quinta-feira, 15 de maio de 2025

Fim do mundo: por que papa americano causa comoção entre adventistas?

Nenhuma outra religião sentiu um frio na espinha tão intenso com a eleição de Robert Francis Prevost como papa Leão XIV quanto os adventistas. Para os membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), o período de sucessão papal sempre é um momento de apreensão, já que, na cronologia profética dessa denominação, cada novo papa católico pode instaurar o prelúdio para o fim do mundo. Essa comoção não ocorreu com João Paulo II, com Bento VI e tampouco com Francisco. No entanto, a escolha de Robert Francis Prevost, como Leão XIV, deixou os adventistas do mundo inteiro em polvorosa. O motivo: Leão XIV é o primeiro papa estadunidense na história da Igreja Católica.

·        Sábado vs. Domingo

A IASD é uma denominação cristã protestante nascida nos EUA no século 19, entre pequenos proprietários brancos de zonas rurais em rápida urbanização, como uma ramificação dos milleritas, seguidores de William Miller, que a partir de interpretações das profecias do livro de Daniel, assumiam que Jesus voltaria à Terra em 22 de outubro de 1844. Após este evento, consolidado no imaginário adventista como “O Grande Desapontamento”, parte dos milleritas se reorganizou sob a liderança de James White e sua esposa, a profetisa Ellen G. White, cujos escritos formaram o alicerce da teologia adventista.

Entre as crenças que mais distinguem o adventismo de outras denominações protestantes está a de que o sábado é o verdadeiro dia de guarda, e não o domingo. Recorrendo aos Dez Mandamentos (Êx 20.8-11), nos primórdios de sua formação os adventistas já reservavam o sábado para o descanso do trabalho e atividades religiosas, denunciando a santificação do domingo como uma subversão da Lei Divina empreendida pela Igreja Católica Romana, que, sorrateiramente, teria influenciado outras denominações protestantes, que também guardam o domingo. 

O embate doutrinário sábado vs. domingo era, no entanto, apenas uma faceta do sentimento anticatólico adventista, que dialogava com a realidade dos EUA no século 19. O adventismo nasceu num momento de intensa imigração no país, especialmente a de católicos irlandeses. O anticatolicismo adventista era algo compartilhado pelo estadunidense conservador médio, que via sua ordem social ameaçada por uma cultura católica distinta dos “princípios da Reforma Protestante”, afirmados como fundamento da própria nação americana. O catolicismo, embora também pregasse a guarda do domingo, era menos rigoroso quanto ao que era permitido fazer no dia sagrado, visto muito mais como um dia de reunião da comunidade religiosa do que como um momento para abstenção de certas atividades, e não proibia o consumo de álcool, ao contrário do protestantismo puritano hegemônico nos EUA.

Esta era uma polêmica recorrente no debate público estadunidense da época, já que políticos puritanos e conservadores, motivados em parte por sua aversão aos católicos e irlandeses, chegaram a propor leis para proibir o trabalho aos domingos, declará-lo como dia oficial de guarda, entre outras propostas de união entre Igreja e Estado. Projetos do tipo já eram discutidos na década de 1830 como uma forma de preservar o caráter dos EUA como nação protestante. O projeto de lei dominical de Henry Blair, em 1888, por exemplo, deixou uma marca profunda no imaginário coletivo adventista, que quase se viu proibido de obedecer à doutrina da guarda do sábado por conta de uma imposição legal em desrespeito à liberdade religiosa. 

Foi a partir dessa experiência histórica que as declarações mais famosas de Ellen G. White sobre um “decreto dominical”, que obrigaria a guarda dos domingos, foram elaboradas. Elas carregavam, ao mesmo tempo, um sentimento anticatólico e de desconfiança da própria nação e dos protestantes, que se aliariam à igreja de Roma ao idealizar leis dominicais. 

·        O Decreto Dominical

Na visão dos adventistas, a decadência da nação, no entanto, não se limitava à sua inclinação católica. Antes e ao longo da Guerra Civil Americana, os adventistas acreditavam que a manutenção da escravidão era prova de que os EUA representavam uma “besta de dois chifres semelhantes a de um cordeiro” (Ap 13.11). Isto é, uma brutalidade “dracônica” que se escondia por trás da aparência de um animal inofensivo. A identificação dos EUA com uma besta não era original dos adventistas, e já tinha sido feita antes pelos antifederalistas Isaac Backus e John Bacon. Não por acaso, muitos pioneiros adventistas foram abolicionistas radicais.

O abandono da religião protestante com a ascensão católica e a atuação dracônica dos EUA eram o palco perfeito para a atuação de uma aliança satânica, interpretada pelos adventistas como a união de duas monstruosidades apocalípticas: “a besta que emerge do mar” – o catolicismo – e a “besta que emerge da terra” (Ap 13.11-18) – os EUA. Partindo de sua experiência histórica, Ellen G. White profetizou que tal aliança seria a responsável pela imposição de um “decreto dominical” como dia obrigatório de guarda, em um futuro próximo:

“Mostrou-se que os EUA são o poder representado pela besta de chifres semelhantes aos do cordeiro, e que esta profecia se cumprirá quando aquela nação impuser a observância do domingo, que Roma alega ser um reconhecimento especial de sua supremacia. Mas nesta homenagem ao papado os EUA não estarão sós. A influência de Roma nos países que uma vez já lhe reconheceram o domínio, está ainda longe de ser destruída. E a profecia prevê uma restauração de seu poder”, escreveu a profetisa em O grande conflito. “Os dignitários da Igreja e do Estado unir-se-ão para subornar, persuadir ou forçar todas as classes a honrar o domingo. A falta de autoridade divina será suprida por legislação opressiva. A corrupção política está destruindo o amor à justiça e a consideração para com a verdade; e mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo. A liberdade de consciência, obtida a tão elevado preço de sacrifício, não mais será respeitada.”

Ao prever a implantação de uma lei dominical para o futuro, numa aliança entre os EUA e o papado, Ellen G. White semeia uma das principais expectativas proféticas para a afirmação da identidade adventista: trata-se de um momento na história em que a igreja será, finalmente, a protagonista dos últimos acontecimentos. Todas as religiões confrontarão o debate sábado vs. domingo, e apenas os fiéis à Lei de Deus serão conduzidos à salvação no glorioso dia do retorno de Jesus à terra.

Mas esse debate, para os adventistas, não será pacífico: dado o caráter brutal das bestas, a implantação de um decreto dominical promoverá uma perseguição mortal contra o remanescente fiel à Lei de Deus – isto é, os adventistas e quaisquer outros que “enxergaram a verdade”. Eles vislumbram um momento em que serão impedidos de comprar e vender, sendo obrigados a se refugiar no campo ou nas florestas enquanto aguardam a segunda vinda do Messias. 

Oficialmente, a IASD considera-se “apolítica” ou “apartidária”, sugerindo não participar de debates dessa natureza. Seu único âmbito de interesse político está nas discussões em torno da liberdade religiosa para defender-se em situações em que a legislação dificulta o cumprimento do quarto mandamento: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar” (Êx 20.8). Ainda assim, ela se conduz por um sentimento quase masoquista: impedir um evento que, no fim, será o prelúdio de sua redenção. 

·        Novas expectativas 

A escolha de Robert Francis Prevost como Leão XIV não cumpre as profecias adventistas, mas atiça até a mais tranquila de suas lombrigas. Pela primeira vez na história, a nomeação de um papa estadunidense permite, na visão de muitos adventistas, que ambas as bestas conspirem para o fortalecimento de seu poder político-religioso. Infelizmente, para os adventistas, Leão XIV parece pouco afeito à política de Donald Trump, com um histórico de postagens críticas aos seus dois mandatos. Ele também se aproxima de Francisco em sua preocupação com a desigualdade social, questões de migração e o destino de refugiados. 

Por outro lado, Prevost já criticou o “estilo de vida” homossexual e a “ideologia de gênero”, pautas caras à extrema direita que vota em Trump. O nome Leão XIV provavelmente remete ao seu antecessor mais recente, Leão XIII, que em 1891 publicou a encíclica Rerum Novarum. A carta, embora condenasse a exploração do trabalhador, também condenava o socialismo e o anarquismo.

Para algumas lideranças adventistas, que já abraçaram a extrema direita e reinterpretam a escatologia da denominação para demonizar movimentos de esquerda, será um prato cheio para semear mais expectativa entre os crentes que, a qualquer momento, abandonarão tudo para fugir às montanhas. Em torno do novo papa, eles já descredibilizam algumas interpretações proféticas e tentam fortalecer outras teorias, sugerindo, por exemplo, que Leão XIV tende a suprimir a liberdade de expressão, expandir o catolicismo ou engajar-se no ativismo ambiental  – que por sua vez seria a justificativa perfeita para a imposição de um dia especial para o “descanso da terra”, a saber, o domingo. Figuras como Rodrigo Silva, influenciador com maior expressividade fora da bolha adventista, embora peça cautela, abastece sutilmente o conspiracionismo adventista e sugere que Leão XIII, provável inspiração de Prevost, promoveu maior aproximação entre Igreja e Estado. 

É improvável que a associação apocalíptica entre Leão XIV e os EUA ganhe tração em meio a adventistas no momento, dado que Trump é louvado pelos influenciadores da denominação como grande defensor da liberdade religiosa. Mas estes já movem as peças e se preparam para a chegada do próximo presidente democrata dos EUA, que, por seu “esquerdismo”, supostamente seria muito mais simpático a uma aliança com o Vaticano. A retórica, com graus variados de cautela e sutileza, será a mesma: oremos pelo verdadeiro cristão Donald Trump, ou preparemo-nos para fugir às montanhas.

¨      Ao encontro das coisas novas do Mundo: Por Guilherme d’Oliveira Martins 

A eleição do Papa Leão XIV constitui um motivo de esperança para o mundo contemporâneo. Natural de Chicago tem um longo percurso de missionário no Peru, o que constitui um importante sinal no sentido da compreensão da complexidade social e humana do mundo, numa circunstância muito difícil como aquela que vivemos. A escolha do nome recorda-nos o fundador do que designamos como doutrina social da Igreja. Com efeito, Leão XIII, o Papa da encíclica “Rerum Novarum” de 15 de maio de 1891, iniciou uma nova fase na vida da Igreja, compreendendo a sociedade em mudança. Afinal, em cada momento, somos chamados a entender as coisas novas que a sociedade nos reserva. No final do século XIUX era a industrialização, hoje a emergência da Inteligência artificial. Lembramo-nos bem como o Bom Papa João XXIII dirigiu a encíclica “Pacem in Terris” a todas as pessoas de boa vontade. A escolha agora de um desafio semelhante é, a todos os títulos, essencial. Esta escolha merece uma atenção especial, uma vez que significa um compromisso com os sinais dos tempos e com as pessoas concretas. Daí a relevância da pobreza e das injustiças – a partir não de uma conceção assistencialista ou da aceitação de uma fatalidade. Impõe-se uma ação estruturada, solidária e sistemática, considerando a caridade como atenção aos outros e como cuidado, numa lógica de respeito e integração de todos. Prossegue-se, assim, o que o Papa Francisco considerou em “Frattelli Tutti” como uma Igreja de saída, ao encontro de quem de nós precisa.

“A Paz não pode ser uma ideia vaga, tem de ser um compromisso de entendimento de todos. Mas não pode ser também o esquecimento das vítimas e dos efeitos económicos e sociais dos conflitos.” Foto: Pormenor do cartaz de uma Vigília de oração pela paz no Externato da Luz.

Na linha da primeira intervenção sobre o respeito e a Paz, o Papa tem apelado ao fim da violência, que ameaça a humanidade, evocando os 80 anos do fim da II Guerra Mundial e repetindo os alertas de Francisco sobre um novo conflito global que se desenvolve em fragmentos. “A imensa tragédia da II Guerra Mundial terminou há 80 anos, a 8 de maio, depois de causar 60 milhões de mortos. No cenário dramático atual de uma III Guerra Mundial em pedaços, como afirmou várias vezes o Papa Francisco, dirijo-me também eu aos grandes do mundo, repetindo o apelo sempre atual: nunca mais a guerra!”, declarou, desde a varanda central da Basílica de São Pedro. De facto, a Paz não pode ser uma ideia vaga, tem de ser um compromisso de entendimento de todos. Mas não pode ser também o esquecimento das vítimas e dos efeitos económicos e sociais dos conflitos. Daí a importância da coerência entre pensamento e ação, tendo o Papa expressamente referido os casos trágicos da Ucrânia, Faixa de Gaza, Índia e Paquistão. A Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II é, assim, o grande referencial do tempo presente que a referência a Leão XIII torna mais evidente.  Para quem pretenda deixar na penumbra os dramas humanos ou queira fazer esquecer o que significou a ida do Papa Francisco a Lampedusa, eis-nos perante uma afirmação inequívoca. E se lembramos esse momento fundamental, recordamos ainda o encontro como o Grande Imã de Al Azhar, Ahmed Al-Tayeb, no Abu Dhabi, em nome do diálogo religioso e de uma Fraternidade Universal. Do mesmo modo, temos o apelo ingente para uma Ecologia Integral, que se encontra plasmado num texto tornado exemplar e referencial como a encíclica “Laudato Si’”. Compreender os sinais dos tempos, é também entender a Sinodalidade da Igreja e uma autêntica partilha de responsabilidades por todos.

“Trago no meu coração os sofrimentos do amado povo ucraniano” – afirmou ainda o Papa. “Faça-se tudo o que for possível para alcançar o mais rapidamente possível uma paz autêntica, justa e duradoura. Que todos os prisioneiros sejam libertados e que as crianças possam regressar às suas famílias”. Infelizmente esta tem sido uma voz a clamar no deserto. Importa que seja de facto ouvida. Como diz a exortação apostólica “Evangelli Gaudium”: “A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente, fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se indaga e reflete com grande liberdade. As diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspetos da riqueza inesgotável do Evangelho. (EG.40). Sinodalidade e pluralismo estão na ordem do dia. Afinal, a partilha de responsabilidades, a colegialidade, a procura de uma participação ampla serão o único modo de podermos avançar, com a audácia e a generosidade que tantas vezes parece faltar. Perante um horizonte estimulante, é tempo de avançar, com serenidade, gradualismo e determinação.

 

Fonte: Por André Kanasiro e Felipe Carmo, em Opera Mundi

 

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