sábado, 10 de maio de 2025

Brasil: Um país em busca de sua identidade

Durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, o governo se empenhou em garantir que as “terras devolutas”, habitadas por indígenas e sertanejos sem títulos de propriedade, fossem distribuídas para as grandes empresas, que alavancariam o progresso e o desenvolvimento do país.

•        O “descobrimento”

No século XVI, depois de invadir terras do além mar, a coroa portuguesa, por direito de conquista, decidiu declarar virgens todas as terras “descobertas”. Para ocupar e fidalgos donatários, que ficaram encarregados de doar as terras da coroa, na forma de sesmarias, a nobres, militares e funcionários públicos portugueses. Dominadas, escravizadas, desterradas e, em grande parte, exterminadas, as populações nativas recolheram-se continente adentro.

Durante os séculos seguintes, a colonização e o povoamento do Brasil com mão de obra escrava africana ficaram restritos à sua faixa litorânea, com exceção da marcha capitaneada pelos bandeirantes na primeira metade do século XVIII, durante o ciclo do ouro em Minas Gerais; e do ciclo da borracha na Amazônia no fim do século XIX.

Na segunda metade do século XIX, quando foi interrompido o tráfico negreiro e a imigração compulsória de africanos, o Brasil incentivou a imigração de europeus para a produção cafeeira, aproveitando a oportunidade para “melhorar a raça”. Em 1888, ninguém sequer pensou em indenizar a população de origem africana pelo trabalho escravo por gerações e pelo desamparo a que ficaram reduzidos os sobreviventes e seus descendentes. Muito menos em distribuir terras para os libertos. Doar terras para os pobres que precisam dela como meio de vida?!

•        A marcha para o oeste

Após a Segunda Guerra Mundial, alimentado pelo capital internacional, o progresso tomou conta do imaginário e da política do Brasil. Nos anos 1950, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek prometia 50 anos em 5, e o lema de seu polo industrial era “São Paulo não pode parar”. Neste compasso, o projeto de ocupação das terras do Centro-Oeste foi inaugurado com a mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central. As populações indígenas que habitavam a região, consideradas primitivas e retrógradas, foram, mais uma vez, expulsas de suas terras para dar lugar ao almejado desenvolvimento.

Até então, as terras do sertão da Bahia, Goiás e Mato Grosso não habitadas por indígenas estavam parcamente habitadas por quilombolas e caboclos que cultivavam terras devolutas. Os trabalhadores detinham a posse, mas não tinham títulos de propriedade. O termo posseiro, a princípio, não tem nada de pejorativo. A densidade populacional da região era tão baixa que a posse da terra era mensurada por sua extensão ao longo dos rios, e não por hectare ou alqueire. Um posseiro dispunha de uma determinada largura ao longo de uma das margens do rio e, em relação ao comprimento, poderia cultivar a terra até onde tivesse disposição para trabalhar.

A ocupação do Centro-Oeste incentivou a formalização de títulos de propriedade, o processo de fechamento da fronteira agrícola do país e a ocupação de todas as suas terras cultiváveis. Os posseiros que trabalhavam as suas modestas terras, em geral, não sabiam escrever, nem ler. E como entre nós quem fala é o papel, os donos do poder – coronéis, prefeitos e titulares dos cartórios encarregados de registrar os imóveis – forçaram os agricultores a vender a posse da terra por valores irrisórios ou simplesmente providenciaram escrituras baseadas em falsificados documentos “antigos” (grilagem). Por fim, os novos “proprietários”, auxiliados por seus capangas e policiais, expulsaram os autênticos posseiros e se apossaram “legalmente” de suas terras.

Os movimentos populares pela posse da terra sempre foram duramente reprimidos, tanto pelo governo como, diretamente, pelos “proprietários” das terras. Um dos programas que desencadeou o golpe em 1964 foi o da reforma agrária – e a ditadura militar perseguiu as Ligas Camponesas, prendeu e exterminou suas lideranças. Francisco Julião, deputado estadual, cassado e preso, exilou-se no México.

Além do Planalto Central, buscou-se ainda abrir caminho para a ocupação da Bacia Amazônica, com a construção das rodovias Belém-Brasília e Transamazônica. Durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, o governo se empenhou em garantir que as “terras devolutas”, habitadas por indígenas e sertanejos sem títulos de propriedade, fossem distribuídas para as grandes empresas, que alavancariam o progresso e o desenvolvimento do país. Como estudos de casos, vamos nos ater a duas instituições que abriram frentes de trabalho na Amazônia, o Banco de Crédito Nacional (BCN) e a Volkswagen (VW).

Em 1966, em Santa Terezinha do Araguaia, o BCN criou a Companhia do Desenvolvimento do Araguaia – Codeara. A empresa, que se transformou no maior criador de gado do Mato Grosso, era acusada de escravizar e assassinar os seus peões e instigar conflitos armados. Os agentes da Pastoral de São Félix do Araguaia defendiam os indígenas, os posseiros e os peões das fazendas. O conflito com os moradores do povoado de Santa Terezinha motivou a prisão do Padre François Jacques (Francisco) Jentel, que foi condenado a 10 anos. Padre Jentel foi mais tarde posto em liberdade e expulso do país.

A VW, em 1973, criou a Fazenda do Vale Cristalino em Santana do Araguaia, Pará. A indústria automobilística havia decidido criar gado no meio da selva, numa área de 140 mil hectares (o município de São Paulo tem 152 mil hectares). Para o desmatamento da fazenda, foram contratados trabalhadores temporários, transformados em escravos, vítimas de ameaças e violência, impedidos de deixar a fazenda por supostas dívidas. Os que tentavam fugir eram espancados, amarrados, passavam a trabalhar sob a mira de armas ou eram assassinados. Os padres da Comissão Pastoral da Terra, que defendiam os trabalhadores, eram ameaçados de morte. A VW vendeu a fazenda em 1986, um ano após o fim da ditadura militar no Brasil. O administrador da fazenda à época, procurado em 2022, contrariado, declarou, “Isso é um absurdo. Como se não houvesse nada mais importante hoje do que melhorar o passado.” Não vamos conseguir mitigar as feridas nem ressuscitar os mortos. Mas a questão não é melhorar o passado, mas passar o passado a limpo para melhorar o presente e o futuro.

O país, nos anos 1980, finalmente fechou a sua fronteira agrícola, só restando aberta a Bacia Amazônica em processo de desmatamento (facilitado com a transformação de todos os territórios da Amazônia Legal em estados, o Acre em 1962, Rondônia em 1982 e Roraima e Amapá em 1988).

Ailton Krenak, em 1987, de terno branco, num gesto heroico, pintou seu rosto de preto enquanto proferia o histórico discurso na Assembleia Constituinte em defesa do direito dos indígenas às suas terras.

Dois meses após a promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu a Reforma Agrária no país, membros da União Democrática Ruralista (UDR) mataram Chico Mendes, eterno defensor da Amazônia e dos povos da floresta, da reforma agrária, das reservas florestais, das populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, seringalistas e demais extrativistas dedicados à coleta não predatória. Os assassinos de Chico Mendes só foram penalizados em decorrência do testemunho de um “afilhado” de 13 anos de idade do mandante do crime.

•        Ordem e progresso

A partir da segunda metade do século XX, as elites do país, tal qual os donatários das sesmarias, se encarregaram de ocupar o Centro-Oeste e a Amazônia, expulsando as populações que obstaculizam o desenvolvimento econômico do país.

Entre todos os crimes contra os povos da floresta, desequilíbrios ecológicos e desastres ambientais em curso – invasão de reservas indígenas e extrativistas, desmatamento, garimpo, mineração, poluição do solo e das águas –, a recuperação e pavimentação da Rodovia BR-319 da ditadura militar, entre Manaus e Porto Velho, só não foi ainda implementada por falta de recursos. Durante a pandemia do coronavírus, o governador do Estado do Amazonas se lamentou pela impossibilidade de vacinar os moradores da região da BR-319, como se a rodovia, caso recuperada, não fosse, por excelência, a porta principal de entrada do vírus e como se a exposição de seus habitantes aos ávidos forasteiros não fosse mais danosa do que o próprio vírus.

Embora a Reforma Agrária tenha sido estabelecida pela constituição de 1988, regulamentada em 1993, e apesar dos assentamentos promovidos pelo INCRA, grande parte da população rural segue sem acesso às extensas terras do Brasil. Sem chão e sem meios de vida, os trabalhadores rurais compõem uma reserva populacional (superpopulação relativa) que garante mão de obra barata no campo e o funcional êxodo rural que alimenta as cidades, pressiona os salários urbanos e perpetua a concentração da renda, a desigualdade social e a cultura do privilégio.

Sem constituir, concretamente, uma ameaça aos grandes agricultores, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra já assentou 450 mil famílias e agrega hoje 90 mil famílias acampadas. O assentamento tem garantido emprego aos trabalhadores dedicados a uma agricultura responsável, ecológica e orgânica. Contribuindo para erradicar a pobreza e a desigualdade social, o movimento também desenvolve um projeto de educação do campo, com mais de 2000 escolas e 200 mil alunos, além da Escola Nacional Florestan Fernandes.

Ao propiciar terras para aqueles que precisam dela como meio de vida, a redistribuição e democratização do acesso à terra representa um contraponto ao grande capital empenhado no agronegócio, na medida em que, sem concentração, produz riqueza e não promove desmatamentos e poluição do meio ambiente, nem põe em risco o ecossistema e as populações indígenas.

•        Se todo poder emana do povo, o Estado precisa falar sua língua. Por Luana Sampaio

No último mês, o Senado Federal aprovou um projeto de lei que pode transformar profundamente a relação entre as instituições públicas e a sociedade. O PL 6.256/2019, de autoria da deputada Erika Kokay (PT-DF), determina que os órgãos públicos adotem linguagem simples em sua comunicação com a população.

Embora pareça uma mudança meramente linguística, trata-se, na verdade, de um avanço substancial para a democracia brasileira.

A chamada “linguagem cidadã” representa uma mudança de paradigma institucional. Ao se comprometerem com uma comunicação clara e acessível, os órgãos públicos reconhecem, na prática, que sua função primordial é servir ao povo — o verdadeiro detentor do poder em uma democracia.

Essa mudança dialoga com a teoria dos economistas Daron Acemoglu (MIT) e James A. Robinson (Harvard), vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2024, ao lado de Simon Johnson. Na obra Por que as nações fracassam, eles mostram que países prósperos contam com instituições inclusivas, voltadas ao bem coletivo. Em contraste, nações em declínio mantêm instituições extrativistas, distantes da população e concentradoras de poder, de informação e de recursos públicos.

Conhecimento e informação são formas de poder. Por isso, adotar uma linguagem acessível vai muito além de uma alteração técnica de redação: é uma escolha política em favor da inclusão, da transparência e da cidadania.

A linguagem simples rompe com o juridiquês e a burocracia que afastam o cidadão do pleno exercício de seus direitos. Ao facilitar o entendimento, a linguagem simples aproxima as pessoas das decisões que impactam suas vidas e suas comunidades.

Em tempos de desinformação, assumir uma comunicação acessível é também tomar para si o papel de fonte confiável, que é essencial para reconstruir a confiança popular nas instituições brasileiras.

O movimento brasileiro pela linguagem cidadã já ganha força no Judiciário. Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples e concedeu, pela primeira vez, um selo de reconhecimento aos tribunais que mais se destacaram nessa prática. É uma vitória concreta para o acesso à Justiça do cidadão comum, que tantas vezes não compreende sequer o que foi decidido em sua própria causa.

Agora, cabe à Câmara dos Deputados dar continuidade à aprovação do projeto. Se isso acontecer, o Brasil não apenas avançará em termos de política pública, mas também na construção de um Estado mais democrático, transparente e respeitoso com sua população.

Afinal, se todo poder emana do povo, é preciso que as instituições públicas falem com ele — e que as pessoas entendam o que está sendo dito.

Linguagem simples é cidadania, é inclusão, é um caminho para a prosperidade.

 

Fonte: Por Samuel Kilsztajn, no Le Monde

 

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