Leda Tenório da Motta: O Brasil brasileiro
Fala-se cada vez mais em descolonização,
desde que as assim chamadas antifilosofias ou pós-filosofias passaram a
desconstruir a sutura do dizer, do pensar e do ser própria das assim chamadas
metafísicas da presença, dando por insolvente toda organização transcendental
do mundo conduzida pela linguagem arbitrária.
Dentro da mesma linha de argumentação,
introduz-se nos estudos culturais uma nomenclatura do “descolonial” ou
“decolonial”, alusiva aos poderes epistêmicos dos colonizadores, antes que aos
políticos.
Dá-se assim nova dimensão às opressões
culturais, já desde sempre entendidas como presas ao sentido figurativo de
“cultura” – do latim “colere”, que é “cultivar o solo”, o que leva à ideia de
conquista territorial e coloca a questão da imposição dos usos e costumes ou
práticas sociais do outro –, e se começa a discernir na implantação da
colonização o transplante simbólico dos regimes de sentido do outro.
Desta outra perspectiva, a linguagem está no
cerne da colonialidade. Colonizar é submeter alguém aos universais de alguém,
por meio de uma língua. Cair sob o poder de outra cultura é ser desabrigado de
si mesmo, no mais íntimo, pela força da expressão do outro. “Palavras são a
terra natal”, escrevia o poeta palestino Mahmud Darwish, quando no exílio
libanês, dando conta da dimensão desse desabrigo.
O que
se entende. Pois se é certo que a linguagem não é um lugar neutro a partir do
qual expressar a realidade que escapa ao signo, mas o mediador ou atravessador
fatal de nossa experiência do mundo, como vêm formular todas essas correntes de
pensamento que passam agora a remeter os aparelhos filosóficos aos próprios
discursos que os fazem reinar, que de mais violento poderia haver na
colonização que a transmissão da razão verbal do outro? A imposição de sua fala
factícia?
ão
obstante, são esses mesmos desconstrucionismos, em ação no campo das ciências
humanas, notadamente francesas, desde meados do século passado, que vêm a campo
reconhecer a importância da palavra do outro, o particular interesse de sua
construção da realidade, porque esse desacordo faz vacilar as certezas das
línguas próprias, complicando o universal.
Veja-se O império dos sentidos, de Roland
Barthes (1970), com seu manejo amoroso dos signos do Japão, para um
estranhamento do que o autor chama aí, de saída, “os gestos maiores do discurso
ocidental”. Admire-se a maneira como o semiólogo visa na consideração do
grafismo inaudito do modo de ser japonês a chance de surpreende um sistema
simbólico “inteiramente alheio ao nosso”.
Veja-se também essa cultora da escola Barthes
que é Barbara Cassin introduzindo em obras como O elogio da tradução (2022) a
possibilidade de o estrangeiro e ademais sofista Gorgias ser o verdadeiro
filósofo, na grande cena intelectual ateniense, por afastar a pretensão do
logos à naturalidade. Por revelar com seus jogos equívocos de palavras, tão
detestáveis aos olhos de Sócrates, como os mundos ideais tais que o
socrático-platônico saem de sintaxes predicativas que não se sabem retóricas.
Isso explica que, junto com serem
semioclastias ou antilogocêntrismos ou antilogofalocêntrismos, as assim
chamadas teorias pós-coloniais são filosofias da tradução. Esta redefinida como
lugar de diferendos linguísticos suscetíveis de fazer aparecer o intraduzível,
a irredutibilidade dos dizeres, o caráter construído das coerências
linguísticas e assim, exibindo decupagens, de desnaturalizar as verdades que os
idiomas discursam.
De fato, as leituras estruturais da cultura
inclinam-se à admissão da tese de que cada língua é uma cartografia diferente
do real e que, portanto, verter uma língua na outra é relevar esses relevos,
entrelaçar mundos, hospitaleiramente. De tal sorte que, nessas novas
abordagens, a tradução será não apenas um operador da desconstrução, nesse
sentido um dos conceitos sui generis do dispositivo Derrida, que está por trás
de muitas das pós-filosofias, mas um agenciador do que Roland Barthes chamou o
“viver junto” e Barbara Cassin renomeará “fazer humanidade junto”.
É assim que, novo filósofo ou pós-filósofo
dentre os muitos hoje voltados à questão da diversidade, este outroderridiano
que é o senegalês Souleymane Bachir Diagne está pondo a crítica desconstrutiva
a serviço do que ele não reluta em chamar uma reinvenção possível do Ocidente
pelo Oriente, destacadamente na base das trocas tradutórias. Isso está no duplo
enunciado de um dos títulos mais recepcionados deste intelectual negro
islamizado formado lógico matemático na Sorbonne e pós-graduado na École Normale
Supérieure: De língua a língua. A hospitalidade da tradução (2022).
Escansão não apenas do elogio de Babel por
Jacques Derrida, mas das muitas notas deste último sobre seu exilio de
judeu-francês-argelino no monolinguismo do outro, a tradutologia de Bachir tem
o especial interesse de nos levar até idiomas menores entre menores – por
exemplo, o dialeto do senegalês africano islamizado que não fala nem o francês
nem o árabe –, para dotar seus valores de assimetria da faculdade de interrogar
os valores das línguas centrais. Assim também com dialetos afros que não
trabalham com o princípio aristotélico da não-contradição, com tudo que isso
comporta de possibilidade de uma outra ontologia.
Em De língua a língua, essa visão do encontro
das culturas como chance de uma “fertilização cruzada” tem também a utilidade
de recolocar em campo a primeira tradução em latim do Corão,feita no século
XII, por um superior da Igreja então ligado a seus esforços reformistas de
transmissão do catolicismo, certo Abbé de Cluny, para uma apreciação de quanto,
nesta translação, a língua do império romano cristianizado foi capaz de
reverter o islamismo em heresia e infâmia.
Tantas e tais perspectivas tampouco são
estranhas às novas concepções da interpretação do texto literário que, desde os
anos 1960, vêm na esteira do mesmo giro linguístico, desafiando a ideia de
significados estáveis e enfatizando a função discricionária dos signos na
formação dos juízos, inclusive literários. Daí Jacques Derrida ser um crítico
literário, como mostram suas incursões a Antonin Artaud, surrealista da
diáspora ao qual aliás dedica inteiramente sua obra inaugural, A Escritura e a
diferença (1967), e subsequentemente a Joyce, Francis Ponge, Jean Genet… Para
não se falar da influência do filósofo sobre os críticos desconstrucionistas
americanos de Yale.
De fato, também para as a poéticas pós, são
os signos, com sua estereotipia estrutural, que interpretam as literaturas. E é
isso que vai subverter a autarquia dos autores, sua originalidade divina,
dando-se a obra de criação por eterna retradução. É do que fala o conceito de
intertextualidade, através do qual toda a nouvelle critique se põe à distância
da superstição do gênio original da língua, passando a trabalhar com a ideia de
que os textos, como as línguas, se informam mutuamente, fazendo palimpsesto ou,
na expressão desabusada de Barbara Cassin “massa folhada”.
Isto é, manejando uma visão da espessura
textual das literaturas que não apenas compromete qualquer noção de linguagem
essencial mas remete ao sentimento do escritor, principalmente moderno, de não
ser dono de sua própria voz.
Daí também a redefinição à la Barthes da
escritura dos modernos e muito modernos como consignação paradoxal de sua
impossibilidade de prosseguir, depois que tudo foi escrito. Nada que já não
estivesse, de algum modo, na consciência infeliz do escritor segundo o
Jean-Paul Sartre de O que é a literatura? (1948), a que O grau zero da
escritura de Roland Barthes (1953) replica.
Mas a literatura não está sozinha nesse
impasse irônico. Até porque, desde o final do século XIX, é à música que ela se
reporta, quando se retira do circuito da comunicação ordinária e se dá por
reduto ou enclave de ordem própria, longe da voz geral. Já que essa batida em
retirada é igualmente o gesto diferencial da música moderna, ela também
desassociada da palavra, mais ou menos no mesmo momento, para ser puramente
instrumental.
Num quadro de acontecimentos de intensa
formalização – como nota, por exemplo, Arthur Nestrovski, em Ironias da
modernidade (1996) –, em que uma composição de Beethoven também pode ser sobre
a própria composição, e um acorde pode ser o tema, ou menos que o tema, a
“célula básica” de uma composição do mestre, tematicamente voltada sobre seu
próprio material.
• O
gênio da língua
Depois de tudo, como continuar supondo
desassombradamente um Brasil brasileiro, legítimo dono de sua própria cultura e
de sua própria literatura? Existiria um gênio da língua pátria, em perfeita
concordância consigo mesmo, livre de influências e – já que a literatura
portuguesa é arbusto de segunda ordem no jardim das musas –, da dicção francesa
que parasita a pureza da dicção lusa que parasita nossa pureza…?
Para dizê-lo de outro modo, e já
reintroduzindo o referente externo que, na concepção do signo arbitrário, não
entrava na equação do significante disjunto do significado: concordaríamos com
os que entendem que, num país colonizado e pós-colonizado como o nosso, há que
se sacudir a marca do outro? Tudo se passando como se as culturas, a exemplo
das línguas na visão religiosa de Babel, fossem inconciliáveis, e as dívidas
culturais, liquidáveis, para um recomeço cultural absoluto?
A título de subsídio à reflexão, e já que
aprendemos na escola que os românticos são nossos primeiros artistas da palavra
verdadeiramente nacionais, por privilegiarem o motivo da natureza local,
arrematando o gesto arcadista do enraizamento identitário, note-se, para
terminar, que os grandes romantismos justamente fogem de qualquer pintura
sentimental da natureza.
De fato, nossa vista das musas no trópico não
bate com a ironia romântica. Já que, igual ao avassalamento musical
beethoveniano, o arrebatamento poético romântico cava um abismo entre a
natureza e a linguagem, a primeira sendo sempre sentida como maior que a
segunda. Aqui, nenhuma palavra é capaz de anular a distância entre a
interioridade e a exterioridade, nenhum escritor máximo tem relações claras com
seu mundo. Daí a ambição goetheana de uma Weltliteratur , proposta quepresume a
concorrência dos mundos.
Seria por isso que, metendo a colher torta na
avaliação do movimento pelo qual ingressamos em literatura, escreve Oswald de
Andrade, o primeiro dos decoloniais, no explosivo ensaio “A Arcádia e a
Inconfidência”, inserido no sexto tomo de suas obras completas (1972), que o
despertar romântico mineiro, tão no plano de Ouro Preto, é “sem magia verbal” e
“sensaborão”? Que ele vale mais pela insurreição dos poetas envolvidos, pelo
aporte de seu pleito emancipatório ao progresso da humanidade, do que propriamente
pelo engenho?
Juntando tudo, suspeite- se que a afirmação
da cultura própria é monolíngue e de que monolinguismo rima com colonialidade.
E comemorem-se acintes linguísticos como o de Charles Baudelaire quando, na
contramão da valorização da bela língua francesa pelos clássicos que o
antecedem, simplesmente vem a campo dizer diz sua melancolia em inglês,
cravando a palavra inglesa para melancolia no título de O spleen de Paris. Ou
como o do Mallarmé professor de inglês e tradutor de Edgar Poe, referência
estrangeira de Charles Baudelaire, que, num pequeno ensaio filológico de
repercussão sobre as novas críticas, intitulado As palavras inglesas (1877),
simplesmente vem a camposustentaramaior justeza da língua de Shakespeare,
vendo-a muito mais perto da poesia que a francesa.
Tudo isso depois que Stendhal e Victor Hugo
passaram Shakespeare na cara dos defensores de Racine, para relançar o
romantismo na França. E antes que Roland Barthes viesse a sustentar, em Crítica
e verdade (1966), que os franceses se orgulham de ter Racine… mas não se sentem
ofuscados por não ter Shakespeare.
Fonte: A Terra é Redonda

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