sábado, 10 de maio de 2025

Nilo Meza: Peru - a Igreja e a esquerda

Enquanto ainda se chora a partida do papa Francisco, líder da cristandade mundial, no Peru, o cardeal Carlos Castillo, arcebispo de Lima, diz a verdade aos congressistas que optaram por servir aos poderosos que operam impunemente “dentro da lei” e àqueles que operam fora da lei, mas protegidos pelos primeiros.

No Congresso, disse Carlos Castillo, temos uns “sem-vergonhas que irritam a paciência” do nosso povo, que, em vez de serem servidores daqueles que os elegeram, preferem ser “devotos da virgem do punho” (alusão à condição mesquinha e gananciosa de uma pessoa) em vez de serem “devotos da Virgem Maria” (alusão ao amor e ao serviço ao próximo). Os políticos deixaram de ser servidores do povo para servirem a si mesmos a qualquer preço, recorrendo até mesmo à barbárie e ao assassinato, como aconteceu nos protestos contra Dina Boluarte em dezembro de 2022 e janeiro de 2023.

Nunca como agora, a presença marcante dos povos oprimidos, dos pobres, dos humildes, esteve tão presente no discurso e nas ações do apostolado cristão. A simplicidade do papa, sua humildade à prova da tentação arrogante de seu entorno, tocou muitos representantes da Igreja Católica, entre eles o cardeal Castillo, do Peru, que não teve receio de denunciar a perversão daqueles que, em “nome da lei” e da fé católica, delinquem e fazem leis em favor da delinquência. Ele também reafirmou que a Igreja Católica, seguindo o exemplo de Cristo, estava a serviço dos pobres e dos despossuídos.

Isso remete à “opção preferencial pelos pobres” que o papa Francisco concretizou na ação eclesial. Ele destacou o compromisso e a correspondência da “palavra de Deus” com a justiça social e o bem-estar dos mais vulneráveis, “buscando transformar as estruturas que geram pobreza e desigualdade”, longe de atos de caridade e claramente orientados a gerar consciência da realidade e da necessidade de mudá-la. Foi um claro chamado à ação concreta contra as estruturas políticas, sociais e econômicas que mantêm milhões de pessoas em situação de pobreza e opressão.

“É hora de frear os abusos”, disse o papa Francisco dirigindo-se ao mundo inteiro. E, no Peru, o cardeal Castillo disse o mesmo, dirigindo-se ao povo. O poder político deve sentir o poder do povo que, após a barbárie, está perdendo o medo e sente que se aproxima o momento de retomar as bandeiras que lhe foram arrebatadas pela repressão criminosa. É hora de acabar com o cinismo daqueles que se dizem “cristãos” quando sua atividade cotidiana é dedicada a servir ao crime com leis a seu favor e a fazer parte daqueles que transformaram o Estado em um espólio.

<><> A mensagem da esquerda

Não é esse o discurso da esquerda socialista e daqueles que proclamam a mudança? Será que não se compreende o alcance conceitual e político da “opção preferencial pelos pobres”? Será que se está esquecendo o genial jesuíta Gustavo Gutiérrez, que sacudiu consciências próprias e alheias com a “Teologia da Libertação”? Não se tem mais lembrança de Frei Betto dizendo à polícia que “os homens não se dividem entre crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos, entre aqueles que querem manter esta sociedade injusta e aqueles que querem lutar pela justiça”?

O que aconteceu com a esquerda em 30 anos de liberalismo? Será que ela foi despojada de sua capacidade de reação no terreno orgânico e político? Será que o atordoamento sofrido a mantém fora do cenário político? A paixão pela divisão e pela capela própria são sintomas de um mal incurável? Enquanto moldam discursos e atitudes aos “bons modos” que aplaude a “democracia” da extrema direita. Não é suficientemente indicativo o que o “Congresso de delinquentes” vem fazendo em nome dessa “democracia”? Como é que 45 organizações, dificilmente chamadas de partidos, não são catalogadas como a mais clara demonstração do “divide e conquistarás”? Acaso não vimos no Equador que a extrema direita não tem escrúpulos para “cozinhar” resultados eleitorais?

Poderia continuar com mais perguntas, algumas mais urgentes do que outras, que a esquerda peruana deve responder com honestidade e sinceridade. Nessa tentativa, o maior esforço deveria ser dedicado a recuperar a retórica esquerdista, simples e direta, que os conecta com o povo, e deixar de construir discursos com frases rebuscadas, como quer a extrema direita. Lembremos com humildade os líderes de esquerda que foram capazes de “incendiar a pradaria” com discursos carregados de vocabulário popular, como faziam Javier Diez Canseco, Carlos Malpica, Alfonso Barrantes, entre outros.

É hora de superar a confusão e a dispersão que o neoliberalismo provocou na esquerda. A partir dos anos 90, instalou-se na esquerda uma forma de fazer política que a levaria à situação atual. Com a eleição de Alberto Fujimori, inaugurou-se, no campo da esquerda, a “opção preferencial” pelo “mal menor”, com custos que hoje se refletem no imobilismo e na dispersão de organizações sem identidade. A aposta ingênua de que o “mal menor” poderia gerar as “condições objetivas e subjetivas” para mudanças estruturais foi apenas uma ilusão do momento, mas depois se tornou uma espécie de estratégia de sobrevivência do oportunismo da esquerda.

Desde então, se as coisas não mudarem, estaremos trilhando um caminho sem volta, continuando a apostar no mal menor, em nome do qual não importou perder o próprio perfil, afundar no marasmo político e ideológico, abandonar a formação de quadros e a construção de partidos com capacidade de ser uma alternativa de poder, entre outros. Assim foi, geração após geração, até chegarmos ao momento que vivemos.

Como sair desse buraco? Como recuperar a atenção das maiorias que esperam discursos esperançosos e capazes de oferecer confiança no futuro? Essa é uma tarefa urgente. Compreender a “opção preferencial pelos pobres” da Igreja Católica como consubstancial às nossas posições políticas e ideológicas seria um bom começo, buscando recuperar a identidade e o perfil que diferenciam a proposta de esquerda das propostas centristas, ambivalentes e ambíguas que optam pelo “oportunismo”. A esquerda socialista e os progressistas genuínos deveriam aspirar a ser uma opção de poder, não uma opção de enchimento.

¨      Francisco e Milei, duas Argentinas. Por Hugo Albuquerque

“Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem traça nem ferrugem corroem e onde ladrões não minam nem roubam: Para onde está o teu tesouro, aí estará o seu coração também. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamón” (Mateus 6:19–24)

Há muito ainda o que se dizer sobre o papado do argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Em um ciclo de doze anos, ele defendeu os pobres e oprimidos, foi uma voz ativa na defesa dos palestinos, se mostrando também aberto às demandas da modernidade – na contramão de um mundo que viu a extrema-direita reaparecer. Mas na Argentina de Francisco, o atual governo, sob Javier Milei, equivale a um duplo antagônico seu.

O paradoxo do legado de Francisco na sua terra natal nos leva, obviamente, a pensar a situação mais geral da América Latina em tempos de desfazimento ou transmutação do império americano – no qual democratas e republicanos polarizam sobre nosso destino, com os primeiros dizendo que somos seu frontyard [o jardim, a entrada] e os últimos bradando que somos o backyard [o quintal, os fundos] deles.

A Argentina é um raro caso de país latino-americano que chegou a ser rico, mas entrou em uma lenta, dolorosa e dramática agonia. Francisco e Milei se tornaram a expressão extrema dos dois caminhos radicalmente diferentes, em relação aos quais, talvez em muito pouco tempo, os argentinos terão de se decidir. Mas essa bifurcação esconde determinados elementos sutis e determinantes.

De um lado, o que será o próximo Conclave é central. O legado de Francisco será continuado ou se tornará um ponto fora da curva no catolicismo? E como isso pode impactar na atual Argentina? Por outro lado, a terapia de choque de Milei colapsará ou terá o mesmo destino daquelas que fizeram Margaret Thatcher, no Reino Unido, ou Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que normalizaram a ordem neoliberal?

<><> A crise da burguesia nacional argentina

Como um PIB per capita na casa de 60% do americano antes da Primeira Guerra, a Argentina viu seu esgotamento econômico vir não só na forma da crise de seu modelo, mas também pelo bloqueio geopolítico do eixo anglo-americano, que interveio generosamente no país, apoiando e sendo apoiado pela fração entreguista da burguesia – não sem um levante da burguesia nacional em um complexo arranjo de classe que arrebentou no peronismo.

O racha da burguesia argentina contribuiu para a crise dos anos 1930, mas o surgimento de um bloco nacionalista heterogêneo pôde tomar forma efetiva, nos anos 1940, com a liderança do general Juan Domingo Perón, ainda que sob cerrada oposição que o derrubou e exilou nos anos 1950. Mas a história argentina a partir dali será uma sucessão de golpes militares e ingovernabilidade crônica.

Nos anos 1970, a solução encontrada é o retorno do próprio Perón, que ressurge como uma panaceia para a Argentina. O velho general, depois de um longo exílio na Espanha franquista, tricotava com as duas mãos, mas agora tinha de unir duas alas radicalmente opostas de seu próprio movimento – que ia da extrema direita à esquerda revolucionária, cujos militantes, literalmente, se matavam nas ruas enquanto reivindicavam a liderança de Perón.

É a ala direita do peronismo que orquestrará a última, e brutal, ditadura militar do país e sofrerá a vergonhosa derrota militar nas Malvinas, levando o país ao caos. Assim como será o peronismo a introduzir o neoliberalismo no país nos anos 1990 com Raul Menem – mas é, ironicamente, o mesmo peronismo que assume o país depois da crise de 2001 e empreende reformas sociais antineoliberais sob a forma do kirchnerismo.

Sob a liderança de Nestor Kirchner, a Argentina sai do buraco e se alinha às iniciativas progressistas do continente, com destaque para Hugo Chávez na Venezuela e Lula no Brasil. Nestor é sucedido pela esposa, Cristina; depois ele falece ainda muito jovem, quando ela se reelege. Mas quem se elege papa em 2013 foi o então cardeal Bergoglio, opositor do kirchnerismo, principalmente pela agenda de costumes avançada da então presidenta.

A transformação do cardeal Bergoglio no papa Francisco em 2013 produziu, ironicamente, um giro progressista nele próprio, o que poderia favorecer o kirchnerismo que, no entanto, é atropelado pelas circunstâncias: em 2015, Cristina não consegue sequer pautar exatamente um candidato orgânico seu, enquanto a direita propriamente dita, o bloco burguês entreguista, vence no voto com Macri em um prenúncio dos anos posteriores.

<><> Um adeus aos anos dourados do século XXI

A agenda reformadora do papa Francisco foi surpreendente e positiva. Ela mais parecia uma consequência natural da América Latina do século XXI, como polo da inovação e progresso social integral, mas sua chegada contrastou com a maré de reação às reformas sociais de anos antes. A vitória de Maurício Macri em 2015 é o primeiro grande triunfo eleitoral que atesta esse movimento.

Enquanto cardeal, Bergoglio tomou uma posição intermediária, de defesa da doutrina social da Igreja, mas matizada com posturas duras contra a agenda de costumes generosa do kirchnerismo, o que levou a embates consideráveis com o governo de Cristina – já enquanto papa, Francisco adotou um discurso tolerante e aberto, ainda que tenha sentido a dificuldade prática de fazer grandes reformas estruturais.

A agenda de Macri no poder retomou políticas semelhantes às ditaduras, ou às eleições semi-farsescas dos anos 1960 na Argentina, só que ali pelo voto. Havia um grau de civilidade política nos modos que Macri, um ultraconservador com maneirismos de aristocrata italiano, tinha de manter no contexto do seu partido hiperburguês, povoado com sobrenomes das elites argentinas.

Macri foi, no entanto, derrotado nas urnas em 2019, depois de quatro anos de oposição cruenta; mas com uma nova recomposição na qual o bloco centrista do peronismo apresentou o candidato Alberto Fernández, dessa vez com Cristina de vice – ex-chefe de gabinete de seu marido e um político próximo à centro-direita neoliberal, Fernández foi reinventado, porém, como um perfeito progressista latino-americano.

A pandemia, os erros e bizarrices de Fernández o tornaram um melancólico presidente de um mandato só, mas num cenário em que o macrismo não se reapresentou na alternância de poder. Ali, a figura neurótica, descontrolada e mal-educada de Javier Milei aparece, com seu peculiar anarcocapitalismo, a antipolítica e a defesa radical do privatismo que toma para si a indignação das massas.

Longe de simplificações, Milei não é apenas o “Trump argentino”, mas uma dissimulada mistura de showman com administrador de massa falida, cuja performance hipnotiza seus compatriotas enquanto lança mão de uma política radical de defesa dos credores argentinos – tudo enquanto mantém a máquina viva, costurando com democratas e republicanos americanos, que intermediam empréstimos incalculáveis do Fundo Monetário Internacional (FMI).  

<><> Milei e o feitiço de Mamón

No olho do furacão do endividamento, a conta da Argentina simplesmente não fecha. O processo atual de empréstimos do FMI ao país serve para o pagamento de credores, gerando uma dívida com o órgão internacional, coisa que os argentinos conhecem bem: condições impossíveis, exigências de cortes na área social e desinvestimento, o que não tem outro caminho senão o empobrecimento.

Milei, no entanto, se equilibra sob as promessas de enriquecimento individual, ataques ao “sistema” e uma fúria iconoclasta voltada aos marcos da civilização. É um clamor bárbaro, e ao mesmo tempo ocultista, estranho ao iluminismo, mas também a Francisco – e nada mais estranho e contrastante ao tipo de cristianismo praticado e professado pelo papa Francisco, principalmente como pontífice. 

Enquanto isso, o bloco de oposição argentina parece paralisado, exceção feita a Axel Kicillof, o jovem governador de Buenos Aires, das raras figuras a destoar do coro de catatônicos – mas um fato é verdadeiro: o antigo arranjo policlassista, sob a liderança da burguesia nacional, que sustentou o peronismo nos seus giros está, na melhor das hipóteses, em coma e a explicação para isso é básica; a fração nacional da burguesia colapsou.

O próximo Conclave se iniciará em poucos dias para católicos de todo o mundo, enquanto este ano na Argentina haverá eleições legislativas, nas quais um terço do Senado e quase metade da Câmara serão renovados. Ambas as disputas serão duríssimas, mas a universalidade católica terá repercussões no cenário particular da Argentina, cuja eleição de meio de mandato será um interessante teste de forças internacional.

Não foram poucos os crimes cometidos sob o nome de Deus na história, muito embora seja impossível negar que parte do legado de resistência veio da ala progressista da Igreja, com sua perspectiva teológica centrada na libertação dos pobres. Em tempos de adoração internacional a Mamón, um dos Sete Príncipes do Inferno na tradição, cujo sumo-sacerdote na Argentina é Milei, essas duas disputas se entrecruzam. 

 

Fonte: Opera Mundi

 

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