O
milagre de Dubai: como cidade ultramoderna 'brotou' no meio do deserto
Quando
estourou a crise de 1929, a quebra da Bolsa
de Nova York atingiu mercados de artigos de luxo. Dubai era um deles: a
economia do emirado dependia do comércio de pérolas.
Dez
anos depois, veio a Segunda Guerra Mundial. Dubai e os outros pequenos reinos
que hoje formam os Emirados Árabes Unidos constituíam um protetorado do
Império Britânico. Então eles sentiram, indiretamente, os efeitos do conflito.
Com
o Reino Unido no centro da
guerra, as redes de importação de comida, essenciais para a sobrevivência em
Dubai, foram atingidas. Junte a isso a década perdida na economia local, com o
colapso das pérolas, e o resultado foi a total miséria.
Negócios
faliram, estrangeiros foram embora, a fome chegou. Nuvens de gafanhotos, antes uma praga,
passaram a ser um alívio em tempos de desespero.
As
pessoas fritavam os insetos para comer. Ou então caçavam lagartos do
gênero Uromastyx. Conhecidos em árabe como dub, esses
animais de cauda espinhenta, abundantes no deserto, podem estar inclusive na
etimologia do nome da cidade, segundo alguns linguistas.
Existem
outras teorias mais aceitas, como a que diz que "Dubai" viria do
verbo árabe para "rastejar", por causa do ritmo lento dos barcos na
enseada em torno da qual a cidade se desenvolveu.
Em todo
caso, o fato é que, há apenas 80 anos, pessoas morriam literalmente de fome ou
tinham que comer gafanhotos e lagartos para sobreviver na cidade que hoje é,
talvez, o símbolo máximo de ostentação sem limites no mundo.
Como,
em poucas décadas, esse jogo virou? A resposta é um misto de visão, oportunismo
e certa flexibilidade nos escrúpulos.
·
Uma costa de piratas e pérolas
Povos
nômades habitam o sudoeste da Península Arábica há 2,7 mil anos. Chefiadas por
famílias mercantis do litoral, a região manteve ligação comercial com outros
povos do Golfo Pérsico e além, como
paquistaneses, indianos, etíopes, turcos e chineses.
Assim
surgiram os emirados de Abu Dhabi, Sharjah, Dubai, Aiman, Um al Qaiuan e Ras al
Khaimah.
Uns
mais antigos, como Ras al Khaimah, que já era um porto importante no século 16,
outros mais jovens, como Dubai, que era uma inexpressiva vila de pescadores que
pertenceu a Abu Dhabi até 1833.
Os
portugueses chegaram à região no século 16. Depois vieram os holandeses e, por
fim, os britânicos, que queriam garantir a segurança de suas rotas marítimas
até a Índia Britânica.
Os
ingleses assinaram tratados com os xeques que governavam essas cidades
costeiras, comprometendo-se a ajudá-los em caso de alguma ameaça estrangeira.
Entre o
século 19 e o começo do 20, isso ajudou os emirados a se protegerem de
quaisquer aspirações territoriais, tanto do decadente Império Turco-Otomano
quanto da emergente dinastia Saud, que formou o Reino da Arábia Saudita.
Os
europeus chamavam a região de Costa dos Piratas. Mas essa caracterização seria
exagerada.
Pesquisadores
hoje argumentam que os britânicos difundiram essa fama de pirataria a fim de
legitimar sua dominação sobre a área.
"Fontes
da época colonial mostram como os funcionários da Companhia Britânica das
Índias Orientais usaram vários ataques, feitos por agressores sem ligação com
os emirados, como uma desculpa para a intervenção militar e a repressão
brutal", explica o historiador Johan Mathew, professor da Universidade
Rutgers, nos Estados Unidos.
A
partir de 1820, o termo "Costa dos Piratas" foi sendo posto de lado.
No lugar dele, os ingleses passaram a chamar a região de Estados da Trégua, uma
forma de reforçar os acordos firmados com os emirados.
Se a
ligação com a pirataria era uma forçação de barra do imperialismo britânico, a
exploração de pérolas era realidade. A extração e o comércio dessa concreção
calcária densa formada no interior de ostras específicas é uma atividade
milenar do sul do Golfo Pérsico.
No
século 19, os Estados da Trégua, assim como Catar e Bahrein, dependiam desse
comércio internacional. No começo do século 20, 95% da economia do Golfo
Pérsico girava em torno das pérolas.
Havia
cerca de 1,2 mil navios dedicados à função, cada um deles com até 80
marinheiros. Um quarto dessas embarcações estava em Dubai, segundo o jornalista
Jim Krane no livro Dubai - The story of the world's fastest city ("Dubai
- a história da cidade mais rápida do mundo", sem edição brasileira).
O
crescimento vertiginoso do mercado de pérolas no fim do século 19 criou uma
elite abastada — e uma crise sem precedentes quando tudo colapsou, após o crash de
1929. Mas mesmo que a Bolsa de Nova York não tivesse quebrado, a economia do
Golfo Pérsico já estava condenada.
Pesquisadores
japoneses haviam descoberto, na mesma época, uma maneira de cultivar pérolas.
Foi uma guinada radical para o setor, que não dependeria mais das perigosas e
oscilantes caçadas do Golfo Pérsico.
No
comércio global de pérolas, o costume artesanal e ancestral árabe deu lugar a
uma prática industrializada e padronizada nipônica. É a realidade que perdura
até hoje: a maioria das pérolas de água salgada do mundo vem de fazendas do
Japão.
Dubai
quebrou. Mercadores indianos, que lideravam o contingente de estrangeiros na
cidade, voltaram para Mumbai. Escolas internacionais fecharam as portas, e o
emirado enfrentou 17 anos de miséria.
·
Independência e pobreza
Desde o
século 19, os britânicos pouco fizeram para desenvolver os emirados. Segundo
Krane, os administradores ingleses dos Estados da Trégua gostavam de se ver em
uma missão civilizadora de um povo parado no século 7º d.C., mas na verdade
eles não investiram em educação, saúde ou na criação de instituições políticas.
Impediram
que eles fossem incorporados por sauditas ou turcos, é verdade, mas também os
isolaram do mundo. Isso acabou reforçando o poder dos clãs que comandavam os
sete emirados — como os Al Maktoum, família real de Dubai desde 1886.
Em
1971, os britânicos deixaram oficialmente a região. Pequenos demais para se
tornarem Estados independentes (alguns tinham menos de 2 mil habitantes), os
emirados se juntaram em uma federação. Surgiam assim os Emirados Árabes Unidos
(EAU).
Era uma
nação pobre e atrasada. Não havia universidades, o analfabetismo passava de 70%
e a expectativa de vida era de cerca de 50 anos. Mas, para a sorte do novo
país, havia um novo produto para enriquecê-lo — só que ele não era abundante em
Dubai.
·
Petróleo e infraestrutura
A
exploração de petróleo nos Emirados Árabes começou nos anos 1950, ainda sob
domínio britânico, em Abu Dhabi.
Dubai
tentou e tentou, perfurando insistentemente por anos, sem achar nada.
Talvez
a experiência traumática com as pérolas tenha deixado uma lição. Mesmo
insistindo em encontrar petróleo, o emirado buscava outras fontes de renda.
O xeque
Rashid bin Saeed al Maktoum queria um porto e um aeroporto para seu reino. O
assoreamento na Enseada de Dubai afastava navios maiores, e o investimento
necessário estava muito além das receitas da cidade.
Rashid
levantou esse dinheiro com doações de famílias mercantes, venda de títulos e,
especialmente, com um empréstimo do Kuwait, que àquela época já era um emirado
enriquecido pelo petróleo.
As
obras começaram em 1959, e o porto, batizado com o nome do xeque, foi
inaugurado em 1972.
Nesse
período, muita coisa aconteceu. Rashid recebeu um "não" de Londres ao
pedir autorização para a construção de um aeroporto.
Afinal,
havia uma base aérea britânica a poucos quilômetros, em Sharjah, que era um
emirado mais desenvolvido e importante que Dubai, segundo a historiadora alemã
Frauke Heard-Bey no livro From Trucial States to United Arab States: a
society in transition ("Dos Estados da Trégua aos Estados Árabes
Unidos: uma sociedade em transição", em tradução livre).
Naquela
época, Dubai lucrava com o comércio de ouro importado do Reino Unido e dos EUA
e contrabandeado para a Índia, onde era proibido. Porém, o ouro chegava de
avião, a Sharjah, que ficava com uma fatia considerável do lucro.
O xeque
de Dubai acreditava que só com as taxas pagas na base de Sharjah daria para
construir um aeroporto próprio. Ele, então, contratou uma firma inglesa para
projetar seu terminal e, por fora, pagou a um piloto britânico para que
passasse a trazer suas cargas de ouro para uma pista improvisada em Dubai.
Em
seguida, Rashid entregou um relógio Rolex ao piloto e pediu que ele o desse de
presente ao administrador britânico responsável por Dubai, para conquistas seu
apoio ao projeto do aeroporto.
O gesto
funcionou, segundo Heard-Bey, e em 1960 o Aeroporto Internacional de Dubai foi
inaugurado.
Em
1966, finalmente, o emirado encontrou petróleo. Seis anos depois, a economia
local dependia do petróleo quase da mesma forma do que na época das pérolas.
Cerca de dois terços do PIB de Dubai vinham disso.
Mas os
investimentos em infraestrutura surtiram efeito. Os negócios não relacionados à
exploração de petróleo já estavam crescendo.
Nos
anos 1960, Dubai ganhou linhas telefônicas e água encanada. A luz elétrica
chegou em 1961.
"Não
muito longe dali, Israel já havia lançado um foguete ao espaço. Os soviéticos
enviaram um satélite para Vênus", comparou Krane, para quem Dubai começou
a se desenvolver, ainda sob domínio britânico, não graças ao Reino Unido, mas
apesar dele.
Trinta
anos antes, não havia pontes nem ruas pavimentadas. Concreto e vidro eram
inexistentes nas construções. Era uma corrida contra o atraso.
"A
energia elétrica chegou a Dubai 80 anos depois que as luzes se acenderam nas
Cataratas do Niágara e muito depois do Cairo, Beirute e até da Arábia Saudita.
A eletricidade trouxe todo tipo de conforto desconhecido. Os souks [mercados
tradicionais] foram subitamente inundados de ventiladores, geladeiras, rádios –
até mesmo aparelhos de ar-condicionado", escreveu Krane.
Na
década de 1970, após a independência, o prestígio de Rashid se traduziu nas
duas visitas oficiais feitas pela rainha Elizabeth 2ª. Dubai começava a entrar
no mapa das grandes cidades globais.
Na
segunda dessas viagens, a monarca britânica inaugurou um novo porto, em 1979.
Jebel Ali é hoje um dos terminais portuários mais movimentados do mundo e o
maior porto artificial do planeta.
O
petróleo permitiu que Dubai desenvolvesse a diversificação de sua economia de
base estatal. A cidade sentia os altos e baixos da cotação do barril, mas sem
virar refém dela.
Em
1985, o petróleo correspondia a metade do PIB do emirado. Nos anos 2000, a
fatia caiu para 3%. Hoje, é de menos de 1%.
Foi uma
decisão inteligente, mas baseada também na necessidade. Se a economia de Dubai
se mantivesse muito dependente do petróleo, ela jamais seria rica como é,
porque suas reservas, apesar de significativas, jamais puderam ser comparadas
às de Abu Dhabi ou às de outros países do Golfo Pérsico.
Segundo
a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opec), os Emirados Árabes,
que integram o grupo, são um dos maiores produtores do mundo. Só que nove de
cada dez barris do país estão em Abu Dhabi.
Ou
seja, apesar do que o senso comum pode sugerir, Dubai não é uma cidade do
petróleo, mas de serviços. Finanças, mercado imobiliário, comércio e turismo
lideraram essa diversificação econômica.
É algo
que conversa com o passado do emirado. Dubai era um lugar onde burocratas e
inspetores tinham pouco poder e mercadores de ouro e diamantes — e também de
armas, pessoas escravizadas e drogas — podiam agir com mais liberdade.
·
Contrabando e escravidão
Se as
denúncias de pirataria em séculos passados eram um tanto forçadas, a ligação de
Dubai com mercados desregulados ou ilegais sempre foi bem conhecida. Nos anos
1950, a cidade era estratégica no tráfico internacional de haxixe e ópio, por
exemplo.
Já o
tráfico de escravos, prática milenar que conectava a Arábia à África desde
antes do surgimento do islamismo, se moveu em um ritmo frenético no auge do
comércio de pérolas.
Os
britânicos tentaram coibir a escravidão em meados do século 19, mas ela só foi
banida oficialmente em 1963. Ainda assim, a prática continua fazendo parte da
economia local, mesmo que com um formato diferente.
Segundo
a ONG Walk Free, que combate o trabalho forçado, os Emirados Árabes são um dos
países com maior incidência de escravidão moderna no mundo. Trabalhadores
imigrantes são muito vulneráveis à prática conhecida como "kafala".
Trata-se
de um sistema restritivo de trabalho que vincula os imigrantes aos seus
patrões. Nos anos 2000, por exemplo, trabalhadores protestaram contra as
condições impostas a eles durante as obras do Burj Khalifa, o prédio mais alto
do mundo, com 828 metros.
Um deles se atirou do 147º andar,
em 2011, após ser proibido de voltar para seu país natal, segundo a organização
Human Rights Watch.
De
acordo com a ONG, a kafala gera um forte desequilíbrio de
poder ao conceder aos empregadores o controle sobre a vida dos trabalhadores.
"No entanto, os EAU estão entre os países que mais tomam medidas para
combater a escravidão moderna em comparação com outros da região", reconhece a Walk Free.
·
Olho no turismo
Conforme
a economia se diversificou e cresceu, a população disparou.
Os 40
mil habitantes de Dubai em 1960 viraram 370 mil em 1985. No começo deste
século, o emirado chegou ao primeiro milhão. Hoje, são 3,6 milhões de
habitantes.
Atualmente,
o Aeroporto de Dubai tem o maior tráfego de passageiros internacionais do
mundo. Foram cerca de 92 milhões em 2024, alta de 6,1% em relação ao ano
anterior, quando também liderou a lista.
A
cidade ficou um tanto à frente da segunda colocada, Londres, no Reino Unido,
com 79 milhões de passageiros, de acordo com o Conselho Internacional de
Aeroportos (ACI, na sigla em inglês). Em números gerais de passageiros, Dubai
só fica atrás de Atlanta, nos EUA, que teve 108 milhões de passageiros no ano
passado.
O
governo local já declarou que almeja fazer de Dubai a cidade mais visitada do
mundo ainda este ano. Em 2024, ficou em sétimo lugar, segundo um levantamento da consultoria
Euromonitor. Foram 18,2 milhões de visitantes estrangeiros, muito atrás dos
32,4 milhões da líder do ranking, Bangkok, na Tailândia (mas quase três vezes
mais do que o Brasil inteiro).
É um
feito notável para uma cidade que, apenas oito décadas antes, era uma terra
despovoada, desértica, com edifícios quase indistinguíveis da areia que os
cercava e sobre a qual os poucos viajantes que lá pousavam — por apenas algumas
horas, pois não tinham onde se hospedar — não sabiam nada.
Hoje,
Dubai é uma terra de superlativos. Além do edifício mais alto do mundo, lá
estão a maior fonte pública, o maior shopping center e o maior aquário de
shopping, a piscina mais profunda e a piscina de borda infinita mais alta,
entre outros recordes reconhecidos pelo Guinness World Records, o livro dos
recordes.
Já a
roda-gigante mais alta do mundo fechou as portas misteriosamente em 2022.
Especulou-se que a razão seria o solo da ilha artificial onde ela está
instalada, que estaria cedendo. É um lembrete de que, mesmo na cidade onde
"o céu é o limite", é sempre bom manter os pés no chão. A própria
história de Dubai já mostrou isso.
Fonte:
BBC News Mundo

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