Samuel
Hanan: Vendem-se ilusões no Ministério
No
final de março, a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, deu uma declaração
contundente que obriga a análise profunda, tal o contraste com o sentimento do
povo nas ruas. Afirmou a ministra: “Em toda a minha vida pública, mais de 25
anos de mandatos eletivos, nunca vi números tão positivos na economia do país,
sobretudo da macroeconomia”. E continuou: ”Não me lembro de momento econômico
tão bom e com números tão positivos obtidos rapidamente”.
A
declaração aconteceu no programa Bom Dia Ministra, da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC) e transmitido pelo canal gov, durante o qual a ministra
destacou o maior número de pessoas com Carteira de Trabalho desde 2013 (sem,
contudo, entrar no mérito da precariedade dos empregos), a política de
valorização do salário-mínimo, e o crescimento econômico, tão expressivo por
dois anos consecutivos e acima de 3,0% ao ano (2023 – governo Lula = 2,9% e
2024 = 3,4%), significando mais renda. É preciso destacar que, em 2022,
portanto no governo anterior, o crescimento do PIB foi de 3,00%. Enalteceu
também o governo com projeto que visa à melhoria da produtividade e da
competitividade, importante no mundo atual.
Simone
Tebet está rezando a cartilha escrita por Sidônio Pereira, o novo ministro da
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, para quem as
ações do governo precisam ser mais defendidas pelo primeiro escalão. A questão
é que tanto entusiasmo com resultados econômicos e sociais tão expressivos se
contrapõe à queda da popularidade e do nível de aprovação do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e do governo do qual a ministra é expoente, conforme
recentes pesquisas.
A
análise de vários indicadores talvez dê as respostas para o nível de aprovação
tão baixo e a falta de identificação com qualquer parâmetro que justifique
comemoração, exceto o crescimento do PIB, mas nada excepcional, pois no último
ano do governo anterior já foi de 3,0% e com tendência de crescimento.
A
inflação é outro exemplo. Há dois anos consecutivos (2023 e 2024) a taxa de
inflação anual, medida pelo IPCA, supera o teto da meta, compromisso do
governo. A expectativa não é melhor. O terceiro ano do atual governo também
sinaliza para o descumprimento da meta, e já ultrapassando 5% em 2025.
Como a
inflação é perda do poder de compra da moeda, com reflexos nos preços dos
alimentos em taxa de 7,42% (2024), superior à da média (4,82%), pode estar aí o
início do descontentamento popular, diferentemente da celebração da ministra.
Além disso, como inflação corrói a renda, sobretudo dos assalariados, a falta
de correção das tabelas do imposto de renda ajuda a alimentar esse sentimento
dos cidadãos.
Outra
questão importante nesse cenário diz respeito à taxa de juros. A inflação acima
da meta por vários anos consecutivos tem levado o mercado a entender como
descontrole ou falta de interesse do governo em controlar e cortar despesas,
medida que ajudaria o Banco Central a reduzir os juros, trazendo a inflação
para mais perto da meta. Esse comportamento vem provocando danos de grande
porte na economia do país e das pessoas físicas de todas as classes sociais. O
endividamento ficou muito mais caro, inclusive para investimentos do setor
privado.
Os
efeitos são extremamente danosos. Hoje, a taxa Selic de 14,25% .a.a., com viés
de alta para 14,75%, ou mesmo de 15% ao ano, reduz a capacidade de
investimentos do governo e, em consequência, afeta a qualidade dos serviços
essenciais devolvidos à população, como saúde, educação, segurança e habitação.
Para
maior entendimento do dano já causado pelos juros altos, convém lembrar que em
19/06/2024 a taxa definida pelo Copom era de 10,50% e agora, 10 meses depois, a
Selic está 3,75 pontos percentuais acima. Isso significa que, para a dívida
pública federal de R$ 7,50 trilhões, há o comprometimento adicional de R$ 280
bilhões/ano. Ou seja, hoje a elevação dos juros adiciona mensalmente R$ 25
bilhões ao valor já comprometido com o pagamento da dívida.
O
estrago se estende ainda para as pessoas físicas, sobretudo das classes C e D,
que sonham com a compra do primeiro imóvel. Em 2023, a taxa de financiamento de
imóvel para pessoas de baixa renda, praticada pela Caixa Econômica Federal, era
de R$ 8,90%, mais TR, e hoje já é de 11,29% mais TR. Fica proibitido para os
assalariados comprometerem e assumirem ônus de tal magnitude. Vale lembrar,
ainda, que a inflação está alta, mas mesmo assim, abaixo de 5% ao ano, e que os
grandes bancos privados já estão cobrando juros de 13,80% a 14,20% ao ano.
A carga
tributária praticada pelo governo é outro problema grave. Em 2024, atingiu o
correspondente a 32,3% do PIB, uma das mais altas cargas dos ultimos 15 anos.
Não há dúvida de que os sucessivos aumentos dos tributos desagradam a todos os
contribuintes, principalmente porque a população não recebe a contrapartida em
serviços públicos de qualidade.
O
reajuste do salário-mínimo, anunciado como parte do “pacote de bondades” do
governo, empenhado em melhorar sua imagem, esconde uma realidade bem diferente.
É preciso lembrar que a alteração da lei que estabelece a nova fórmula de
cálculo do reajuste anual do salário-mínimo sancionado em 27/12/2024 assegura
reajuste real acima da inflação, com um mínimo de 0,6% e limita-o a 2,5%,
condicionado ao cumprimento de metas do governo federal. Tudo para vigorar por
cinco anos, entre 01/01/2025 e 2029.
A
propaganda oficial busca demonstrando o cuidado do governo em proteger o
trabalhador, garantindo o mínimo de 0,6% de reajuste. A verdade é outra, porque
na realidade limitou a 2,5% e assim mesmo, sabendo-se que dos cinco anos
previstos na lei (2025 a 2029), nos dois primeiros anos (2025 e 2026), com os
parâmetros já definidos e conhecidos, o assalariado já sairá perdendo, pois em
2025 o ganho real pela fórmula anterior seria de 2,9% e não 2,5%, ou seja, há
uma perda de 0,4 ponto percentual. Em 2026, a perda será ainda maior, pois o
reajuste deveria ser de 3,4%, não os estimados 2,5%, e mesmo assim, sobre a
base de 2025, já subtraída em 0,4 p.p.
Com a
nova sistemática, em 2025 a perda será de R$ 5,27/mês porque o salário-mínimo é
de R$ 1.518,00, quando deveria ser de R$ 1.523,27. No ano, o trabalhador
receberá R$ 68,51 a menos. Em 2026, mais prejuízo. O salário que seria de R$
1.651,29 pela base de cálculo antiga, será de R$ 1.632,85, isto é, R$ 18,44 a
menos por mês, ou menos R$ 239,72 no ano.
Por
conta disso, para 2027 é possível antever nova perda, ainda a ser quantificada,
mas seguramente os aposentados, pensionistas, beneficiários do BPC (Benefício
de Prestação Continuada) e os trabalhadores do setor privado que ganham apenas
um salário-mínimo mensal verão suas mesas esvaziadas de muitos quilos de arroz
e feijão. Fruto da desnecessária restrição limitadora do reajuste do
salário-mínimo. Mais de 33% da população sofrerá com essa alteração da
legislação.
Nem o
Bolsa Família vai escapar. O maior programa social do governo, com mais de 20
milhões de famílias beneficiárias, também foi atingido, pois seu valor não foi
corrigido pela inflação de 2024, de 4,84%. Sem esse índice, as perdas para os
beneficiários em 2025 somam R$ 33,12/mês, ou R$ 397,42 no ano.
Tudo
isso mostra que o país real, o Brasil dos trabalhadores, não é e nem pode ser a
nação celebrada pela ministra Tebet. É triste saber que existem dois Brasis. Um
fantástico e pouco noticiado - o dos setores de óleo e gás, agrobusiness -
alimentos e mineral que, juntos respondem por cerca de 43% a 45% do PIB, 70%
das exportações e mais de 200% do saldo da balança comercial brasileira. Outro,
vergonhoso, escancarado pelos baixíssimos indicadores sociais como Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), coeficiente Gini (Educação), Índice de Retorno de
Bem Estar Social (IRBES), Programa Internacional de Avaliação de Estudantes
(Pisa), e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
todos em queda livre ou estagnados há mais de uma década.
E como
se não bastasse, ainda assombra o país o fantasma da corrupção não combatida
com a necessária prioridade, a ponto de analistas internacionais encararem essa
leniência como tolerância à impunidade.
Sigmund
Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, é autor de um pensamento que cabe bem
nessa ocasião: “As massas nunca tiveram sede de verdade, elas querem ilusão e
não vivem sem elas”. A ministra Simone Tebet está contribuindo para confirmar
essa máxima.
• ‘A Inflação Brasileira’, de Ignácio
Rangel, 60 anos depois. Por Nilmar Rippel, Bruno Saggiorato e Marlon Clovis
Medeiros
Se a
inflação brasileira dos últimos anos desafia explicações superficiais, uma obra
publicada há mais de 60 anos pode ajudar a compreendê-la sob nova luz. Em A
Inflação Brasileira (1963), o economista Ignácio Rangel defendia que a inflação
não é uma causa em si, mas um sintoma de distorções profundas na estrutura
econômica.
Rangel,
que atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e foi assessor do
governo Vargas, propôs uma leitura inovadora para seu tempo — e ainda
provocadora para os dias de hoje. Em vez de culpar simplesmente a emissão de
moeda ou gargalos produtivos, ele via a inflação como um fenômeno dialético,
relacionado à estrutura social e econômica do país: concentração de renda,
rigidez da estrutura agrária, poder de corporações oligopolistas e
oligopsônicas a própria lógica do processo de industrialização.
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Um debate que atravessa décadas
Nos
anos 1950 e 60, o debate era intenso entre monetaristas, que apontavam a
expansão da base monetária como causa da inflação, e estruturalistas, que
falavam em gargalos de oferta. Rangel, porém, criticava ambos. Para ele,
tratava-se de “ilusões analíticas”: a inflação, dizia, não nascia do excesso de
moeda nem apenas de problemas de oferta. Era consequência de desequilíbrios
mais profundos, como a concentração de poder econômico e a manipulação de
preços por grandes grupos empresariais.
Rangel
também argumentava que o Estado tinha papel decisivo no enfrentamento do
problema. A solução não estaria em medidas recessivas — como o aumento da taxa
de juros —, mas em políticas de crescimento e reorganização produtiva.
Investimentos públicos bem coordenados, dizia ele, poderiam restaurar o
equilíbrio e destravar o desenvolvimento.
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De ontem para hoje: o que mudou e o que permaneceu
Entre
2013 e 2023, o Brasil enfrentou dois períodos críticos. O primeiro, entre 2013
e 2019, foi marcado por instabilidade política, recessão econômica, a Operação
Lava Jato e o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. O segundo, entre 2020 e
2023, envolveu a pandemia de Covid-19, os impactos da guerra na Ucrânia e a
inoperância e entreguismo do governo Jair Bolsonaro. Nesse intervalo, a
inflação voltou a ganhar destaque, mas com características próprias em relação
ao passado. Ademais, ela não foi causada por excesso de demanda, como sustentam
economistas ortodoxos. Foi puxada por choques de oferta globais, pela
concentração de renda e pelo controle de preços por grandes corporações —
elementos que ecoam as análises de Rangel.
Além
disso, a política de juros altos, amplamente utilizada como remédio contra a
inflação, mostrou-se ineficaz. Entre 2013 e 2015, por exemplo, o aumento da
taxa Selic não impediu a elevação dos preços. Isso revela a limitação de se
tratar a inflação apenas como um fenômeno monetário, ignorando suas raízes
estruturais.
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O impacto da financeirização
Uma das
principais transformações desde os tempos de Rangel foi a financeirização da
economia. O capital passou a buscar retorno não mais na produção, mas nos
mercados financeiros. Isso mudou a própria dinâmica inflacionária. Enquanto na
época de Rangel a inflação podia atuar como mecanismo de defesa da produção —
forçando consumo e evitando paralisias —, hoje ela é cada vez mais dissociada
da atividade produtiva.
Essa
financeirização também contribui para a desindustrialização do país, para a
manutenção de uma estrutura econômica dependente e para o desestímulo ao
investimento produtivo. E, mais uma vez, a obra de Rangel oferece ferramentas
para entender o que está por trás desses processos.
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Inflação como sintoma, não como doença
Ao fim
da releitura, as ideias centrais de Rangel mantêm notável atualidade. A
inflação segue sendo sintoma — e não causa — de distorções estruturais.
Persistem também fatores como a alta taxa de exploração do trabalho, a
concentração de renda e o poder de grandes corporações na formação de preços.
Em setores estratégicos, como o de alimentos, essas empresas não apenas
administram, mas determinam os preços.
O que
mudou de forma marcante foi o papel da inflação no sistema econômico. Se antes
ela cumpria uma função de proteção da produção, agora, em um sistema dominado
pela lógica financeira, ela representa apenas instabilidade. E as políticas
centradas apenas em juros são insuficientes — e, muitas vezes,
contraproducentes.
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Diante desse quadro, qual a alternativa?
Uma
estratégia nacional de desenvolvimento que combine planejamento, investimento
público e políticas estruturais. Uma receita relativamente antiga, mas que
talvez ainda seja a melhor resposta para um problema tão atual.
Fonte:
Vervi Assessoria/Jornal GGN

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