Luiz Marques: Era uma vez no Ocidente
Para um antigo hebreu, a pergunta “Você
acredita em Deus” equivalia à indagação “Você tem fé em Jeová?” Não indicava um
problema intelectual, mas uma equação relacional. Os pré-modernos não se
sentiam interpelados pela dúvida sobre a existência da divindade, diferente dos
modernos em um período em que a vida nunca valeu tão pouco. O século XX, por
expelir lavas de extermínio aos borbotões e contabilizar milhões de óbitos
desnecessários, foi um matadouro em escala industrial.
Em época de desvalorização prática da vida,
na Europa, é fácil supor que a filosofia existencialista espelhou as angústias
provocadas pela Grande Depressão após a Primeira Guerra Mundial (Martin
Heidegger, O ser e o tempo, 1927) e ao final da Segunda Guerra (Jean-Paul
Sartre, O ser e o nada, 1943). As elucubrações sobre o “ser-aí” vêm à luz
quando os papéis, as crenças e as convenções estabelecidas entram em crise. Com
novos métodos, o desprezo pela vida ressurgiu nos anos 1980 com a hegemonia do
neoliberalismo. A necropolítica é a continuação do absurdo por outros meios.
Nas palavras de Terry Eagleton, em O sentido
da vida: “No clima de pragmatismo e malandragem de rua característico do
capitalismo pós-moderno mais avançado, de ceticismo em relação a grandes
narrativas e sínteses abrangentes, de desencanto com tudo que é metafísico, a
vida é mais uma dentre as totalidades que perderam o crédito”. Leia-se a nação,
a religião, a justiça, a política, a educação. A formação da identidade desceu
dos temas superlativos para o consumo individual. As dimensões sociais da vida
pública foram relegadas ao privado. O imperativo categórico derreteu.
Entre nós, a nação ao revés de realizar os
ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade virou entreposto comercial
de commodities para o agronegócio. A religião, que por milênios colonizou o
poder central e formatou ideologias, se reinventou no fundamentalismo
obscurantista da teologia de domínio, com a espada. Olho por olho, dente por
dente. O Primeiro Testamento bíblico venceu.
A justiça foi instrumentalizada pelo
dinheirismo da magistratura, manipulou a opinião pública com o lawfare e
abjurou Têmis. A política foi capturada por emendas secretas no orçamento da
União. A escola pública converteu-se num ativo privatizável (São Paulo, Minas
Gerais, Paraná, Rio grande do Sul), onde medíocres governantes acenam a
liquidação do patrimônio estatal na disputa pelo prêmio de entreguista n°. 1
para angariar apoio das “elites”, nas próximas eleições. A infâmia cora frades
de pedra, não cínicos. Não se trata de elogiar as condições do passado, mas de
formular a crítica aos condicionamentos do presente.
• As
evidências da barbárie
A pós-modernidade pôs em xeque os valores que
uniam as partes de forma orgânica ao todo. A racionalidade foi rebaixada ao
autointeresse e ao cálculo dos benefícios pessoais. A moralidade passou a ser
objeto de fórum íntimo, sem correspondência pública. A busca do prazer acabou
por sobrepujar o desejo de reconhecimento social. A idolatria da mercadoria
arrebatou as mentes e os corações. Porém não supriu o vazio que encobre as
terras, engolfa os céus e mina as consciências.
O entendimento original do termo “indivíduo”
(indivisível, inseparável de) murchou no processo de sua independentização das
instituições. A própria noção de sentido foi colocada sob suspeição, por
transmitir a ideia de que uma coisa pode representar outra. Nos dias atuais, as
interpretações foram descartadas. As alegorias sumiram da paisagem. As
individualidades padecem da fragmentação.
Para ilustrar com um escândalo, os golpistas
brasileiros se defendem da acusação de tentar destruir o Estado de direito
democrático, alegando que a minuta de um golpe é apenas uma inocente escrita.
Não está articulada com ações, pronunciamentos e manifestações. Os
significantes se bastam. Não abrigam significados ocultos à espera da
decodificação esclarecedora. Para Terry Eagleton: “Uma sociologia positivista e
uma psicologia behaviorista, aliadas a uma ciência política míope, vieram
consagrar a traição da intelligentsia (conservadora)”. Quanto mais as ciências
humanas se adaptam à economia, mais deixam de lado a investigação profunda de
temas fundamentais para a sociedade.
O simbólico se dissociou do empírico. A
privatização jogou no ralo os sentidos do real. Naturalizou a
desindustrialização, a precarização do trabalho, o desequilíbrio ambiental, o
racismo, o sexismo, a transfobia, a aporofobia, o negacionismo cognitivo. Aos
trabalhadores em situação de rua, coube a regressão ao estágio das cavernas
urbanas improvisadas com sucatas. Eis as evidências da barbárie.
Na grama das arenas contemporâneas, tribos
selvagens ocupam o lugar das classes sociais junto às massas para expor as
paixões da xenofobia (“Abre os Olhos, Japonês!”) e do supremacismo (“Olé, Olé,
Olé, Vini Chimpanzé!”). Hoje o futebol é o ópio do povo. Os templos são o crack
da periferia. O Zeitgeist reconhece sua criação nas arquibancadas belicosas
entre o júbilo e a maldição de si.
• Felicidade
– prática social
Os pós-modernos não recordam o tempo em que
havia verdade, sentido. Sua sensatez implodiu com a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991. A frase emblemática dos últimos cem
anos era “Todo poder aos sovietes”, a qual complementava a célebre declaração
“Deus está morto”. Com o fim dos terríveis pesadelos siberianos, a
unipolaridade imposta pelo imperialismo estadunidense procurou parar a roda da
história. Com a ignóbil derrota da utopia, o slogan dos think thanks
neoliberais “Todo poder ao livre mercado” saudou as desregulamentações e as
finanças.
O ufanismo continha a promessa demagógica de
prosperidade; descumprida. A democracia recebeu então o adjetivo de iliberal,
caracterizando-se pelo oxímoro. O autoritarismo é guardião do sistema que
alimenta a acumulação rentista, com total indiferença. Como no poema visionário
de T. S. Eliot: “Num mundo apenas de especulação / O que poderia ter sido e o
que foi / Convergem para um só fim, que é o presente. // Absurdo o sombrio
tempo devastado / Que antes e após seu rastro alastra”.
Não obstante, o ânimo dos progressistas rompe
as ilusões do quietismo e interrompe a trajetória do fascismo, com o laço que
liga a ética à política no combate às fake news da mídia corporativa. O
companheirismo confronta o ódio, ao abrir as janelas da esperança. Ao
promoverem mudanças no mundo, os Brics sinalizam a “vontade de potência” ao
século XXI. Sobrevivemos ao canibalismo que nos reduzia aos contentamentos
particulares. A felicidade é uma prática social, um modo de agir que suscita
disposições para compartilhar, lutar e superar os obstáculos que impedem o
bem-estar do coletivo. Porque alegria do encontro com a humanidade espanta a
prostração, a solidão, o medo.
Se o prazer é a sensação passageira que até
os fascistas podem usufruir, a felicidade é duradoura na perspectiva baseada na
concepção do homem como “zoon politikon” (animal social). O desafio é nos
tornarmos bons em ser humanos, na técnica virtuosa de viver. A felicidade não é
um predicado pessoal e não depende de bens materiais de luxo. A psicanálise
popular na Casa da Árvore (Rio de Janeiro), Casa dos Cata-Ventos (Porto Alegre)
e praças públicas do país auxilia os marginalizados a reaver sua subjetividade
para ir além do caos psíquico & sistêmico. Nesse “mundão”, muitas veredas
levam à solidariedade pois “o mestre não é quem sempre ensina, mas quem de
repente aprende”.
Pesquisas sobre a geração Z, nascida entre
1995 e 2010, mostram níveis elevados de infelicidade: (i) pelo uso excessivo da
tecnologia, jogos eletrônicos, redes digitais; (ii) pela pressão de se ajustar
aos padrões de beleza e sucesso dos influencers na internet e; (iii) pela
incerteza econômica e a falta de horizonte profissional. A hecatombe climática
e as desigualdades sociais aguçam um isolamento nos jovens. Mas a chama de sua
rebeldia indômita permanece acesa, atenta aos acontecimentos. A heteronomia na
definição de fora para dentro dos rumos da existência adoece as almas, não as
cala. Parafraseando o filme do diretor Walter Salles, premiado no Oscar – “a
juventude ainda está aqui”.
Desta, um dia se ouvirá sobre as aventuras do
capital contadas, assim. Era uma vez no Ocidente.
Fonte: A Terra é Redonda

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