Nilo Meza: Peru - a Igreja e a esquerda
Enquanto ainda se chora a partida do papa
Francisco, líder da cristandade mundial, no Peru, o cardeal Carlos Castillo,
arcebispo de Lima, diz a verdade aos congressistas que optaram por servir aos
poderosos que operam impunemente “dentro da lei” e àqueles que operam fora da
lei, mas protegidos pelos primeiros.
No Congresso, disse Carlos Castillo, temos
uns “sem-vergonhas que irritam a paciência” do nosso povo, que, em vez
de serem servidores daqueles que os elegeram, preferem ser “devotos da
virgem do punho” (alusão à condição mesquinha e gananciosa de uma pessoa)
em vez de serem “devotos da Virgem Maria” (alusão ao amor e ao serviço
ao próximo). Os políticos deixaram de ser servidores do povo para servirem a si
mesmos a qualquer preço, recorrendo até mesmo à barbárie e ao assassinato, como
aconteceu nos protestos contra Dina Boluarte em dezembro de 2022 e janeiro de
2023.
Nunca como agora, a presença marcante dos
povos oprimidos, dos pobres, dos humildes, esteve tão presente no discurso e
nas ações do apostolado cristão. A simplicidade do papa, sua humildade à prova
da tentação arrogante de seu entorno, tocou muitos representantes da Igreja
Católica, entre eles o cardeal Castillo, do Peru, que não teve receio de
denunciar a perversão daqueles que, em “nome da lei” e da fé católica,
delinquem e fazem leis em favor da delinquência. Ele também reafirmou que a
Igreja Católica, seguindo o exemplo de Cristo, estava a serviço dos pobres e
dos despossuídos.
Isso remete à “opção preferencial pelos
pobres” que o papa Francisco concretizou na ação eclesial. Ele destacou o
compromisso e a correspondência da “palavra de Deus” com a justiça
social e o bem-estar dos mais vulneráveis, “buscando transformar as
estruturas que geram pobreza e desigualdade”, longe de atos de caridade e
claramente orientados a gerar consciência da realidade e da necessidade de
mudá-la. Foi um claro chamado à ação concreta contra as estruturas políticas,
sociais e econômicas que mantêm milhões de pessoas em situação de pobreza e
opressão.
“É hora de frear os abusos”, disse o papa
Francisco dirigindo-se ao mundo inteiro. E, no Peru, o cardeal Castillo disse o
mesmo, dirigindo-se ao povo. O poder político deve sentir o poder do povo que,
após a barbárie, está perdendo o medo e sente que se aproxima o momento de
retomar as bandeiras que lhe foram arrebatadas pela repressão criminosa. É hora
de acabar com o cinismo daqueles que se dizem “cristãos” quando sua atividade
cotidiana é dedicada a servir ao crime com leis a seu favor e a fazer parte daqueles
que transformaram o Estado em um espólio.
<><> A mensagem da esquerda
Não é esse o discurso da esquerda socialista
e daqueles que proclamam a mudança? Será que não se compreende o alcance
conceitual e político da “opção preferencial pelos pobres”? Será que se
está esquecendo o genial jesuíta Gustavo Gutiérrez, que sacudiu consciências
próprias e alheias com a “Teologia da Libertação”? Não se tem mais
lembrança de Frei Betto dizendo à polícia que “os homens não se dividem
entre crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos, entre aqueles que
querem manter esta sociedade injusta e aqueles que querem lutar pela justiça”?
O que aconteceu com a esquerda em 30 anos de
liberalismo? Será que ela foi despojada de sua capacidade de reação no terreno
orgânico e político? Será que o atordoamento sofrido a mantém fora do cenário
político? A paixão pela divisão e pela capela própria são sintomas de um mal
incurável? Enquanto moldam discursos e atitudes aos “bons modos” que
aplaude a “democracia” da extrema direita. Não é suficientemente indicativo o
que o “Congresso de delinquentes” vem fazendo em nome dessa
“democracia”? Como é que 45 organizações, dificilmente chamadas de partidos,
não são catalogadas como a mais clara demonstração do “divide e conquistarás”?
Acaso não vimos no Equador que a extrema direita não tem escrúpulos para
“cozinhar” resultados eleitorais?
Poderia continuar com mais perguntas, algumas
mais urgentes do que outras, que a esquerda peruana deve responder com
honestidade e sinceridade. Nessa tentativa, o maior esforço deveria ser
dedicado a recuperar a retórica esquerdista, simples e direta, que os conecta
com o povo, e deixar de construir discursos com frases rebuscadas, como quer a
extrema direita. Lembremos com humildade os líderes de esquerda que foram
capazes de “incendiar a pradaria” com discursos carregados de vocabulário
popular, como faziam Javier Diez Canseco, Carlos Malpica, Alfonso Barrantes,
entre outros.
É hora de superar a confusão e a dispersão
que o neoliberalismo provocou na esquerda. A partir dos anos 90, instalou-se na
esquerda uma forma de fazer política que a levaria à situação atual. Com a
eleição de Alberto Fujimori, inaugurou-se, no campo da esquerda, a “opção
preferencial” pelo “mal menor”, com custos que hoje se refletem no
imobilismo e na dispersão de organizações sem identidade. A aposta ingênua de
que o “mal menor” poderia gerar as “condições objetivas e subjetivas”
para mudanças estruturais foi apenas uma ilusão do momento, mas depois se
tornou uma espécie de estratégia de sobrevivência do oportunismo da esquerda.
Desde então, se as coisas não mudarem,
estaremos trilhando um caminho sem volta, continuando a apostar no mal
menor, em nome do qual não importou perder o próprio perfil, afundar no
marasmo político e ideológico, abandonar a formação de quadros e a construção
de partidos com capacidade de ser uma alternativa de poder, entre outros. Assim
foi, geração após geração, até chegarmos ao momento que vivemos.
Como sair desse buraco? Como recuperar a
atenção das maiorias que esperam discursos esperançosos e capazes de oferecer
confiança no futuro? Essa é uma tarefa urgente. Compreender a “opção
preferencial pelos pobres” da Igreja Católica como consubstancial às nossas
posições políticas e ideológicas seria um bom começo, buscando recuperar a
identidade e o perfil que diferenciam a proposta de esquerda das propostas
centristas, ambivalentes e ambíguas que optam pelo “oportunismo”. A
esquerda socialista e os progressistas genuínos deveriam aspirar a ser uma
opção de poder, não uma opção de enchimento.
¨
Francisco e Milei, duas Argentinas. Por Hugo Albuquerque
“Não
ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde
ladrões escavam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem traça
nem ferrugem corroem e onde ladrões não minam nem roubam: Para onde está o teu
tesouro, aí estará o seu coração também. Ninguém pode servir a dois senhores,
porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o
outro. Não podeis servir a Deus e a Mamón” (Mateus 6:19–24)
Há
muito ainda o que se dizer sobre o papado do argentino Jorge Mario Bergoglio, o
papa Francisco. Em um ciclo de doze anos, ele defendeu os pobres e oprimidos,
foi uma voz ativa na defesa dos palestinos, se mostrando também aberto às
demandas da modernidade – na contramão de um mundo que viu a extrema-direita
reaparecer. Mas na Argentina de Francisco, o atual governo, sob Javier Milei,
equivale a um duplo antagônico seu.
O
paradoxo do legado de Francisco na sua terra natal nos leva, obviamente, a
pensar a situação mais geral da América Latina em tempos de desfazimento ou
transmutação do império americano – no qual democratas e
republicanos polarizam sobre nosso destino, com os primeiros dizendo que somos
seu frontyard [o jardim, a entrada] e os últimos bradando que
somos o backyard [o quintal, os fundos] deles.
A
Argentina é um raro caso de país latino-americano que chegou a ser rico, mas
entrou em uma lenta, dolorosa e dramática agonia. Francisco e Milei se tornaram
a expressão extrema dos dois caminhos radicalmente diferentes, em relação aos
quais, talvez em muito pouco tempo, os argentinos terão de se decidir. Mas essa
bifurcação esconde determinados elementos sutis e determinantes.
De um
lado, o que será o próximo Conclave é central. O legado de Francisco será
continuado ou se tornará um ponto fora da curva no
catolicismo? E como isso pode impactar na atual Argentina? Por outro lado, a
terapia de choque de Milei colapsará ou terá o mesmo destino daquelas que
fizeram Margaret Thatcher, no Reino Unido, ou Ronald Reagan, nos Estados
Unidos, que normalizaram a ordem neoliberal?
<><>
A crise da burguesia nacional argentina
Como um
PIB per capita na casa de 60% do americano antes da Primeira Guerra, a Argentina viu seu
esgotamento econômico vir não só na forma da crise de seu modelo, mas também
pelo bloqueio geopolítico do eixo anglo-americano, que interveio generosamente
no país, apoiando e sendo apoiado pela fração entreguista da burguesia – não
sem um levante da burguesia nacional em um complexo arranjo de classe que
arrebentou no peronismo.
O racha
da burguesia argentina contribuiu para a crise dos anos 1930, mas o surgimento
de um bloco nacionalista heterogêneo pôde tomar forma efetiva, nos anos 1940,
com a liderança do general Juan Domingo Perón, ainda que sob cerrada oposição
que o derrubou e exilou nos anos 1950. Mas a história argentina a partir dali
será uma sucessão de golpes militares e ingovernabilidade crônica.
Nos
anos 1970, a solução encontrada é o retorno do próprio Perón, que ressurge como
uma panaceia para a Argentina. O velho general, depois de um longo exílio na
Espanha franquista, tricotava com as duas mãos, mas agora tinha de unir duas
alas radicalmente opostas de seu próprio movimento – que ia da extrema direita
à esquerda revolucionária, cujos militantes, literalmente, se matavam nas ruas
enquanto reivindicavam a liderança de Perón.
É a ala
direita do peronismo que orquestrará a última, e brutal, ditadura militar do
país e sofrerá a vergonhosa derrota militar nas Malvinas, levando o país ao
caos. Assim como será o peronismo a introduzir o neoliberalismo no país nos
anos 1990 com Raul Menem – mas é, ironicamente, o mesmo peronismo que assume o
país depois da crise de 2001 e empreende reformas sociais antineoliberais sob a
forma do kirchnerismo.
Sob a
liderança de Nestor Kirchner, a Argentina sai do buraco e se alinha às
iniciativas progressistas do continente, com destaque para Hugo Chávez na
Venezuela e Lula no Brasil. Nestor é sucedido pela esposa, Cristina; depois ele
falece ainda muito jovem, quando ela se reelege. Mas quem se elege papa em 2013
foi o então cardeal Bergoglio, opositor do kirchnerismo, principalmente pela
agenda de costumes avançada da então presidenta.
A
transformação do cardeal Bergoglio no papa Francisco em 2013 produziu,
ironicamente, um giro progressista nele próprio, o que poderia favorecer o
kirchnerismo que, no entanto, é atropelado pelas circunstâncias: em 2015,
Cristina não consegue sequer pautar exatamente um candidato orgânico seu,
enquanto a direita propriamente dita, o bloco burguês entreguista, vence no
voto com Macri em um prenúncio dos anos posteriores.
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Um adeus aos anos dourados do século XXI
A
agenda reformadora do papa Francisco foi surpreendente e positiva. Ela mais
parecia uma consequência natural da América Latina do século XXI, como polo da
inovação e progresso social integral, mas sua chegada contrastou com a maré de
reação às reformas sociais de anos antes. A vitória de Maurício Macri em 2015 é
o primeiro grande triunfo eleitoral que atesta esse movimento.
Enquanto
cardeal, Bergoglio tomou uma posição intermediária, de defesa da doutrina
social da Igreja, mas matizada com posturas duras contra a agenda de costumes
generosa do kirchnerismo, o que levou a embates consideráveis com o governo de
Cristina – já enquanto papa, Francisco adotou um discurso tolerante e aberto,
ainda que tenha sentido a dificuldade prática de fazer grandes reformas
estruturais.
A
agenda de Macri no poder retomou políticas semelhantes às ditaduras, ou às
eleições semi-farsescas dos anos 1960 na Argentina, só que ali pelo voto. Havia
um grau de civilidade política nos modos que Macri, um ultraconservador com
maneirismos de aristocrata italiano, tinha de manter no contexto do seu partido
hiperburguês, povoado com sobrenomes das elites argentinas.
Macri
foi, no entanto, derrotado nas urnas em 2019, depois de quatro anos de oposição
cruenta; mas com uma nova recomposição na qual o bloco centrista do peronismo
apresentou o candidato Alberto Fernández, dessa vez com Cristina de vice –
ex-chefe de gabinete de seu marido e um político próximo à centro-direita
neoliberal, Fernández foi reinventado, porém, como um perfeito progressista
latino-americano.
A
pandemia, os erros e bizarrices de Fernández o tornaram um melancólico
presidente de um mandato só, mas num cenário em que o macrismo não se
reapresentou na alternância de poder. Ali, a figura neurótica, descontrolada e
mal-educada de Javier Milei aparece, com seu peculiar anarcocapitalismo, a
antipolítica e a defesa radical do privatismo que toma para si a indignação das
massas.
Longe
de simplificações, Milei não é apenas o “Trump argentino”, mas uma dissimulada
mistura de showman com administrador de massa falida, cuja
performance hipnotiza seus compatriotas enquanto lança mão de uma política
radical de defesa dos credores argentinos – tudo enquanto mantém a máquina
viva, costurando com democratas e republicanos americanos, que intermediam
empréstimos incalculáveis do Fundo Monetário Internacional (FMI).
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Milei e o feitiço de Mamón
No olho
do furacão do endividamento, a conta da Argentina simplesmente não fecha. O
processo atual de empréstimos do FMI ao país serve para o pagamento de
credores, gerando uma dívida com o órgão internacional, coisa que os argentinos
conhecem bem: condições impossíveis, exigências de cortes na área social e
desinvestimento, o que não tem outro caminho senão o empobrecimento.
Milei,
no entanto, se equilibra sob as promessas de enriquecimento individual, ataques
ao “sistema” e uma fúria iconoclasta voltada aos marcos da civilização. É um
clamor bárbaro, e ao mesmo tempo ocultista, estranho ao iluminismo, mas também
a Francisco – e nada mais estranho e contrastante ao tipo de
cristianismo praticado e professado pelo papa Francisco, principalmente como
pontífice.
Enquanto
isso, o bloco de oposição argentina parece paralisado, exceção feita a Axel
Kicillof, o jovem governador de Buenos Aires, das raras figuras a destoar do
coro de catatônicos – mas um fato é verdadeiro: o antigo arranjo policlassista,
sob a liderança da burguesia nacional, que sustentou o peronismo nos seus giros
está, na melhor das hipóteses, em coma e a explicação para isso é básica; a
fração nacional da burguesia colapsou.
O
próximo Conclave se iniciará em poucos dias para católicos de todo o mundo,
enquanto este ano na Argentina haverá eleições legislativas, nas quais um terço
do Senado e quase metade da Câmara serão renovados. Ambas as disputas serão
duríssimas, mas a universalidade católica terá repercussões no cenário
particular da Argentina, cuja eleição de meio de mandato será um interessante
teste de forças internacional.
Não
foram poucos os crimes cometidos sob o nome de Deus na história, muito embora
seja impossível negar que parte do legado de resistência veio da ala
progressista da Igreja, com sua perspectiva teológica centrada na libertação
dos pobres. Em tempos de adoração internacional a Mamón, um dos Sete Príncipes
do Inferno na tradição, cujo sumo-sacerdote na Argentina é Milei, essas duas
disputas se entrecruzam.
Fonte: Opera Mundi

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