeno da maternidade
compulsória, em que nós, mulheres, somos socializadas para o cuidado e a
hiper-responsabilização desde muito cedo, às custas da própria infância.
Cuidamos de irmãos, dos próprios pais imaturos, depois dos filhos, dos pets. Ao
mesmo tempo que o cuidado dignifica e dá algum lugar de reconhecimento às
mulheres, ele também exige, sobrecarrega e adoece.
É um
sintoma que estejamos apostando em um cuidado falso, imaginário, em que o outro
não existe de verdade, mas posso fantasiar ser uma cuidadora perfeita para este
ser que não me exige nada, que não cresce, não tem necessidades e não entra em
conflito.
Também
podemos ver esse fenômeno como uma denúncia do trauma transgeracional feminino,
em que nossas mães tentaram nos transformar em bonequinhas perfeitas porque o
patriarcado premia as mães que têm filhas belas, recatadas e do lar e (ainda
bem) não conseguiram, porque somos pessoas, complexas, únicas — mas projetamos
esse ideal na 'bonequinha da mamãe' que não chora, não sente raiva, é branca (a
maioria das reborn são bonecas brancas), é um anjo.
• Você mencionou em uma publicação nas
redes sociais que deveríamos elaborar as paixões suscitadas pelo tema e agir
com consciência de classe. Por quê?
Basile
- Acho que enquanto mulheres cuidam de crianças reais, pets e plantas, elas
ainda estão exercendo um cuidado esperado, maduro. Quando falamos de reborn,
estamos falando de um cuidado fantasioso, imaginário, e acredito que isso toca
na ferida do nosso desamparo estrutural. "Como assim as pessoas que
estruturam a sociedade, de quem se espera que sejam maduras, estão agindo de
forma tão imatura?". Isso pode ser desorganizador.
Quando
eu falo de consciência de classe, estou falando que apenas culpar mulheres não
leva a lugar algum. É preciso que a gente se conscientize da maternidade
compulsória, da raiz da nossa opressão, que está no corpo, na nossa capacidade
presumida de gestar e parir.
Estamos
sendo criticadas por cuidar de objetos inanimados e não de bebês reais. Saiu a
notícia do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] agorinha de
que, em 2023, o número de nascimentos foi o menor em 45 anos. Por isso temos os
incentivos às trad wifes [esposas tradicionais] e igrejas cada vez mais
fundamentalistas.
A
consciência de classe vem quando nos conscientizamos sobre a opressão à
maternidade real, em que mais de 70% dos casos de feminicídios são com mães no
Brasil, em que as mães, mais ainda as racializadas, sofrem violências
obstétrica, precarização financeira, perda de emprego, sobrecarga e violência
estatal e vicária quando se separam e têm que se virar com pouca pensão e
acusações de alienação. Ser mulher e mãe no Brasil é extremamente sofrido. São
mais de 11 milhões de mães solo que precisam de políticas públicas e apoio de
rede e não conseguem.
O
fenômeno de mães de reborn, de pet e de planta eclipsa as opressões das mães de
crianças, mas também é uma denúncia sobre o peso do cuidado. É claro que apelar
para o cuidado imaginário seria uma saída.
• A popularização dos bebês reborn pode
contribuir para uma romantização da maternidade?
Basile
- Acho que a rotina com os reborn é uma resposta à romantização da maternidade.
É querer viver na fantasia o que é inatingível no real.
• Você já escreveu que a exposição dos
bebês reborn são uma extensão da fetichização de bebês reais, expostos pelos
pais nas redes sociais. Poderia falar sobre esse fenômeno?
Basile
- A precarização da vida materna produz outro fenômeno bastante perigoso: a
fetichização dos filhos. Há um mercado enorme para a exposição de crianças,
alimentado por mulheres que ficam malucas por bebês e, infelizmente, também por
uma rede pedófila que explora sexualmente essas fotos.
As
mulheres só conseguem algum poder e reconhecimento social na maternidade, e a
exposição dos filhos nas redes é um caminho fácil porque o algoritmo premia
isso.
São
crianças usadas pelos pais para subsidiar seu trabalho, sendo envolvidas nas
redes sociais, expostas e exploradas. O narcisismo materno é todo jogado sobre
a criança, que é vista como extensão dela, não como um sujeito de direitos, que
precisa de proteção e privacidade.
Isso é
inadmissível porque faz a criança trabalhar para essa mãe, para essas famílias
que se mostram perfeitas nas redes. É uma vitrine perigosa, que pode ter
consequências nefastas para ela.
Os
bebês reborn são uma cópia fantasiosa desse desejo das mulheres de serem
reconhecidas como mães ideais, que têm filhos ideais. Só que esse ideal não tem
alteridade, não tem substância, fica tudo no imaginário — e nós estamos na
época do imaginário, porque a realidade é muito difícil de encarar.
• Algumas "mães" de reborn
relatam experiências de perda gestacional. Acha que esses bonecos podem ajudar
nesses casos?
Basile
- O que ajuda em uma perda gestacional — aliás, em qualquer perda — são as
relações com outros seres humanos. As bonecas são bons recursos lúdicos quando
usadas para apoio apenas, quando há também um acompanhamento terapêutico ou em
grupo para que aquela perda seja elaborada, para que as emoções difíceis e
conflituosas possam aparecer e serem sentidas, integradas.
• Parlamentares protocolaram projetos de
lei contra pessoas que levarem bebês reborn para serem atendidos em hospitais
ou para obter lugar preferencial em filas. Esses comportamentos não podem
sobrecarregar os serviços públicos?
Basile
- Parlamentares estão surfando nesta onda para conseguir visibilidade com
projetos que não trazem nenhum benefício real à população. Nós, mulheres,
precisamos de leis que tragam apoio e recursos à maternidade real, precisamos
da revogação da lei da alienação parental, de licença paterna estendida, de
garantias sobre proteção contra violências do genitor. São tantas leis e tantas
campanhas que poderiam estar sendo criadas, e os nossos parlamentares
envolvidos com polêmicas de internet.
• Também há projetos de lei propondo
políticas de acolhimento psicossocial pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para
pessoas com vínculo afetivo intenso com bonecas reborn. Esse apego pode
configurar uma condição de saúde mental?
Basile
- Nosso Sistema Único de Saúde já consegue dar conta de acolhimento para quem
está em vulnerabilidade social e psicológica — claro, com muito a melhorar.
Defendo o SUS com unhas e dentes. Por outro lado, fico me perguntando se essas
mulheres ditas adoecidas não são apenas mulheres que já sacaram que a misoginia
dá engajamento e se voluntariam para viralizar e tirar algum proveito disso com
os vídeos de uma suposta condição mental.
• Considera que há uma exposição
desproporcional desse assunto?
Basile
- Acho que não é à toa que esse assunto se aprofundou perto do Dia das Mães.
Tudo é muito sintomático, as mulheres são responsáveis pelo cuidado físico e
emocional da família toda, enquanto metade delas também chefia o lar
financeiramente. As mulheres querem brincar, querem ser imaturas, querem a
fantasia em vez da realidade, e a gente precisa olhar para esse sintoma como
algo social, e não apenas individual.
Fonte:
BBC News Brasil

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