O apagamento da contribuição soviética para a
derrota do nazismo
“Sem os Estados Unidos, a libertação nunca
teria acontecido. (…) A vitória foi alcançada principalmente graças a nós,
gostem ou não”. A declaração foi dada pelo presidente norte-americano Donald
Trump na última quarta-feira, dia 7 de maio, na véspera das celebrações dos 80
anos do Dia da Vitória — data da rendição incondicional da Alemanha nazista e
do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
A frase de Trump é apenas a adição mais
recente a um extenso catálogo de declarações revisionistas que buscam, ao mesmo
tempo, apagar o papel da União Soviética na luta contra o regime nazista e
exagerar a contribuição dos Estados Unidos e de seus aliados no Ocidente.
Nos discursos oficiais das autoridades
norte-americanas, as forças armadas dos Estados Unidos e Reino Unido costumam
ser parabenizadas pela vitória sobre a Alemanha, ao passo que os militares
soviéticos/russos não são sequer citados.
A Rússia foi excluída da celebração dos 80
anos do desembarque das tropas aliadas na Normandia, organizada pela França no
ano passado. Já a Alemanha, que até 20 anos atrás estava banida da cerimônia,
esteve presente no ato.
Em 28 de janeiro de 2020, em pleno Dia de
Lembrança do Holocausto, a Embaixada dos Estados Unidos na Dinamarca
parabenizou os soldados norte-americanos por “libertarem os judeus de
Auschwitz” — ignorando o fato de que foram os combatentes do Exército Vermelho
que libertaram o mais infame dos campos nazistas.
• O
esforço de guerra soviético
É somente através de doses cavalares de
negacionismo, revisionismo e desinformação que se pode negar o papel da União
Soviética na Segunda Guerra Mundial. O país é, de longe, o que mais contribuiu
para a derrota da Alemanha nazista.
Nenhuma outra nação venceu tantas batalhas e
mobilizou tantos soldados no esforço de guerra. Entre 1941 e 1945, o Exército
Vermelho destruiu e capturou 607 divisões do Eixo. Para efeitos de comparação,
Estados Unidos e Reino Unido, juntos, neutralizaram 176 divisões.
Os soviéticos foram responsáveis por encerrar
o domínio alemão em quase todas as nações do Leste Europeu e liberaram os
prisioneiros dos maiores campos de concentração e extermínio mantidos pelo
Terceiro Reich.
Mais de 74% das baixas totais da Alemanha
nazista (10 milhões, entre 13,4 milhões de soldados) foram provocadas pelo
Exército Vermelho. O número de soldados nazistas mortos pelas tropas soviéticas
na Frente Oriental é seis vezes maior do que o contingente de todas as outras
frentes somadas.
Em seu ápice, a União Soviética mobilizou 34
milhões de soldados no Exército Vermelho — 2,6 vezes mais combatentes do que as
outras 25 nações aliadas juntas. Os soviéticos inutilizaram 75% de todo arsenal
da Alemanha nazista — incluindo 62 mil aviões, 56 mil blindados e 180 mil peças
de artilharia.
A capacidade industrial da União Soviética
foi um pilar fundamental da luta antinazista. O governo soviético mobilizou
milhares de fábricas para atuar no esforço de guerra. Entre 1941 e 1945, o país
fabricou aproximadamente 20 milhões de rifles, 55 mil tanques T-34, 36 mil
canhões autopropulsados, 120 mil aeronaves e 70 navios de guerra.
• O
custo do conflito
A União Soviética é também o país que mais
sofreu perdas humanas durante a Segunda Guerra Mundial. A ofensiva genocida
perpetrada pelos nazistas contra o país custou a vida de 14,6 milhões de civis
e de 12 milhões de soldados. Ao todo, 26,6 milhões de soviéticos foram mortos
no conflito — quase 14% da população do país.
Além das mortes em combate e nos campos de
prisioneiros, muitos soviéticos faleceram em decorrência das doenças e das
crises famélicas. Estima-se que mais de 800 mil morreram de fome apenas no
Cerco a Leningrado. Ao menos 5 milhões de sobreviventes soviéticos ficaram
gravemente feridos ou mutilados.
A perda de uma geração de jovens criou um
desequilíbrio demográfico que afetou a União Soviética por décadas. A
destruição de parte substancial da força de trabalho teve profundo impacto na
economia do país.
O segundo maior contingente de mortes na
Segunda Guerra Mundial pertence à China — entre 15 e 20 milhões de mortes. Os
Estados Unidos perderam cerca de 419.000 pessoas (0,3% da população), e o Reino
Unido, aproximadamente 450.000 (0,9% da população).
A União Soviética também sofreu enormes
perdas econômicas. Conforme o Protocolo Final de Yalta, o país arcou com 65%
dos prejuízos totais da guerra. Durante os julgamentos de Nuremberg, a União
Soviética apresentou evidências de que os alemães dizimaram 71 mil cidades e
vilarejos e destruíram 32 mil empresas.
Cerca de 98 mil fazendas coletivas foram
arrasadas, com a perda de milhões de cabeças de gado e equipamentos agrícolas.
Dezenas de milhares de ferrovias foram destruídas.
• O
reconhecimento da façanha soviética
Tão crucial e evidente foi a colaboração
soviética na luta contra o nazismo que até mesmo as autoridades
norte-americanas se viram obrigadas a dar o braço a torcer.
Ainda em 1943, o presidente Franklin
Roosevelt exaltou em um discurso os “feitos magníficos, sem paralelo na
história” do Exército Vermelho, responsável por, em suas palavras, “colocar
Hitler e suas tropas no caminho da derrota definitiva”.
Douglas MacArthur, o comandante-chefe do
Exército dos Estados Unidos, chamou a campanha russa contra a Alemanha de “a
maior conquista militar de toda a história”.
Frank Knox, secretário da Marinha
norte-americana, reconheceu que os Aliados tinham uma “dívida de gratidão
eterna com os povos e exércitos da União Soviética”. E o secretário de guerra,
Henry Lewis Stimson, assegurou que “jamais houve maior demonstração de coragem
do que a do povo da Rússia soviética”.
A percepção de que a União Soviética havia
sido a principal responsável pela derrota do nazismo era compartilhada pelo
público em geral. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Francês de Opinião
Pública (IFOP) em maio de 1945, logo após o fim da Segunda Guerra na Europa,
deixa esse dado mais evidente.
Quando questionados pelos pesquisadores sobre
qual era o país que mais tinha contribuído para a derrota da Alemanha nazista,
57% dos franceses apontaram a União Soviética. Outros 20% disseram que era os
Estados Unidos. E 12% indicaram o Reino Unido.
Mas ao repetir a mesma pesquisa em 2004, o
IFOP obteve resultados completamente distintos. Nessa última sondagem, 58% dos
franceses creditaram aos Estados Unidos o papel de principal responsável pela
derrota dos nazistas. Outros 16% apontaram os britânicos. E somente 20%
afirmaram ser a União Soviética.
• A
batalha pela memória
A alteração do entendimento dos franceses
reflete não apenas o efeito do distanciamento histórico no conhecimento acerca
da contribuição efetiva dos Aliados, mas sobretudo o papel proeminente da
indústria cultural, da mídia e dos aparelhos ideológicos ocidentais na
percepção da realidade.
A breve política de tolerância em relação à
União Soviética que vigorou durante a Segunda Guerra foi abruptamente encerrada
após o término do conflito e a emergência da Guerra Fria. Em 1947, os Estados
Unidos instituíram a Doutrina Truman — uma política que visava conter a
expansão do bloco socialista e reforçar o domínio político, cultural, militar e
econômico dos Estados Unidos sobre as nações periféricas.
Como parte desse esforço, as potências
ocidentais pretendiam resgatar e amplificar a narrativa da União Soviética como
uma ameaça perigosa para o “mundo livre”. Era necessário, então, apagar o
poderoso trunfo que os socialistas adquiriram ao derrotar o mais nefasto regime
da história — que fora, aliás, reivindicado ou elogiado por ícones do
liberalismo, incluindo Churchill, Henry Ford e William Hearst.
Boa parte dos centros de formação e difusão
do pensamento ocidental foram mobilizados na tarefa da reescrita da história.
Na academia, uma poderosa corrente revisionista ganhou fôlego a partir dos anos
50, propondo a equiparação do nazismo ao comunismo, tratando-os como regimes
totalitários semelhantes.
Buscava-se, dessa forma, deslegitimar o
legado da União Soviética, sugerindo que sua luta contra o nazismo não se
encontrava em um patamar diferenciado de civilidade ou moralidade.
O mesmo modus operandi foi repetido na
campanha contra Josef Stalin. Para desqualificar o homem que derrubou o
Terceiro Reich, era necessário convencer o público de que ele era um genocida
ainda pior do que Hitler.
Historiadores e jornalistas ligados ao
pensamento anticomunista, de Robert Conquest a Stéphane Courtois, produziram
centenas de trabalhos que tinham como foco “denunciar os horrores” cometidos
pela União Soviética, apresentando números de vítimas cada vez mais
impressionantes — obtidos a partir de metodologias cada vez mais inconsistentes
e questionáveis.
• Os
mitos
Um dos artifícios mais utilizados na campanha
de desqualificação e vilanização da União Soviética e de difusão do ideário
anticomunista foi a reciclagem de mitos criados pela propaganda nazista.
O caso mais conhecido é o do Holodomor. A
tese de que Stalin teria causado propositalmente a terrível crise famélica de
1932-1933 fora criada pelo próprio Joseph Goebbels, ministro da propaganda de
Adolf Hitler, ainda em 1934.
Durante a Guerra Fria, a acusação seria
retomada e difundida à exaustão — a despeito do fato de que, até hoje, mesmo
após a abertura dos arquivos soviéticos, jamais se encontrou qualquer prova
documental que valide a tese de que a fome foi construída como parte de um
plano genocida.
Ao mesmo tempo em que a imagem da União
Soviética era violentamente atacada, filmes, séries, documentários e a
indústria cultural em geral supervalorizavam o papel dos Estados Unidos na
guerra. A grande maioria das produções ocidentais sobre o conflito tem como
foco a Frente Ocidental ou o Pacífico — ignorando a Frente Oriental, onde a
União Soviética lutou e onde quase 80% das baixas alemãs ocorreram.
A ênfase no “Dia D” e sua caracterização como
o “ponto de virada” da guerra é um caso clássico. A invasão da Normandia,
liderada pelos Estados Unidos, é frequentemente apresentada pelas narrativas da
cultura de massa como o evento decisivo da Segunda Guerra Mundial — ao mesmo
tempo em que as ofensivas soviéticas que efetivamente definiram os rumos do
conflito, como as batalhas de Stalingrado e Kursk e a Operação Bagration, são
totalmente ignoradas.
Alguns autores contemporâneos têm se
esforçado em corrigir essas distorções, mas a influência das narrativas da
Guerra Fria ainda persiste em certos círculos. Os norte-americanos parecem
seguir à risca a ideia de que, se não é possível mudar o passado, é possível
manipular a percepção das pessoas aliando propaganda e ignorância e vendendo
revisionismo histórico como entretenimento.
Fonte: Por Estevam Silva, no Opera Mundi

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