quinta-feira, 1 de maio de 2025

O recomeço de Muçum, a cidade que foi três vezes levada pelas águas

As enchentes que devastaram Muçum, pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, pela primeira vez entre setembro e novembro de 2023, também arrastaram cenários e figurinos da tradicional encenação da Paixão de Cristo – espetáculo que revive os últimos sofrimentos de Jesus, segundo a tradição católica. Muitos dos atores voluntários perderam suas casas, e a tragédia deixou 21 mortos. Em meio ao luto, não havia clima para manter o evento no fim de março de 2024.

Menos de um mês depois da Páscoa do ano passado, a cidade seria mais uma vez arrasada por fortes chuvas. Daquela vez, praticamente todo o estado foi atingido, no que foi considerada “a maior catástrofe climática” da história do Rio Grande do Sul.

Neste ano, no entanto, a apresentação cristã foi retomada com público recorde, segundo os organizadores. Mais do que uma celebração religiosa, a Paixão de Cristo marcou simbolicamente a reconstrução de Muçum – cidade que teve 80% de sua área urbana destruída por uma sucessão de enchentes e perdeu 20% dos moradores.

“Apesar das dificuldades que a cidade ainda enfrenta, a gente decidiu voltar com o espetáculo porque não dá pra viver nesse círculo de tristeza”, disse o produtor Ranieri Moriggi. Um dos desafios foi adaptar o elenco, desfalcado porque muitas pessoas deixaram o município após a tragédia. Alguns atores tiveram que interpretar dois personagens.

Um dos papéis que ninguém queria pegar – o de Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Jesus – acabou ficando com o prefeito, Mateus Trojan (MDB), reeleito no ano passado. Nascido em Muçum, ele participa do espetáculo há 15 anos e já fez vários papéis. “Este ano acabei sendo o vilão. É raro, mas acontece”, disse, com bom humor.

Eleito em 2020, aos 26 anos, Trojan não imaginava que enfrentaria os momentos mais difíceis da história de Muçum. Assim como outros municípios do Vale do Taquari, a cidade convive há décadas com alagamentos, por estar situada em planícies de inundação. A pior cheia registrada até então havia ocorrido em 1941, quando o rio Taquari subiu mais de 29 metros. Em setembro de 2023, esse nível foi alcançado – e superado oito meses depois, em maio de 2024, quando a água ultrapassou os 31 metros.

Entre os dois episódios mais graves, outras três inundações atingiram a cidade – em novembro de 2023, maio e junho de 2024. Foram eventos menores, mas suficientes para manter a população em estado constante de alerta. Ao todo, foram cinco enchentes em menos de oito meses.

•        Como Muçum se reergueu

A Agência Pública esteve no local logo após as enchentes, em maio do ano passado; voltou alguns meses depois, em setembro; e retornou agora, às vésperas da última grande enchente completar um ano. Nas visitas, notamos uma forte resiliência dos moradores, mesmo diante das dificuldades, e uma retomada lenta – mas constante – das atividades típicas de um pequeno município.

A principal medida para evitar novas tragédias foi proibir que moradores de áreas consideradas de risco extremo voltassem para os locais. Havia cerca de 400 famílias nesta situação. Todas foram incluídas em programas habitacionais e estão recebendo aluguel social enquanto não recebem as novas casas. Ainda há cerca de 20 famílias que permanecem próximas ao rio Taquari, mas a prefeitura promete que elas receberão casas em terrenos mais altos até o fim de maio.

Para o engenheiro ambiental Fernando Fan, membro do Grupo de Pesquisa em Desastres Naturais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a decisão de impedir as pessoas de voltarem para áreas de risco foi “muito acertada”. “Essas áreas não são adequadas para as pessoas viverem, já que a água ali tem um elevado poder destrutivo”, diz.

Ele explica que retirar totalmente a população de áreas alagáveis “elimina o risco” e adia a necessidade de outras medidas emergenciais, como novas obras que podem ser demoradas ou até desnecessárias. Com isso, os sistemas de alerta passam a ser direcionados apenas a quem possa ser afetado por cheias excepcionais, e não a todos os que vivem em lugares que sempre alagam, como era antes.

“É uma decisão muito triste, porque são as histórias das pessoas, a identidade delas, mas dada a possibilidade da perda de vidas, infelizmente não é possível retornar. Ainda mais num cenário atual de mudanças climáticas e ampliação de ocorrência das cheias”, afirma.

Considerada o “marco zero” da tragédia gaúcha, Muçum recebeu pelo menos R$ 40 milhões do governo federal e R$ 8 milhões do governo estadual, além de outros R$ 12 milhões do caixa do município. A maior parte do valor é destinada a projetos habitacionais.

A condição para os moradores ganharem uma nova casa é doar o terreno da antiga para a prefeitura. No local, a administração planeja instalar parques e praças com o objetivo de ajudar a escoar as águas do rio em caso de novas cheias. Houve resistência de algumas pessoas, principalmente as que tinham terrenos maiores do que os novos lotes, mas ao longo do tempo foram convencidas (ainda que por falta de opção) de que a medida era essencial para a segurança de todos.

O aposentado Sérgio Taborda estava capinando o terreno onde ficava a sua antiga residência durante a visita do fotógrafo da Pública. Como o local foi condenado como de alto risco, ele e a família tiveram que se mudar pagando aluguel enquanto esperam a casa que será dada pelo poder público.

Taborda continua cuidando do local com a esperança de um dia poder voltar, mas o sonho vai diminuindo a cada dia pelo receio de passar por uma nova calamidade. “O medo faz com que a gente tenha uma certa certa cautela”, diz.

Além das medidas habitacionais, Trojan também firmou um acordo com nove empresas que concentram parte significativa dos empregos do município: cederá terrenos em áreas não sujeitas a alagamentos, desde que as companhias se comprometam a manter suas operações na cidade pelos próximos 15 anos, preservando o número de postos de trabalho e o faturamento registrados em 2023.

Depois do trauma deixado pela enchente de setembro de 2023, o município intensificou os alertas para os moradores se deslocarem a lugares seguros: passou a usar carros de som, grupos de WhatsApp, rádio e redes sociais, além de mandar equipes da Defesa Civil diretamente às casas das pessoas que moram nos primeiros locais alagáveis.

A cidade fez treinamentos com moradores e a Defesa Civil sobre primeiros socorros e como agir em situações de crise, renovou as réguas de medição do rio Taquari e comprou antenas Starlink para permitir a comunicação em caso de queda de energia. Também definiu novos locais de abrigo, já que os antigos passaram a ser atingidos pela água.

Com a população mais atenta, Muçum estava mais bem preparada quando ocorreu a enchente de maio de 2024. Enquanto houve 21 mortes em 2023, não houve nenhuma vítima fatal oito meses depois.

Apesar de as iniciativas para reconstrução estarem em estágio avançado, as de prevenção chegaram a um limite. Fernando Fan diz que novas medidas deveriam ser tomadas a longo prazo por órgãos do governo federal, como a Agência Nacional de Águas e o Serviço Geológico Brasileiro, e pelo governo estadual, que poderia realizar obras na bacia do rio Taquari. No entanto, como a Pública mostrou, há lentidão e falhas em ambos os casos.

Ainda assim, Muçum se destaca em relação a outras cidades da região também afetadas pelas enchentes. Um dos fatores, segundo o especialista, foi a experiência de 2023, quando o município sofreu mais que os vizinhos e, com isso, acumulou aprendizado. “Além disso, tecnicamente, o prefeito tem tomado decisões ponderadas, baseadas no que a ciência indica”, opina Fan.

Resultado ou não das iniciativas, a população voltou a crescer – ainda que timidamente – nas contas da gestão municipal. Após perder mil dos 5 mil moradores nos últimos meses, cerca de 400 decidiram retornar.

•        Casas motivacionais e flores nos canteiros

A volta da Paixão de Cristo e a reabertura da ponte Brochado da Rocha, no início de março, foram os dois marcos simbólicos do recomeço da cidade. Inaugurada em 1963, essa ponte deu à Muçum o apelido de “Princesa das Pontes” e a colocou na rota turística do interior gaúcho.

É difícil não se impressionar com o colosso que cruza a cidade e chega a ter 100 metros de altura no trecho mais alto. Apesar de parte dela ter sido levada pelas chuvas de maio do ano passado, nos meses em que ficou desativada, o que restou da obra ainda serviu como abrigo para moradores que fugiam das águas – e que acamparam lá em cima por dias até que a lama baixasse. O projeto de reconstrução foi o primeiro a ficar pronto, 30 dias depois da tragédia. Os recursos, R$ 9,6 milhões, vieram do governo federal.

Canteiros com flores coloridas foram replantados na avenida principal, para dar “uma energizada” na cidade, como disse o prefeito. As mesmas flores também abundam no loteamento Jardim Cidade Alta 2, o primeiro espaço que foi estruturado para receber pessoas que perderam suas casas na enchente.

Treze casas foram entregues até agora e outras 42 devem sair até o fim de maio. A promessa é de 80 novas moradias até o fim do ano e outras 200 até o fim de 2026, financiadas pelo poder público e empresas privadas.

Como o nome indica, o Jardim Cidade Alta fica num dos pontos mais elevados da cidade – alto o suficiente para escapar de novas cheias, mas ainda com vista para o rio Taquari pela janela.

Teresa e Lisiane de Almeida, mãe e filha, viveram quase 40 anos na entrada de Muçum, ao lado do rio. Acostumaram-se a conviver com enchentes, que vinham todos os anos. “A água subia, a gente saía, depois voltava, limpava e a vida continuava. Mas dessa vez não deu”, diz Teresa. “Por três vezes nós perdemos tudo.”

Em setembro de 2023, quando o rio começou a subir, as duas foram para a paróquia da cidade, que costuma ser usada como abrigo em situações de emergência. Mas outra filha de Teresa, grávida, optou por permanecer em casa com o marido. Eles acreditavam que estavam seguros porque a casa tinha um terceiro piso, onde a água nunca havia chegado antes. Tiveram que ser resgatados de barco pouco antes de a casa submergir.

As duas receberam casas no novo loteamento. Cada uma das residências foi batizada com um nome inspiracional. Teresa vive agora na casa “Força”. Lisiane, na “Despertar”.

Pouco à frente, a aposentada Gemma Broca mora na “Sorriso” com seus dois passarinhos. A casa antiga foi totalmente levada pelas águas, junto com todas as memórias que tinha dos filhos e netos – sua maior tristeza. “A gente tentou colocar no teto, mas não adiantou. Foi tudo, até álbum de formatura”, conta. Como os demais vizinhos, sente falta da vida antes da mudança, mas concorda que agora está mais segura.

Outras vítimas da enchente devem ser alocadas no loteamento Renascer, atualmente em fase de obras de infraestrutura geral e nivelamento dos terrenos, e no Jardim Cidade Alta 3, que está em processo de desapropriação do terreno. O último será o maior, com 200 unidades habitacionais, e deve abrigar não apenas moradores que perderam suas casas na enchente, mas também os que moravam em locais de risco.

A maioria das famílias que viviam às margens do rio se mudaram ou estão na casa de parentes. Elas recebiam um auxílio-aluguel de R$ 800 mensais, que recentemente foi reduzido para R$ 500, após corte de repasses do estado e da União.

O antigo cemitério, tão destroçado pelas cheias que chegou a ter pedaços de lápides levados pelas ruas adentro, ficará em um terreno doado por uma moradora e está em fase de terraplanagem. Enquanto isso, falecidos estão sendo levados para cidades vizinhas.

Aos poucos a cidade retoma a sua rotina, tentando fugir do estigma de uma das cidades mais castigadas pela tragédia climática no Sul, que a fizeram ser conhecida no resto do país. “A cidade nunca voltará a ser exatamente como era, mas a dita normalidade será retomada nos próximos anos”, acredita Trojan. “Será em uma Muçum não igual, mas mais forte.

•        RS ainda avalia danos ao patrimônio histórico da imigração

O restaurador Angelo Reinheimer tinha cerca de 10 anos quando, ao visitar pela primeira vez o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, ficou fascinado por um imenso gramofone Kosmophon nº 4 Elegant. A peça, com caixa em madeira de carvalho europeu, componentes de estanho e adornos em ferro fundido, é uma das 10 mil que compõem o acervo da instituição.

"O gramofone sempre foi uma peça especial para mim. O que mais me chamou atenção foi a grande buzina [peça metálica que amplifica o som produzido pela agulha]", conta Reinheimer, que é atualmente secretário municipal de Cultura de Novo Hamburgo.

Quando a enchente no ano passado inundou São Leopoldo, Reinheimer esteve entre os primeiros voluntários a entrar no prédio do museu fundado em 1959 para preservar a memória da imigração alemã na região. Em meio ao caos instalado no ambiente, seu olhar recaiu espontaneamente sobre o Kosmophon. "Toquei pela primeira vez o gramofone para tirá-lo da água", relata.

Um ano depois da enchente, o relato de Reinheimer expõe um efeito pouco conhecido da tragédia climática: o prejuízo causado ao patrimônio histórico, artístico, cultural e arquitetônico da migração.

A enchente afetou 478 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Os vales dos rios dos Sinos, Caí, Paranhana e Taquari, antes sinônimo de migração sobretudo alemã e italiana, ficaram associados a momentos dramáticos da tragédia climática.

<><> Memória da imigração

Embora o térreo tenha sido inundado, o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo saiu quase incólume da tragédia. Além de portas e móveis, uma das maiores perdas foi um piano Schiedmayer, fabricado em 1904 em Stuttgart. O alto custo de restauração, estimado em R$ 150 mil, levou os mantenedores a optar por expor os destroços do instrumento como um tributo à memória da enchente.

A instituição reabriu as portas no dia 25 de julho de 2024, nas comemorações do Bicentenário da Imigração Alemã. "Os únicos eventos no Dia do Bicentenário em São Leopoldo foram a inauguração de um monumento, um culto na igreja luterana e a reabertura do museu", diz Ingrid Elisabet Marxen, diretora de Relações Institucionais do museu.

Em Igrejinha, os acervos do museu e do arquivo histórico locais, que conservam importante documentação sobre a imigração alemã, tiveram destinos diferentes. As duas instituições estão situadas em pontos próximos do leito do Rio Paranhana.

No museu, a ação coordenada da prefeitura e do governo estadual permitiu salvar parte significativa dos itens. Técnicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) trabalham, de forma voluntária, no congelamento e restauração de uma coleção de livros e partituras musicais.

A técnica de congelamento de documentos permite que manuscritos e impressos em geral sejam conservados durante catástrofes para posterior lavagem e restauração. Em geral, cada item passa por um processo de armazenamento a vácuo, de modo a não ficar em contato com outras peças.

"Igrejinha foi o primeiro município no estado a congelar acervo em papel. A técnica era inédita no Rio Grande do Sul", afirma Dóris Couto, diretora do Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre, e coordenadora do Sistema Estadual de Museus, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado (Sedac).

O arquivo de Igrejinha, porém, teve um destino mais trágico. As águas do Paranhana derrubaram uma parede e levaram toda a documentação histórica relacionada à colonização alemã.

A memória da imigração alemã não foi a única afetada. Em Muçum, uma urna funerária indígena com fragmentos de ossos foi perdida na enchente de setembro de 2023.

<><> Patrimônio arquitetônico

Além da água, desmoronamentos de encosta também causaram prejuízos. Em Nova Petrópolis, deslizamentos de terra atingiram um dos tesouros culturais locais: as edificações em técnica enxaimel, que combina vigas de madeira e alvenaria.

Ao menos três casas históricas das 148 catalogadas no município que utilizam essa técnica foram destruídas ou danificadas. Uma delas foi a casa de Rui Artmann, conhecida como Casa Verde. A residência tinha sido construída pelo avô de Rui, Henrique Artmann.

"O enxaimel está presente em várias partes da Europa e chegou à região de Nova Petrópolis por volta das décadas de 1870 e 1880, trazido por alemães. É uma técnica muito versátil, na qual as peças são numeradas, podendo ser desmontadas e reconstruídas em outro lugar", afirma Pedro Scheer, diretor do Arquivo Histórico Municipal Lino Grings.

<><> Ação rápida

A ação das autoridades contribuiu para evitar uma perda maior dos acervos históricos. Em setembro de 2023, apenas oito meses antes da tragédia de maio, uma inundação havia castigado severamente os municípios do Vale do Taquari. Em Muçum, voluntários descartaram todo o acervo documental do museu local juntamente com resíduos da enchente.

O coordenador de Cultura, Turismo, Esporte e Eventos de Muçum, Ivan Rodrigues, conta que foi até o prédio do museu no dia 7 de setembro, quatro dias depois da inundação, e orientou voluntários a separar os itens que poderiam ser recuperados. "No dia seguinte, quando cheguei lá, já não tinha mais nada do que eu tinha guardado. [Os voluntários] atiravam [itens] pela janela", diz.

Durante as enchentes em maio, a Sedac enviou ofícios aos secretários municipais de Cultura com a orientação de que vedassem portas e janelas de museus com tapumes a fim de impedir o ingresso de estranhos antes da chegada de equipes avaliadoras.

<><> Perdas ainda inestimadas

Em julho do ano passado, o governo do estado estimou em 50 o número de museus atingidos, com perdas que iam desde destruição completa até infiltrações, quedas de telhados e transbordamento de calhas. A essa devastação, somam-se os danos a arquivos públicos, bibliotecas e coleções privadas.

Autoridades e organismos internacionais ainda não têm um levantamento completo do que foi perdido. Uma missão da Unesco, braço das Nações Unidas para a cultura, visitou o Rio Grande do Sul em julho para oferecer assistência e avaliar o patrimônio atingido.

A recuperação do que escapou da água e da lama continua a pleno vapor. Desde o ano passado, o restaurador Cesar Fuhr, de Morro Reuter, dedica-se a consertar peças do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, incluindo uma tiorba, espécie de alaúde de sete cordas.

No final de março, Fuhr começou a trabalhar no gramofone Kosmophon recuperado por Reinheimer. O aparelho continha uma surpresa melancólica: ao abri-lo, um filete de água retida no interior da peça desde a enchente escorreu sobre sua mesa de trabalho

 

Fonte: Por Amanda Audi, da  Agência Pública/DW Brasil

 

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