Pessoa em situação de privilégio
Quando se zomba de um termo como "pessoa
em situação de rua", não se está apenas rindo de uma escolha vocabular –
está se negando uma luta simbólica e política
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No sábado, 03 de maio, Antonio Prata publicou
na Folha de S.Paulo uma crônica intitulada “Pessoa em situação de mendigo”. Com
um humor que se pretende sagaz e contundente, ele acusa a expressão “pessoa em
situação de rua” de ser um exagero do politicamente correto. Para Prata, esse
termo não passa de um verniz sobre a miséria crua das ruas. Sua crônica se
apresenta como uma crítica à assepsia da linguagem, mas o que começa como
provocação contra a hipocrisia social termina por zombar de quem tenta nomear
com mais precisão e dignidade uma das faces mais brutais da desigualdade
urbana.
Prata não escreve como um conservador típico.
Ele é o cronista ilustrado da classe média progressista, bem aceito nos
círculos culturais. Seu texto não destila ódio nem desprezo. Pelo contrário,
nesse caso disfarça-se de ferina crítica sofisticada à indiferença moral do
país. E é aí que mora o perigo. Ao ridicularizar a expressão que movimentos
sociais adotaram para nomear-se com mais respeito, sua crônica acaba replicando
o mesmo desprezo simbólico que diz criticar. Beira ao escárnio. O alvo aparente
é o eufemismo; o efeito real é enfraquecer a luta coletiva por reconhecimento.
Há dois anos, realizo uma pesquisa sobre a
presença cotidiana de pessoas em situação de rua em uma instituição cultural
pública. A observação diária dos modos de uso, conflito e convivência desse
espaço tem transformado meu entendimento sobre o que a expressão “situação de
rua” carrega. Aquilo que à distância parece só formalismo técnico, revela-se,
na prática, como resultado de disputas reais por visibilidade, dignidade e
existência. São palavras oriundas de uma luta por reconhecimento, calcada em
reivindicações justas.
A presença da realidade das ruas dentro de
uma instituição embaralha certezas. Exige escuta. Não se trata de adoçar a
realidade da exclusão, mas de compreendê-la em sua complexidade, nos silêncios,
nas tensões, nas formas de vida que escapam aos enquadramentos prontos. Dizer
“pessoa em situação de rua” não é fingir que a miséria não existe. É tentar
nomear sem capturar, reconhecer sem reduzir. A piada escarnecente que compara
isso a “pessoa em situação de gripe” ou “situação de sono” não é só boba. É ofensiva.
É uma recusa de escuta. Uma equiparação que apaga a gravidade do que tenta
nomear. Verdadeiro desprezo ao poder da linguagem.
Reitero, essa expressão – pessoa em situação
de rua –, é conquista de luta. Não foi imposta por burocratas ou modismos, foi
uma reivindicação do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua formado
por gente que viveu (e vive) a exclusão e buscou romper com a imagem penal do
“mendigo”, termo impregnado por leis de vadiagem e criminalização da pobreza,
rescaldo do escravagismo. Não se trata de negar a miséria, mas de romper com o
estigma que a nomeia como delito. Desqualificar essa conquista como eufemismo é
reforçar o próprio estigma.
Com estilo e aparente irreverência, a crônica
de Prata reproduz uma hierarquia silenciosa. A pessoa em situação de rua é
figurada como tipo incômodo, não como sujeito. Não há escuta. Não há
interpelação. A diferença de classe não é discutida, é naturalizada. Do alto de
um ponto de observação seguro, transforma-se o outro em caricatura linguística.
A linguagem cuidadosa vira uma peça de ataque. E o que parece senso crítico é
apenas reafirmação de privilégio: quem escreve pode estatuir; quem é nomeado,
permanece fora da palavra.
A irritação de Prata não é com a miséria em
si. É com a tentativa de nomeá-la com algum cuidado. Sua crítica só é possível
porque parte de um lugar social que nunca precisou da linguagem para existir.
Nasceu pronto e bem acomodado. O incômodo é com o deslocamento simbólico: a
expressão “pessoa em situação de rua” incomoda porque embaralha a fronteira
entre quem pertence à cidade e quem atrapalha sua paisagem.
Não é novo esse tipo de narrativa disfarçada
de crítica. É antigo. E persistente. O Brasil segue sendo o país em que elites
cultas fingem engajamento para manter distância, disfarçam desprezo com ironia
e posam de rebeldes enquanto reproduzem desigualdades. Fingem que escutam para
não se implicar. Fingem humor para manter o riso do alto. Fingem entender para
neutralizar a luta de classes. Quando a linguagem passa a incomodar mais do que
a exclusão que tenta nomear, o nome disso não é lucidez. É cinismo. Dos finos,
mas cinismo.
Linguagem não é adorno. É campo de disputa.
Prata sabe bem disso. Quando se zomba de um termo como “pessoa em situação de
rua”, não se está apenas rindo de uma escolha vocabular. Está se negando uma
luta simbólica e política. Reduzindo uma conquista a um trocadilho. É
despolitizante. E por mais que venha com bom humor e verniz literário, esse
gesto é, sim, parte do mesmo regime de desumanização contra o qual se finge
escrever.
Fonte: Por Ricardo Queiroz Pinheiro, em Opera
Mundi

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