Jorge Almeida: Do neofascismo brasileiro à
“terceira via”
A
condenação de Jair Bolsonaro à inelegibilidade e sua provável condenação à
prisão como líder da tentativa de golpe de Estado, abriram a temporada de
disputa de seu legado neofascista e de seus votos. Diferentes políticos
profissionais ligados ao ex-presidente disputam esse espaço eleitoral assim
como a base de um comportamento político-ideológico da direita liberal mais
tradicional. A classe dominante, suas elites políticas e intelectuais e suas
mídias voltaram a procurar uma chamada “terceira via” que esteja entre o
chamado “bolsonarismo raiz” e a candidatura de Lula da Silva (ou outra por ele
indicada), que possa parecer mais “limpa” e capaz de ir ao segundo turno para
derrotar uma candidatura petista. Já fracassaram duas vezes com essa tentativa,
em 2018 e em 2022. Assim, aumenta a possibilidade real de uma convergência (ou
uma ponte) entre o desejo de uma “terceira via” e um herdeiro, supostamente
mais palatável, do eleitorado bolsonarista. Até as convenções partidárias,
muita água suja ainda vai rolar por debaixo das tentativas de construir essa
ponte. Nesse sentido, continua atual o esforço de melhor definir o neofascismo
brasileiro em suas relações e diferenças com o fascismo histórico e o
neoliberalismo.
Ao
tratar da relação entre bolsonarismo e fascismo não podemos cair em
anacronismos, tentando aplicar superficialmente um conceito daquilo que
apareceu historicamente, há cerca de 100 anos, na Itália. O Reino da Itália era
um país do centro do imperialismo, pois, mesmo não sendo o Estado mais
importante, era uma das grandes potências naquele período histórico. É preciso
contextualizar, então, o conceito de fascismo pois, além de terem se passado
100 anos, estamos num país da periferia do capitalismo mundial. O que foi o
fascismo na sua origem e no país onde nasceu e assim se autodenominou
“Fascismo”? Vamos responder partindo do revolucionário italiano Antônio Gramsci1, o primeiro entre os
marxistas a definir o que é “fascismo”.
·
O que é o fascismo?
Para
Gramsci, fascismo é um autoritarismo militarista. Mas não é somente um
bonapartismo ou uma ditadura militar, como tantas outras. Não é uma
extrema-direita qualquer. O movimento fascista nasceu no momento de uma
profunda crise nacional e internacional, posterior à Primeira Guerra Mundial,
da qual a Itália saiu com a dignidade nacional ferida (MAESTRI e CANDREVA,
2001).
Um
outro elemento do contexto, fundamental para entender a ascensão do fascismo, é
que a Itália vivia uma “crise de hegemonia” e um ascenso das lutas dos
trabalhadores. As classes dominantes não estavam conseguindo governar para
garantir seus interesses sob um regime de democracia liberal burguesa. Segundo
Gramsci (2000), hegemonia é uma combinação de direção política com dominação
coercitiva. Ou seja, é uma combinação da capacidade que um determinado grupo
social, econômico e político tem de dirigir aqueles que aceitam sua liderança
política, ideológica e moral; ao mesmo tempo em que tem os instrumentos para
agir com força (coerção) contra os que não aceitam a sua liderança
consensualmente. A direção política e ideológica se constrói a partir da
sociedade civil e a coerção se faz principalmente via Estado. Ademais, a
hegemonia política e ideológica também é econômica: precisa se basear no
controle dos núcleos fundamentais da estrutura econômica.
Assim,
uma classe hegemônica é aquela que, ao mesmo tempo, garante seus interesses
materiais detendo os núcleos fundamentais da economia, tem suas ideias
predominando na sociedade civil e controla os setores decisivos do Estado Se a
classe hegemônica perde a predominância em um desses três planos (ou esferas)
da sociedade (estrutura econômica, Sociedade Civil ou Estado) advém uma crise
de hegemonia. Seu poder está correndo riscos. Era isso que estava acontecendo
na Itália. Havia, de fato, da parte das classes dominantes, a intenção de dar
uma resposta à luta do operariado da região Norte, a mais industrializada da
Itália, onde estavam sendo construídos os Conselhos de Fábrica. Ali, os
operários fabris chegaram a controlar o processo produtivo, inclusive nas
empresas mais importantes do país – como a Fiat, em Turim. Já no Sul, que era a
região predominantemente rural e de produção agrícola, ocorria um ascenso do
movimento camponês, que lutava pela terra para quem nela trabalha, com ocupação
de latifúndios. Havia realmente uma situação revolucionária. Ao mesmo tempo, do
ponto de vista eleitoral, o Partido Socialista (PSI) chegou a ter mais de 30%
dos votos nas eleições de 1919.
O
fascismo nasce num momento de crise de hegemonia e de possibilidade real de um
ascenso da luta operária e camponesa e da conquista do poder político por via
revolucionária, com amplo apoio popular. A base original do fascismo italiano
foi a chamada “pequena burguesia” urbana que tinha a expectativa de um governo
e um regime político que representasse os seus interesses, de setor médio da
população, que não era nem a classe trabalhadora nem a grande burguesia. Nasce,
portanto, de uma quimera pequeno-burguesa de ter um regime econômico, social e
político próprio, acima das principais classes sociais. Mas, a pequena
burguesia não tem condições estruturais e, portanto, políticas, de construir um
modo de produção e um regime político próprios. No capitalismo, somente as
classes fundamentais (burguesia e trabalhadores) têm condições de dirigir um
Estado que expresse seus interesses de classe e estendê-lo a toda a sociedade. Por
isso, esse movimento fascista vai acabar sendo um instrumento a serviço do
grande capital e da repressão às lutas do povo trabalhador, especialmente do
operariado e do campesinato. Será um movimento visceralmente anti-esquerda,
especialmente antissocialismo e anticomunismo, que eram as duas principais
forças de esquerda na Itália naquele momento. Ou seja, o fascismo nasce com
base na pequena burguesia urbana, mas será apoiado e financiado pelo grande
capital, que passa a ver o movimento como uma alternativa para evitar um
processo revolucionário do povo trabalhador na Itália. Naquele momento, o
Partido Socialista (PSI) era a principal força da esquerda, a que tinha mais
base social nos sindicatos urbanos e no movimento dos camponeses. O Partido
Comunista (PCI) era a força mais radical e ativamente revolucionária, porém com
menor presença nos movimentos de trabalhadores.
Ideologicamente,
o fascismo se apresenta como conservador na pauta dos costumes e das relações
sociais. Carrega marcas do tradicionalismo dominante, do racismo, da misoginia
e do patriarcalismo. Mas, politicamente, nas palavras de Gramsci, é um
“subversivismo reacionário”, que pretende golpear a ordem social para impedir
uma transformação reformista ou revolucionária. Na sua origem, era um movimento
nacionalista de fato. Não era somente um nacionalismo de palavras, nem um
patriotismo retórico (como o neofascismo no Brasil). Foi, efetivamente, um
movimento que procurava defender interesses nacionais da burguesia italiana num
contexto de conflito interimperialista e quando a Itália pretendia ampliar suas
colônias. Era, portanto, um nacionalismo de direita, imperialista, tanto na
disputa com outras potências imperialistas, como parte de um país que tinha
colônias na África (especialmente na Eritréia, Somália e Líbia), além de
pequenas ilhas no Mediterrâneo e que, já durante o regime fascista, em 1936,
invade e ocupa parcialmente, pela força militar, a Etiópia.
No
começo do governo Mussolini (1922), quando ele ainda governava ao lado de
conservadores e liberais, o modelo econômico respeitava um viés liberal. Mas, a
partir da consolidação do regime de Estado centralizado, a tendência foi
estatizante, no sentido de uma economia regulada e dirigida pelo Estado, com
forte protecionismo para defender grandes empresas capitalistas privadas
italianas, e estatizações de empresas falidas ou inviáveis economicamente. O
fascismo clássico, apesar da retórica de estar acima das classes, estava de
fato a serviço do grande capital e reforçava o capitalismo nacional. Mesmo as
ações de intervenção e dirigismo estatal tinham esse objetivo. Trabalhava no
sentido de aumentar o arrocho e a exploração dos trabalhadores e a concentração
de capital e riqueza nas mãos de uma minoria. Para garantir isso, todo o
sindicalismo autêntico e independente foi proibido e eliminado violentamente.
E, em seu lugar, foi instituído um sindicalismo corporativista, imposto e
controlado pelo Estado.
O
regime fascista foi um regime autoritário e centralizado que acabou quebrando
as instituições da democracia liberal burguesa, instituindo um partido único
(Partido Nacional Fascista) e acabando com a dita independência dos chamados
“três poderes” liberais (executivo, legislativo e judiciário). Ao fazê-lo
torna-se um governo ditatorial do poder executivo, dirigido unipessoalmente,
com mão de ferro, por Benito Mussolini (em comum acordo com o estado maior das
forças armadas), que acabou se impondo sobre o conjunto das instituições do
Estado e da sociedade.
Outro
aspecto essencial, é que ele nasceu como uma organização política e paramilitar
que atuava na sociedade civil. O fascismo não era simplesmente uma organização
autoritária nascida dentro do Estado. Na verdade, nasceu como um movimento fora
do Estado, a partir de 1919, e se organizou como um partido que fez disputa
política e ideológica, mas também agindo de forma paramilitar, na sociedade
civil, antes da tomada do poder estatal. E, a partir do momento em que
conquistou o poder político, continuou agindo por dentro e por fora do Estado
(GRAMSCI, 2004). Aliás, mesmo antes da conquista do poder político, já atuava
de forma legal e ilegal. Usava a legalidade, mas ao mesmo tempo atropelava as
leis. Para isso, contava com a cumplicidade do aparelho jurídico e coercitivo:
juízes, promotores, policiais e forças armadas, para os seus crimes.
Quando
conquistou o poder, portanto, o fascismo já agia por dentro e por fora do
Estado. Isso permitiu que houvesse uma espécie de fusão entre as forças
fascistas e o próprio aparelho militar burocrático profissional do Estado,
centralizado pelo comando do estado maior das forças armadas italianas. Contudo,
era um movimento dirigido por um chefe com imagem forte. Pois a ideologia
fascista também acredita em soluções que partam de um “grande líder” que se
apresenta como um guia personalista e “salvador da pátria”. Daí porque
Mussolini se autodenominava “Duce”, ou “Condutor”, um líder que é um chefe
incontestável.
Outra
característica fundamental do fascismo é que ele não tem limites morais que
possam inibir as suas ações políticas e seus crimes de todo tipo. É importante
ressaltar também que, no caso da Itália, Gramsci identificou dois “tipos” de
fascismo. Um, original e mais ideológico, era o movimento fascista, chamado de
“Fasci Italiani di Combattimento”, que depois se transformou no Partido
Nacional Fascista. Em paralelo, existiam as organizações paramilitares montadas
por latifundiários no sul da Itália, sem um programa ideológico bem definido,
porém formadas para promover repressão direta ao movimento camponês. Mas, ambos
confluíram nos mesmos objetivos gerais. Esse processo, em seu conjunto
dialético, acabou gerando uma unificação de todas as frações das classes e
elites dominantes da Itália, seja o grande capital industrial, o capital
financeiro e os latifundiários. Sejam os políticos propriamente fascistas, outros
políticos da direita conservadora e, também, setores da igreja católica, assim
como o comando das forças armadas.
No
final das contas, a Itália, que era uma democracia burguesa com um regime de
monarquia constitucional parlamentarista, viu o próprio rei apoiando esse
processo e indicando Mussolini como primeiro-ministro, que teve a sua aprovação
pelo parlamento. No começo, Mussolini era o chefe de um governo conservador
liberal. Era um fascista chefiando um governo de direita conservadora, e num
regime de democracia liberal representativa, sob a forma de uma monarquia
constitucional parlamentarista. Como chefe desse governo, ele foi transformando
o próprio governo num governo fascista e, finalmente, o próprio regime em uma
ditadura fascista.
* *
*
Em
síntese, o fascismo histórico é um movimento de autoritarismo militarista; a
serviço do grande capital e para reprimir as lutas do povo; antissocialista e
anticomunista; que surge em momento de crise de hegemonia; liderado por um
líder “Salvador da pátria”. Tem uma organização político-partidária e
paramilitar na sociedade civil. Promove a repressão direta das massas; É
conservador na pauta dos costumes e nas relações sociais, racista, xenófobo e
misógino; é nacionalista e imperialista. Não tem limites morais. Age por dentro
e por fora do Estado: legal e ilegalmente. Tem a cumplicidade do aparelho
jurídico coercitivo. Pretende subverter a ordem;. Ao chegar no poder, instaura
um regime de Estado centralizado, com tendência estatizante, de partido único, ditatorial
e antipopular.
No caso
italiano, a ascensão do fascismo esteve ligada a um contexto no qual havia um
sentimento de derrota nacional na I Guerra Mundial; ascenso da luta dos
operários e dos camponeses e avanço eleitoral do PSI; frustração da pequena
burguesia; crise de hegemonia e do Bloco Histórico; aliança da burguesia
industrial com os latifundiários; moderação, vacilação e crise do PSI; e um PCI
revolucionário, porém ainda relativamente com menor força no movimento operário
e camponês do que o PSI e que comete erros. Surgem problemas para a aliança
operária e camponesa e a efetivação da Frente Única antifascista; o fascismo
ocupa o espaço aberto pela crise e lidera uma alternativa. No governo, o
fascismo mostra sua cara e instaura a ditadura. Segu-se uma dura construção da
resistência e, finalmente, a derrota do fascismo ocorre na convergência da
derrota da Itália na segunda da Guerra, a resistência e o rompimento da classe
dominante e elite conservadora com Mussolini.
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O neofascismo brasileiro
É,
portanto, importante compreender esse processo e verificar que existem
características semelhantes em relação àquilo que acontece no Brasil hoje. Por
exemplo: o mundo viveu uma crise no pós-Primeira Guerra Mundial e agora também.
Em ambos os momentos houve um enfraquecimento das democracias liberais. Mas, a
atual, sendo uma crise estrutural do capitalismo (MÉSZÁROS, 2002; ALMEIDA,
2023.b), traz suas especificidades. Portanto, existem situações nacionais e
históricas particulares bem diferentes que precisam ser reconhecidas para
compreendermos nossa realidade sem cair num anacronismo. A utilização de fatos
que aconteceram num determinado momento histórico e num outro espaço
territorial-estatal, não deve ser empregada para interpretar dogmaticamente a
realidade que vivemos hoje.
No
Brasil, desenvolveu-se um movimento que tem características fascistas. Tem sido
capitaneado por Jair Bolsonaro, que sempre foi um militar com perfil
autoritário e anticomunista. Teve a intenção de dar um golpe, contando com a
participação das Forças Armadas para constituir uma ditadura sob seu comando.
Uma vontade que, provavelmente, ele não tirou da cabeça antes, durante e depois
de sua passagem pela Presidência da República: a vontade de ser um “Duce”. As
concepções conservadoras, anti-esquerda, antissocialistas e anticomunistas
estão presentes numa difusa organização e capacidade de mobilização de massas
que, entretanto, não é exatamente um partido organizado de forma paramilitar,
como Mussolini montou na Itália. A visão conservadora dos costumes, o machismo
e o racismo também estão presentes. A base social, que contribuiu para sua
ascensão e até sua chegada ao governo pela via eleitoral, também tem um forte
peso dentro da chamada classe média. Esses são elementos semelhantes ao que
ocorreu na Itália.
Porém,
existem algumas diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, esse fascismo
brasileiro atual, não é nacionalista, nem imperialista, nem estatizante. Ao
contrário, o seu “patriotismo” é apenas retórico, pois seu governo foi,
efetivamente, entreguista, privatista e neoliberal, submisso aos interesses
imperialistas de vários países. No contexto mundial, o Brasil é um paraíso do
grande capital, não só dos EUA, mas de diversos países, europeus e asiáticos
(Japão e China) que, de fato, têm construído e reproduzido relações dependência
do nosso país. Esse fascismo brasileiro também não é estatizante. Ao contrário,
ele é privatizante. É um fascismo neoliberal. Portanto, nesse aspecto,
diferente daquele italiano.
Por
isso, é um “neofascismo”. Um novo tipo de fascismo, que está adequado a uma
nova realidade histórica, regional e nacional, na qual estamos cem anos depois
do nascimento do fascismo na Itália. Estamos num período em que já houve uma
grande expansão e mudanças no capitalismo imperialista mundial. Por outro lado,
existem também as características particulares da dependência de um país
periférico que é o Brasil. Portanto, é um “neofascismo”. Assim sendo, também
não é correto chamar Bolsonaro e o movimento que ele ainda lidera de
“protofascista”. Porque ele não é “proto”, não é algo anterior ao fascismo. Ele
já é fascista, mesmo sendo um fascista remodelado pelas circunstâncias
históricas e políticas. Ou seja, ele não vai se transformar num movimento
típico do fascismo histórico. Além disso, temos aqui um contexto histórico, uma
correlação de forças entre as classes e frações de classes e um processo
diferente do que ocorreu na Itália. Como vimos, Mussolini chegou ao governo
como primeiro ministro indicado pelo rei e apoiado pelo parlamento. Ele formou
o ministério e passou a ser o chefe de governo. Depois, foi controlando o
governo e, finalmente, deu o golpe completo, transformando o próprio Estado num
regime de ditadura fascista.
No
Brasil, isso não aconteceu. O que tivemos foi um presidente neofascista num
governo de direita e extrema-direita, de composição com liberais, conservadores
e políticos oportunistas de direita que já tinham participado de outros
governos, inclusive os do Partido dos Trabalhadores (PT). Alguns participando,
ao mesmo tempo, do governo federal de Bolsonaro e de governos estaduais da
direita liberal ou governados por partidos considerados de “centro-esquerda”,
como o PT. Um governo onde alguns dos mais notoriamente neofascistas acabaram
sendo afastados, por Bolsonaro, de espaços-chave que foram entregues a outras
forças da direita tradicional. Inclusive os dois ministros portadores do
discurso neofascista mais enfático, como o da Educação (Abraham Weintraub) e o
das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), que foram exonerados. Ou seja,
Bolsonaro é um neofascista, mas seu governo não chegou a ser “neofascista”
(ALMEIDA, 2023.c). Além disso, o regime continuou sendo uma democracia liberal
representativa, apesar de mais carregada de autoritarismo e arbitrariedades do
que normalmente é a democracia com “as características brasileiras”.
Arbitrariedades que foram se intensificando desde o processo da Lava Jato, do
golpe do impeachment de Dilma Rousseff e das condenações e prisão de Lula da
Silva para afastá-lo da disputa presidencial em 2018.
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A tutela militar civil burguesa
Finalmente,
Bolsonaro não contou com um cheque em branco das classes dominantes nem da
maioria dos comandantes militares para chefiar uma ditadura. Não contou com um
judiciário absolutamente submisso. Não teve o parlamento a seus pés. Nem uma
grande mídia em seu favor pessoal. Ao contrário, houve um processo de tutela do
seu governo. Uma tutela militar, civil burguesa (ALMEIDA, 2023.c). Apesar de
seus desejos de ser um Mussolini ou um Napoleão Bonaparte não havia condições
políticas para isso. Queria ser um “Duce”, mas foi tutelado.
As
classes dominantes não aceitaram suas ambições pessoais e nem precisavam disso
porque, no Brasil, não houve uma crise de hegemonia. Não havia a ascensão de um
movimento popular em condições de chegar ao poder político por uma via
revolucionária, nem tampouco a um governo popular reformista radical por uma
via eleitoral. Não ao ponto de as frações burguesas hegemônicas abrirem mão de
um regime de democracia liberal por um regime de ditadura fascista comandada
pelo “Duce” Bolsonaro. Isso porque as chamadas “esquerda” e “centro-esquerda”
predominantes no Brasil, que poderiam chegar (e realmente chegaram ao governo
pela via eleitoral), não têm uma perspectiva que vá além dos limites da ordem
social burguesa e de um programa social-liberal e da manutenção da dependência
ao capital imperialista. Enfim, a grande burguesia já tinha dado o golpe que
era do seu interesse num determinado momento (o impeachment de
Dilma Rousseff). E não queria nem precisava ser governada ditatorialmente por
um aventureiro.
O
fundamental, para o grande capital, já estava sendo feito sem precisar um golpe
militar para continuar o serviço. Assim, um golpe militar propriamente dito não
foi um projeto que unificasse as frações hegemônicas da burguesia brasileira e
internacional, nem as elites políticas, do Judiciário, das Forças Armadas e,
muito menos, da grande mídia empresarial. Essa mídia – especialmente seus
órgãos mais tradicionais e orgânicos do grande capital — colocou-se em sua
maioria em oposição a Bolsonaro. Mas, como regra geral, apoiou sua política
econômica, procurando diferenciar os que considerava “bons” e os “maus” dentro
do governo.
Desde
sempre, o governo Bolsonaro foi tutelado: uma tutela militar civil, burguesa,
por dentro do próprio governo e de fora para dentro. Uma parte dos militares,
que participavam da tutela militar nos cargos do governo, romperam e passaram a
agir por fora (ALMEIDA, 2023.c). O grande capital, na medida em que foi
conseguindo seus objetivos estruturais (como as reformas neoliberais,
privatizações etc), passou a focar na melhora do clima político-institucional,
para enfrentar a prolongada crise econômica. Parte da tutela parlamentar entrou
no governo, via Centrão. Por outro lado, as frações principais da classe
dominante, da elite política, da grande mídia e do judiciário preferiam uma
candidatura da chamada “terceira via” para 2022. Mas Bolsonaro foi um empecilho
a uma “terceira via” com força eleitoral e a disputa acabou levando à vitória
apertada de Lula no segundo turno (ALMEIDA, 2023.c). Houve a fracassada
aventura golpista de 8 de Janeiro de 2023 (ALMEIDA, 2023.a) com a digitais de
Bolsonaro. Devido aos crimes que cometeu, ele recebeu duas condenações à
inelegibilidade pelo TSE. E está, provavelmente, a caminho da cadeia por seu
papel dirigente na tentativa de golpe de Estado.
Enfim,
o Estado é burguês e, apesar da escalada autoritária, continuou sendo liberal
democrático representativo, não sendo um ente monolítico que obedece a um
comando único e sem contradições. Não houve uma ditadura política, estrito
senso. Houve uma tutela com conflitos, negociações e acordos – alguns dos quais
não transparentes. E funcionou – no sentido de garantir os interesses comuns
das frações hegemônicas da classe dominante, é claro. Naquilo que é essencial à
hegemonia burguesa, governo, parlamento, judiciário, polícias, Ministério
Público, Forças Armadas e grande mídia agiram no mesmo sentido. E, apesar da
grave crise, a hegemonia burguesa continuou forte. Mas, um movimento
neofascista passou a ter vida própria no Brasil, independente de Bolsonaro e de
sua liderança pessoal direta.
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Síntese do neofascismo brasileiro
Como
vimos, o neofascismo brasileiro tem características do fascismo histórico assim
como particularidades. Como o histórico, é um movimento de autoritarismo
militarista; a serviço do grande capital e para reprimir as lutas do povo;
antissocialista e anticomunista; liderado por um líder “Salvador da pátria”;
conservador na pauta dos costumes e nas relações sociais, racista, xenófobo e
misógino; tem uma organização política difusa e articulada, com ações abertas
na sociedade civil e conspirativas que cumpre, de certo modo, um papel de
partido; e tem embriões de uma estrutura paramilitar. Mas, não tem uma
organização partidária nem uma organização paramilitar própria; pontualmente,
promove a repressão direta das massas; não tem limites morais; age por dentro e
por fora do Estado, legal e ilegalmente; tem a cumplicidade de uma parte do
aparelho jurídico coercitivo; pretende subverter a ordem.
Entretanto,
surgiu num momento de crise econômica, política e institucional, mas não de
crise de hegemonia. Ao contrário, a hegemonia burguesa estava (está) forte e
não corria nem corre riscos conjunturais. Não é estatizante – ao contrário, sua
política econômica é radicalmente neoliberal; seu nacionalismo é retórico e
manipulativo dos símbolos nacionais, como o verde e amarelo. Porém, de fato, é
um movimento entreguista aberto a todo tipo de presença econômica de capitais
estrangeiros. Tem uma política externa oposta a uma soberania nacional e
ampliou a presença de capitais imperialistas de várias origens. Finalmente,
apesar dos desejos do seu líder, não conseguiu um domínio do neofascismo no
governo nem, muito menos, transformar o regime político numa ditadura fascista.
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Considerações finais
Portanto,
não há uma incompatibilidade entre fascismo em geral e liberalismo econômico.
Isso se expressa no neofascismo neoliberal.
Tampouco
há um impedimento para uma aproximação entre setores do neofascismo e uma
direita liberal e/ou conservadora tradicional que atenue os elementos mais
toscos e delirantes do bolsonarismo e crie condições para uma alternativa mais
consensual entre as diversas frações da classe dominante e de suas elites
políticas e militares. E que possa ter força política e demonstrar viabilidade
eleitoral. Essa é, hoje, a vontade política da chamada “terceira via”.
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Fonte: Outras Palavras

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