Jorge
Chaloub: Razões e consequências da anistia
A anistia é a grande bandeira atual da
ultradireita brasileira. O tema tem ações constantes nas redes sociais,
articulação na Câmara dos Deputados, manifestações de rua com amplos
financiamentos e forte pressão de governadores da direita. Além de constatar
que se trata de uma aposta para mobilizar um campo heterogêneo e atravessado
por conflitos, é necessário refletir sobre os sentidos explícitos e implícitos
sugeridos pela ideia e sobre como ela mobiliza o imaginário político nacional.
A primeira indicação, mais evidente, aponta
para o conceito jurídico. Estaríamos, desse modo, diante de um termo técnico,
presente na Constituição federal sobretudo para a exclusão de crimes políticos,
que neste caso extrapolou as paredes do Congresso Nacional e se tornou um tema
de debate na esfera pública. “Anistia”, portanto, carregaria um sentido
puramente institucional, não apenas sem nenhum conflito com a ordem
constitucional de 1988, mas também em fiel cumprimento aos procedimentos nela
previstos.
Não é necessário ir além da própria
Constituição para perceber as limitações dessa interpretação. A ênfase na ideia
de crimes políticos mostra como a anistia é um conceito que transborda os
limites do direito, tentando criar formas de lidar, por meio de uma ordem
institucional, com o que a ultrapassa. O debate sobre anistia não se resolve
por exercícios de hermenêutica jurídica, mas envolve questões fundamentais
sobre a legitimidade da própria ordem vigente. Ela dota a Constituição de uma
flexibilidade que a permite dobrar-se sem quebrar, mantendo a aparência de
normalidade mesmo ante crimes que frequentemente colocam em questão sua
continuidade. No uso do instituto há, porém, o risco inerente de ultrapassar
uma fronteira, que pode acabar por romper o que desejava preservar.
Não estamos tratando, contudo, de uma ideia
abstrata de ordem legal, e sim da Constituição que foi mais longe na garantia
de direitos democráticos e sociais na história brasileira. Ela previu pela
primeira vez o efetivo sufrágio universal, com o direito de voto do analfabeto,
além de instituir políticas de acesso universal à saúde, por meio do SUS,
avançando de modo sem precedentes em um processo de democratização no país.
Além desses traços, a ordem de 1988 se confunde, em suas virtudes e limites,
com a superação do regime autoritário pregresso. Questioná-la deve, no mínimo,
suscitar temores.
A anistia, contudo, ocupa lugar ainda mais
central no imaginário de 1988. O tipo de transição democrática no Brasil passou
pelos usos do instituto no fim dos anos 1970. Se a Nova República registrou
inegáveis avanços, houve, sem dúvida, efeitos perversos no caminho trilhado,
que relegou às sombras os crimes do regime autoritário de 1964, entre os quais
a tortura e o assassinato como política de Estado, e manteve como protagonista
do mundo político grande parte das elites da ordem autoritária pregressa, com perversas
consequências para a democracia emergente.
Contudo, os atuais defensores da anistia
interpretam a redemocratização em chave diametralmente distinta e pretendem
reverter os movimentos supostamente empreendidos pelas elites progressistas.
Eles reivindicam o papel de vítimas de um regime autoritário, supostamente
vigente no Brasil após a ditadura militar e dominado pela esquerda, que mente
sobre ter implantado uma democracia no país. Trata-se de mais uma demonstração
da importância dos usos políticos na história da ditadura militar para a
ultradireita, como se demonstrou, nas redes e na imprensa, quando das fortes e
articuladas reações de lideranças da ultradireita ao filme Ainda estou
aqui.
Pretende-se, por um lado, denunciar a
hipocrisia da esquerda, em mote retórico comum à ultradireita, que constrói sua
identidade em contraposição à representação dos adversários como moralmente
depravados. Nesse discurso, os embates tornam-se algo mais profundo que uma
disputa política, assumindo as feições de uma disputa entre bem e mal. Por
outro lado, a ditadura é central na construção da narrativa – muito frequente
em Olavo de Carvalho e em vários de seus alunos – que representava as esquerdas
como grandes vitoriosas do processo de redemocratização. Dado o diagnóstico que
esse campo teria construído uma hegemonia cultural, amparada nas formulações de
Antonio Gramsci, surgia a sugestão de utilizar parte do repertório identificado
com o progressismo como uma forma de expor sua falsidade e destruir, com as
mesmas armas, essa hipotética dominação.
Retratar a atual democracia brasileira como
falsa e autoritária é elemento tanto central na identidade da ultradireita
quanto relevante para legitimar os ataques à ordem política atual e justificar
sua superação. Ante um regime político nefasto, como o instituído pela
Constituição de 1988, todos os meios de superá-lo seriam legítimos. No discurso
predominante de defesa da anistia, o 8 de janeiro de 2023 não surge, portanto,
apenas como exceção, como ocorre quando os golpistas são representados como
“pessoas de bem” e ignorantes das consequências das próprias ações, mas também
como princípio a ser defendido. Em argumento que pretende emular a defesa da
luta armada por parte da esquerda durante a ditadura, o ataque violento contra
um regime autoritário é tolerável e legítimo. Uma das intenções da anistia da
ultradireita é tornar o recurso ao golpe corriqueiro, do mesmo modo que o
discurso de apologia ao golpismo já foi normalizado por grande parte das elites
políticas e da mídia.
Não estaríamos, nesse cenário, diante de
simples ameaça, mas da intenção de decretar a morte efetiva da ordem
democrática. De fato, não há democracia em um cenário no qual o golpismo é
legalizado e rotineiro. Do mesmo modo que a Anistia de 1979 foi um momento
central na construção de um novo regime, decisivo para as feições dessa nova
ordem, a aprovação da anistia para os golpistas de 2023 pretende apontar para
um novo cenário, construído sobre as ruínas de 1988. Dito de outro modo, o
instituto pressupõe, de fato, uma nova transição, desta vez de uma ordem
democrática para uma autoritária.
A radicalidade e as profundas consequências
da anistia justificam parte da resistência da elite política, mesmo da parte
que foi simpática ou condescendente com Jair Bolsonaro. Eleito à frente de uma
coalizão de ultradireita, composta tanto de novos protagonistas de extrema
direita quanto de uma direita antes hegemônica que se radicalizou, o
ex-presidente não contou apenas com o apoio de novas elites políticas, mas
também com antigas lideranças, que passaram a progressivamente questionar
princípios da ordem política vigente. A radicalidade da tentativa de golpe do 8
de janeiro expõe, contudo, cisões e tensões internas a essa heterogênea
coalizão. Apesar da retórica diversionista que cerca a anistia, mesmo parte dos
que toleraram Bolsonaro sabem que a transigência com o golpismo escancarado
pode destruir o atual regime e, com isso, solapar as bases sociais e
institucionais que sustentam seu poder. Como 1964 bem ensinou, por vezes os
apoiadores mais fervorosos do golpe são logo descartados pela nova ordem.
A anistia, portanto, é um bom indício para as
formas de relação da elite política com a ordem de 1988. Seus mais ferrenhos
defensores são aqueles que se organizam em torno de Jair Bolsonaro e podem, com
isso, ter suas performances e visões de mundo bem definidas pelo conceito de
bolsonarismo. Em que pese a boa dose de pragmatismo da tese da anistia
irrestrita para os envolvidos na tentativa de golpe, ela não se restringe a um
cálculo estratégico. Como em boa parte dos movimentos no mundo da política, crenças
e cálculos utilitários se misturam e a condicionam. Há algo na defesa da
anistia que transborda o medo da prisão ou o desejo de vantagens mais
imediatas. Parte desse excesso, revelador de crenças mais arraigadas, se mostra
na defesa que personagens da ultradireita que não pertencem ao campo
bolsonarista, como o Movimento Brasil Livre (MBL), fazem da medida.
A defesa da anistia funciona, neste caso,
como momento inicial de algo novo, o que desvela a apologia de uma ordem que
supere a organizada pela Constituição e, em muitos aspectos, a negue. A recusa
a 1988 passa por discursos distintos e tem justificativas diversas, que variam
de acordo com as linguagens políticas mais frequentemente conjugadas pelos
atores da ultradireita. Há, contudo, um núcleo comum, que identifica as mazelas
da ordem política a certa centralidade do conceito de igualdade, que limitaria
a liberdade, seja econômica ou religiosa, por meio da naturalização da
intervenção do Estado, do direito e da política na redução de desigualdades.
Esse ordenamento seria ineficiente e imoral, como bem revela o predomínio das
esquerdas, grupo indefensável seja por sua depravação moral, seja por seus
equívocos políticos. Os sucessos do petismo nas eleições presidenciais são
lidos, portanto, como consequências dessa ordem e sintomas de seu colapso.
Algumas interpretações sobre a crise
democrática brasileira, como as de André Singer e Marcos Nobre, expõem com
competência o uso das instituições pela ultradireita, assim como sua
reivindicação do conceito de democracia, mesmo que seja para negar seus atuais
pressupostos. Importantes nomes da teoria democrática, como Adam Przeworski,
indicam, por sua vez, um novo tipo de transição para o autoritarismo, bem
distinto dos velhos golpes de Estado que tinham como parte de sua estética a
presença ostensiva de tropas e aparatos militares nas ruas. As sugestões
revelam aspectos relevantes da ultradireita global e nacional, mas perdem parte
do cenário. Episódios como a invasão do Capitólio, o 8 de janeiro e a tentativa
de golpe na Coreia do Sul demonstram que há uma pluralidade de performances,
discursos e estratégias, não necessariamente marcados por um desejo de
coerência. Não são raras as defesas concomitantes de procedimentos
institucionais e de golpes à moda antiga, do direito e da força, de modo que,
na prática política, não estamos diante de alternativas excludentes.
A defesa da anistia ou a disputa de eleições
não implicam, portanto, o abandono de tentativas de golpe como o de 8 de
janeiro ou mesmo do velho recurso a forças militares, o que de modo algum pode
ser descartado, aqui e alhures.
Não estamos diante de novidade na história
política brasileira. Se por um lado as performances e estratégias de
mobilização de 8 de janeiro têm muito de novo, das imagens mobilizadas às
formas de organização, por outro lado são marcas frequentes da vida republicana
brasileira a convivência entre a força e a institucionalidade, assim como as
tentativas de golpe como prenúncio de anistias que, por sua vez, antecipam
futuros golpes bem-sucedidos, já que a tolerância ante inúmeras tentativas
usualmente antecipa o sucesso. Alguns dos mais célebres ideólogos de nossas
experiências autoritárias, como Francisco Campo e Miguel Reale, defendiam
conceitos particulares de democracia, sempre dissonantes em relação às
experiências democráticas então existentes.
As tortuosas persistências desse passado não
implicam uma condenação eterna ou o simples retorno dele, mas revelam novas
formas de velhas mazelas, que são, em muitos sentidos, contemporâneas. Nossa
mais longeva experiência democrática institucional, que muitos saudaram como
superação definitiva de velhas síndromes autoritárias, não padece da simples
persistência de um passado, mas sobretudo das formas por meio das quais esse
passado se faz atual.
O canto de sereia de que uma versão moderada
da anistia seria uma boa forma de inserir os “radicais” no sistema ou de
“moderar” ao menos parte do bolsonarismo é tão equivocada quanto potencialmente
trágica. Revela não apenas desconhecimento dos discursos e ações da
ultradireita brasileira, mas também uma clara incapacidade de perceber os
contornos de eventos centrais da última década, o que pode nos levar a
repeti-los de modo ainda mais grave. Dos primeiros indícios do protagonismo de
lideranças da ultradireita até o 8 de janeiro há um constante esforço de
normalização de atores que não são ocasionalmente contrários a elementos
pontuais do sistema político brasileiro, e sim adversários radicais de qualquer
experiência política democrática do pós-1945. A expectativa de uma iminente
moderação ou adesão aos ritos da democracia é, no melhor dos casos, ingênua.
Não estamos diante de uma discordância pontual, mas de um divórcio irreversível
entre certos personagens, munidos de seus respectivos repertórios políticos, e
a democracia.
É uma questão antiga e profundamente atual
como a democracia pode lidar com seus adversários declarados. Uma radical
rejeição contra qualquer crítica à ordem democrática pode facilmente produzir
uma ordem autoritária, em que o dissenso e a crítica sejam banidos. Por outro
lado, excessos de tolerância são usualmente fatais. Não se trata de uma questão
abstrata, mas de um problema com traços concretos e evidentes.
Não falo, é claro, de todos os que votaram em
certos candidatos ou mesmo passaram a simpatizar com determinadas lideranças e
ideias e apoiá-las. É sem dúvida necessário reintegrá-los aos valores
democráticos, como em outras vezes se fez. A questão são as lideranças,
intelectuais e militares, de um empreendimento golpista que não se limita ao 8
de janeiro, mas encontra nele um dos cimos de um longo processo. Aprovar a
anistia é, como tentei argumentar nas linhas acima, não apenas colocar em risco
o futuro, mas também condenar o presente.
¨
A vergonhosa proposta de
perdão aos golpistas do 8 de janeiro. Por Jorge Folena
Causa indignação e repulsa a proposta de
“conciliação nacional”, defendida até mesmo pelo líder do governo no Congresso,
Senador Randolfe Rodrigues, para reduzir as penas para os golpistas do 8 de
janeiro de 2023.
A referida proposta está sendo construída no
Senado Federal como alternativa ao projeto de lei de anistia, cuja
inconstitucionalidade já foi debatida à exaustão, tendo sido concluído que não
se pode anistiar atos que atentaram contra a Constituição.
Ora, se o parlamento (Câmara dos Deputados ou
o Senado Federal) tivesse o mínimo de respeito à verdade histórica, seus
integrantes não deveriam aceitar nenhuma proposta de discussão de anistia ou
perdão para a diminuição de penas em favor dos golpistas, que atacaram as
instituições do Estado brasileiro e, sobretudo, a Constituição Federal de 1988,
a qual pretendiam, ao final, revogar para implantar uma ordem ditatorial no
Brasil.
Os indivíduos que compareceram ao ato de 8 de
janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, não eram pobres inocentes e
conheciam o objetivo daquela manifestação: destituir, pela força, o governo
legítimo e democraticamente eleito pela maioria do povo brasileiro. Mas agora,
na proposta em gestação no Senado Federal, diz-se que o perdão não é
direcionado aos mentores e financiadores, mas apenas aos bagrinhos
“desavisados”, que participaram do ato golpista e foram condenados severamente
pelo STF.
No entendimento dos “conciliadores” de
plantão, a proposta em elaboração “é uma mão estendida para” a paz. De certa
forma, este argumento foi o mesmo empregado pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADPF 153, quando se recepcionou a lei de anistia de 1979 (Lei
6.683), que até hoje dificulta a responsabilização dos malfeitos da ditadura de
1964-1985, deixando torturas, assassinatos e desaparecimentos sem qualquer
punição efetiva.
Naquele julgamento, ocorrido em abril de
2010, o ex-presidente do STF, ministro Cezar Peluso, manifestou que: “só o
homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais
elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade
que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”.
E com essas palavras foram perdoados judicialmente os criminosos do
último regime ditatorial.
Em decorrência, os mesmos ideais fascistas
perdoados pelos “sentimentos de humanidade” e "generosidade",
sob a alegação de que "o Brasil fez uma opção pelo caminho da
concórdia" (ministro Cezar Peluso), ressurgem treze anos depois (em
2022/2023) com planejamento, método e controle de aparatos institucionais, com
o objetivo de assassinar um presidente e seu vice, democraticamente eleitos,
bem como um juiz do próprio Supremo Tribunal Federal; e, durante as violentas
ações para assalto ao poder, transmitidas diretamente para o mundo, os
perpetradores destruíram as instalações do Tribunal, do Congresso e do Palácio
do Planalto
Ou seja, quando a elite brasileira, no
passado recente, optou por não enfrentar nem enquadrar os fascistas,
deixando-os livres, na verdade os colocou como suas forças de reserva, prontas
para retornarem, sempre que necessário, em ações violentas e contra o Estado
Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 1988. Então, agora, se
o Parlamento conceder o perdão a qualquer integrante da tropa de choque
fascista que atuou no 8 de janeiro de 2023, possibilitará que ela retorne, no
futuro próximo, para promover atos igualmente criminosos contra o país.
Infelizmente, ao contrário da conclusão do
ministro Cezar Peluso, naquele voto no julgamento da lei de anistia de 1979,
aparentemente estamos condenados "a um fracasso histórico", pois, na
verdade, não lutamos com convicção contra todos os males que impõem ao Brasil,
para nos manter eternamente na dependência e subserviência aos interesses do
imperialismo, dos latifundiários e do fascismo, com o objetivo de nos impedir
de alcançar a soberania efetiva e o desenvolvimento.
Espero que o presidente Lula compreenda que
esta é a nossa grande luta histórica, da qual ele pode ser o grande líder
popular, que jamais será aceito pela classe dominante brasileira. Pois, longe
de serem novas, essas questões já tinham sido apontadas por Luiz Carlos Prestes
no manifesto da Aliança Nacional Libertadora, de julho de 1935; igualmente,
Getúlio Vargas falou sobre elas na sua Carta Testamento de agosto de 1954; e,
do mesmo modo, João Goulart, no seu Discurso na Central do Brasil, em março de
1964. São elas as razões por trás do golpe que nos legou 21 anos de ditadura
(1964-1985); que controlaram os cordões que conduziram ao impeachment indevido
de Dilma Rousseff, em 2016; e levaram à prisão do próprio Presidente Lula,
encarcerado ilegalmente por 581 dias (2018-2019. Há mais de um século, são as
mesmas causas de nossas tantas mazelas e, contra elas, devemos seguir na luta
anti-imperalista, anti-feudal e antifascista.
Por tudo isto, considero que qualquer
proposta para perdoar os golpistas do 8 de janeiro de 2023 representa um
escárnio à Constituição e um incentivo à reaglutinação das forças fascistas,
que prosseguirão no discurso de ódio e sentindo-se autorizadas para atacar as
instituições e tentar implantar ditaduras que ameaçam, torturam e matam
os brasileiros, abrem mão da nossa soberania e entregam nossas riquezas aos
interesses externos.
Fonte: Le Monde/Brasil 247

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