Fim
do mundo: por que papa americano causa comoção entre adventistas?
Nenhuma
outra religião sentiu um frio na espinha tão intenso com a eleição de Robert
Francis Prevost como papa Leão XIV quanto os adventistas. Para os membros da
Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), o período de sucessão papal sempre é um
momento de apreensão, já que, na cronologia profética dessa denominação, cada
novo papa católico pode instaurar o prelúdio para o fim do mundo. Essa comoção
não ocorreu com João Paulo II, com Bento VI e tampouco com Francisco. No
entanto, a escolha de Robert Francis Prevost, como Leão XIV, deixou os
adventistas do mundo inteiro em polvorosa. O motivo: Leão XIV é o primeiro papa
estadunidense na história da Igreja Católica.
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Sábado vs. Domingo
A IASD
é uma denominação cristã protestante nascida nos EUA no século 19, entre
pequenos proprietários brancos de zonas rurais em rápida urbanização, como uma
ramificação dos milleritas, seguidores de William Miller, que a partir de
interpretações das profecias do livro de Daniel, assumiam que Jesus voltaria à
Terra em 22 de outubro de 1844. Após este evento, consolidado no imaginário
adventista como “O Grande Desapontamento”, parte dos milleritas se reorganizou
sob a liderança de James White e sua esposa, a profetisa Ellen G. White, cujos
escritos formaram o alicerce da teologia adventista.
Entre
as crenças que mais distinguem o adventismo de outras denominações protestantes
está a de que o sábado é o verdadeiro dia de guarda, e não o domingo.
Recorrendo aos Dez Mandamentos (Êx 20.8-11), nos primórdios de sua formação os
adventistas já reservavam o sábado para o descanso do trabalho e atividades
religiosas, denunciando a santificação do domingo como uma subversão da Lei
Divina empreendida pela Igreja Católica Romana, que, sorrateiramente, teria
influenciado outras denominações protestantes, que também guardam o
domingo.
O
embate doutrinário sábado vs. domingo era, no entanto, apenas
uma faceta do sentimento anticatólico adventista, que dialogava com a realidade
dos EUA no século 19. O adventismo nasceu num momento de intensa imigração no
país, especialmente a de católicos irlandeses. O anticatolicismo adventista era
algo compartilhado pelo estadunidense conservador médio, que via sua ordem
social ameaçada por uma cultura católica distinta dos “princípios da Reforma
Protestante”, afirmados como fundamento da própria nação americana. O
catolicismo, embora também pregasse a guarda do domingo, era menos rigoroso
quanto ao que era permitido fazer no dia sagrado, visto muito mais como um dia
de reunião da comunidade religiosa do que como um momento para abstenção de
certas atividades, e não proibia o consumo de álcool, ao contrário do
protestantismo puritano hegemônico nos EUA.
Esta
era uma polêmica recorrente no debate público estadunidense da época, já que
políticos puritanos e conservadores, motivados em parte por sua aversão aos
católicos e irlandeses, chegaram a propor leis para proibir o trabalho aos domingos,
declará-lo como dia oficial de guarda, entre outras propostas de união entre
Igreja e Estado. Projetos do tipo já eram discutidos na década de
1830 como uma forma de preservar o caráter dos EUA como nação protestante.
O projeto de lei dominical de Henry
Blair,
em 1888, por exemplo, deixou uma marca profunda no imaginário coletivo
adventista, que quase se viu proibido de obedecer à doutrina da guarda do
sábado por conta de uma imposição legal em desrespeito à liberdade
religiosa.
Foi a
partir dessa experiência histórica que as declarações mais famosas de Ellen G.
White sobre um “decreto dominical”, que obrigaria a guarda dos domingos, foram
elaboradas. Elas carregavam, ao mesmo tempo, um sentimento anticatólico e de
desconfiança da própria nação e dos protestantes, que se aliariam à igreja de
Roma ao idealizar leis dominicais.
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O Decreto Dominical
Na
visão dos adventistas, a decadência da nação, no entanto, não se limitava à sua
inclinação católica. Antes e ao longo da Guerra Civil Americana, os adventistas
acreditavam que a manutenção da escravidão era prova de
que os EUA representavam uma “besta de dois chifres semelhantes a de um
cordeiro” (Ap 13.11). Isto é, uma brutalidade “dracônica” que se escondia por
trás da aparência de um animal inofensivo. A identificação dos EUA com uma
besta não era original dos adventistas, e já tinha sido feita antes pelos
antifederalistas Isaac Backus e John Bacon. Não por acaso, muitos
pioneiros adventistas foram abolicionistas radicais.
O
abandono da religião protestante com a ascensão católica e a atuação dracônica
dos EUA eram o palco perfeito para a atuação de uma aliança satânica,
interpretada pelos adventistas como a união de duas monstruosidades
apocalípticas: “a besta que emerge do mar” – o catolicismo – e a “besta que
emerge da terra” (Ap 13.11-18) – os EUA. Partindo de sua experiência histórica,
Ellen G. White profetizou que tal aliança seria a responsável pela imposição de
um “decreto dominical” como dia obrigatório de guarda, em um futuro próximo:
“Mostrou-se
que os EUA são o poder representado pela besta de chifres semelhantes aos do
cordeiro, e que esta profecia se cumprirá quando aquela nação impuser a
observância do domingo, que Roma alega ser um reconhecimento especial de sua
supremacia. Mas nesta homenagem ao papado os EUA não estarão sós. A influência
de Roma nos países que uma vez já lhe reconheceram o domínio, está ainda longe
de ser destruída. E a profecia prevê uma restauração de seu poder”, escreveu a
profetisa em O grande conflito. “Os dignitários da Igreja e do
Estado unir-se-ão para subornar, persuadir ou forçar todas as classes a honrar
o domingo. A falta de autoridade divina será suprida por legislação opressiva.
A corrupção política está destruindo o amor à justiça e a consideração para com
a verdade; e mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim
de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que
imponha a observância do domingo. A liberdade de consciência, obtida a tão
elevado preço de sacrifício, não mais será respeitada.”
Ao
prever a implantação de uma lei dominical para o futuro, numa aliança entre os
EUA e o papado, Ellen G. White semeia uma das principais expectativas
proféticas para a afirmação da identidade adventista: trata-se de um momento na
história em que a igreja será, finalmente, a protagonista dos últimos
acontecimentos. Todas as religiões confrontarão o debate sábado vs. domingo,
e apenas os fiéis à Lei de Deus serão conduzidos à salvação no glorioso dia do
retorno de Jesus à terra.
Mas
esse debate, para os adventistas, não será pacífico: dado o caráter brutal das
bestas, a implantação de um decreto dominical promoverá uma perseguição mortal
contra o remanescente fiel à Lei de Deus – isto é, os adventistas e quaisquer
outros que “enxergaram a verdade”. Eles vislumbram um momento em que serão
impedidos de comprar e vender, sendo obrigados a se refugiar no campo ou nas
florestas enquanto aguardam a segunda vinda do Messias.
Oficialmente,
a IASD considera-se “apolítica” ou “apartidária”, sugerindo não participar de
debates dessa natureza. Seu único âmbito de interesse político está nas
discussões em torno da liberdade religiosa para defender-se em situações em que
a legislação dificulta o cumprimento do quarto mandamento: “Lembra-te do dia de
sábado, para o santificar” (Êx 20.8). Ainda assim, ela se conduz por um
sentimento quase masoquista: impedir um evento que, no fim, será o prelúdio de
sua redenção.
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Novas expectativas
A
escolha de Robert Francis Prevost como Leão XIV não cumpre as profecias
adventistas, mas atiça até a mais tranquila de suas lombrigas. Pela primeira
vez na história, a nomeação de um papa estadunidense permite, na visão de
muitos adventistas, que ambas as bestas conspirem para o fortalecimento de seu
poder político-religioso. Infelizmente, para os adventistas, Leão XIV parece
pouco afeito à política de Donald Trump, com um histórico de postagens críticas aos seus dois
mandatos. Ele também se aproxima de Francisco em sua preocupação com a
desigualdade social, questões de migração e o destino de refugiados.
Por
outro lado, Prevost já criticou o “estilo de vida” homossexual e a “ideologia
de gênero”, pautas caras à extrema direita que vota em Trump. O nome Leão XIV
provavelmente remete ao seu antecessor mais recente, Leão XIII, que em 1891
publicou a encíclica Rerum Novarum. A carta, embora condenasse a
exploração do trabalhador, também condenava o socialismo e o anarquismo.
Para
algumas lideranças adventistas, que já abraçaram a extrema direita e reinterpretam a escatologia da denominação para demonizar
movimentos de esquerda, será um prato cheio para semear mais expectativa entre
os crentes que, a qualquer momento, abandonarão tudo para fugir às montanhas.
Em torno do novo papa, eles já descredibilizam algumas interpretações proféticas
e tentam fortalecer outras teorias, sugerindo, por exemplo, que Leão XIV tende
a suprimir a liberdade de expressão, expandir o catolicismo ou engajar-se no
ativismo ambiental – que por sua vez seria a justificativa perfeita para
a imposição de um dia especial para o “descanso da terra”, a saber, o domingo.
Figuras como Rodrigo Silva, influenciador com
maior expressividade fora da bolha adventista, embora peça cautela, abastece
sutilmente o conspiracionismo adventista e sugere que Leão XIII, provável
inspiração de Prevost, promoveu maior aproximação entre Igreja e Estado.
É
improvável que a associação apocalíptica entre Leão XIV e os EUA ganhe tração
em meio a adventistas no momento, dado que Trump é louvado pelos
influenciadores da denominação como grande defensor da liberdade religiosa. Mas
estes já movem as peças e se preparam para a chegada do próximo presidente
democrata dos EUA, que, por seu “esquerdismo”, supostamente seria muito mais
simpático a uma aliança com o Vaticano. A retórica, com graus variados de
cautela e sutileza, será a mesma: oremos pelo verdadeiro cristão Donald Trump,
ou preparemo-nos para fugir às montanhas.
¨ Ao encontro das
coisas novas do Mundo: Por Guilherme d’Oliveira Martins
A
eleição do Papa Leão XIV constitui um motivo de esperança para o mundo
contemporâneo. Natural de Chicago tem um longo percurso de missionário no Peru,
o que constitui um importante sinal no sentido da compreensão da complexidade
social e humana do mundo, numa circunstância muito difícil como aquela que
vivemos. A escolha do nome recorda-nos o fundador do que designamos como
doutrina social da Igreja. Com efeito, Leão XIII, o Papa da encíclica “Rerum
Novarum” de 15 de maio de 1891, iniciou uma nova fase na vida da Igreja,
compreendendo a sociedade em mudança. Afinal, em cada momento, somos chamados a
entender as coisas novas que a sociedade nos reserva. No final do século XIUX
era a industrialização, hoje a emergência da Inteligência artificial. Lembramo-nos
bem como o Bom Papa João XXIII dirigiu a encíclica “Pacem in Terris” a todas as
pessoas de boa vontade. A escolha agora de um desafio semelhante é, a todos os
títulos, essencial. Esta escolha merece uma atenção especial, uma vez que
significa um compromisso com os sinais dos tempos e com as pessoas concretas.
Daí a relevância da pobreza e das injustiças – a partir não de uma conceção
assistencialista ou da aceitação de uma fatalidade. Impõe-se uma ação
estruturada, solidária e sistemática, considerando a caridade como atenção aos
outros e como cuidado, numa lógica de respeito e integração de todos.
Prossegue-se, assim, o que o Papa Francisco considerou em “Frattelli Tutti”
como uma Igreja de saída, ao encontro de quem de nós precisa.
“A Paz
não pode ser uma ideia vaga, tem de ser um compromisso de entendimento de
todos. Mas não pode ser também o esquecimento das vítimas e dos efeitos
económicos e sociais dos conflitos.” Foto: Pormenor do cartaz de uma Vigília de
oração pela paz no Externato da Luz.
Na
linha da primeira intervenção sobre o respeito e a Paz, o Papa tem apelado ao
fim da violência, que ameaça a humanidade, evocando os 80 anos do fim da II
Guerra Mundial e repetindo os alertas de Francisco sobre um novo conflito
global que se desenvolve em fragmentos. “A imensa tragédia da II Guerra Mundial
terminou há 80 anos, a 8 de maio, depois de causar 60 milhões de mortos. No
cenário dramático atual de uma III Guerra Mundial em pedaços, como afirmou
várias vezes o Papa Francisco, dirijo-me também eu aos grandes do mundo,
repetindo o apelo sempre atual: nunca mais a guerra!”, declarou, desde a
varanda central da Basílica de São Pedro. De facto, a Paz não pode ser uma
ideia vaga, tem de ser um compromisso de entendimento de todos. Mas não pode
ser também o esquecimento das vítimas e dos efeitos económicos e sociais dos
conflitos. Daí a importância da coerência entre pensamento e ação, tendo o Papa
expressamente referido os casos trágicos da Ucrânia, Faixa de Gaza, Índia e
Paquistão. A Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II é,
assim, o grande referencial do tempo presente que a referência a Leão XIII
torna mais evidente. Para quem pretenda deixar na penumbra os dramas
humanos ou queira fazer esquecer o que significou a ida do Papa Francisco a
Lampedusa, eis-nos perante uma afirmação inequívoca. E se lembramos esse
momento fundamental, recordamos ainda o encontro como o Grande Imã de Al Azhar,
Ahmed Al-Tayeb, no Abu Dhabi, em nome do diálogo religioso e de uma
Fraternidade Universal. Do mesmo modo, temos o apelo ingente para uma Ecologia
Integral, que se encontra plasmado num texto tornado exemplar e referencial
como a encíclica “Laudato Si’”. Compreender os sinais dos tempos, é também
entender a Sinodalidade da Igreja e uma autêntica partilha de responsabilidades
por todos.
“Trago
no meu coração os sofrimentos do amado povo ucraniano” – afirmou ainda o Papa.
“Faça-se tudo o que for possível para alcançar o mais rapidamente possível uma
paz autêntica, justa e duradoura. Que todos os prisioneiros sejam libertados e
que as crianças possam regressar às suas famílias”. Infelizmente esta tem sido
uma voz a clamar no deserto. Importa que seja de facto ouvida. Como diz a
exortação apostólica “Evangelli Gaudium”: “A Igreja, que é discípula
missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra
revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos
ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no
também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João
Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter
indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de
Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta
das quais se indaga e reflete com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo
Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma
doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma
dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspetos da riqueza inesgotável do Evangelho.
(EG.40). Sinodalidade e pluralismo estão na ordem do dia. Afinal, a partilha de
responsabilidades, a colegialidade, a procura de uma participação ampla serão o
único modo de podermos avançar, com a audácia e a generosidade que tantas vezes
parece faltar. Perante um horizonte estimulante, é tempo de avançar, com
serenidade, gradualismo e determinação.
Fonte:
Por André Kanasiro e Felipe Carmo, em Opera Mundi

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