Exportação,
mão de obra, mercado interno: guerra fiscal entre EUA e China favorece
indústria de calçados do Brasil?
A
guerra comercial entre Estados Unidos e China, iniciada com a volta de Donald
Trump à Casa Branca, criou perspectivas para as indústrias brasileiras que
exportam calçados, mas também trouxe dúvidas e desafios para o setor.
Em
tradicionais polos produtores como Franca (SP), já chamada de
capital do calçado masculino, a desvalorização da moeda brasileira e a
ampliação de taxas para produtos asiáticos ajudaram a elevar em 14% as
exportações do primeiro trimestre deste ano, com um faturamento local de US$ 64
milhões, e uma expectativa de ampliar a atuação no mercado norte-americano.
Em
contrapartida, o aumento das importações sinaliza para o risco de a própria
China ganhar mais espaço no mercado interno.
"O
que as estatísticas nos mostram e as vendas nos informam é que vamos ter um
aumento com relação ao ano passado nas exportações. (...) A tendência agora é
aumentar as exportações, ou seja, com essa situação do tarifaço, a tendência é
que a China venha pra cá e vai abrir uma janela pra nós nos EUA e pode aumentar
as exportações para aquele país", afirma José Carlos Brigagão do Couto,
presidente do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca (Sindifranca).
🔎Com a guerra
tarifária, a taxação sobre o calçado brasileiro nos Estados Unidos subiu de
17,3% para 27,3%, segundo dados da inteligência de mercado da Associação
Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados). Por outro lado, sapatos
fabricados na China, Vietnã e Indonésia - que juntos concentram 71% do mercado
de importação em território norte-americano - tiveram a mesma taxação de 17,3%
elevada para valores cima dos 49%.
🔎Em outras palavras,
mesmo sendo alvo de um aumento na taxação, o calçado brasileiro ficou mais
competitivo na perspectiva da importação nos EUA, onde atualmente o Brasil tem
uma participação abaixo de 1%.
·
Oportunidade:
explorar a parcela chinesa no mercado americano
Segundo
os representantes do setor, a mudança nos padrões de taxação internacional
tende a dificultar a entrada de calçados chineses nos EUA, ao mesmo tempo
em que abre espaço para os produtos brasileiros captarem parte dessa demanda.
Nesse
contexto, calçadistas estão otimistas com os primeiros resultados de 2025 e
projetam uma melhora nos próximos meses. Segundo a Abicalçados, no
primeiro bimestre do ano, as indústrias brasileiras exportaram 1,93 milhões de
pares para os Estados Unidos, o que representa uma alta de 0,6% na
comparação com o mesmo período do ano passado. O faturamento nesse período foi
de US$ 37,17 milhões.
"Está
tendo venda de 15% a 20% maior que ano passado. É um ano com grandes
expectativas. O primeiro semestre tende a ser um pouco mais calmo, e a
expectativa de aumentar até 30% agora no segundo semestre", afirma o
empresário Rafael Luís Coelho.
·
Desafios: demanda além da capacidade e 'invasão' chinesa
Em
contrapartida, os calçadistas acreditam que polos como o de Franca não têm
condições de dar conta de toda a demanda de exportação aberta pelo
encarecimento dos produtos chineses nos EUA.
Isso
porque o setor esbarra em questões como a baixa disponibilidade de mão de
obra e não se preparou, ao longo dos últimos anos, para se expandir a tal
ponto.
"Não
conseguimos abastecer em nível de indústria, de mão de obra, tem um problema na
cadeia de suprimentos também, que não se deve conseguir manter esse
fornecimento e todo atendimento que seria necessário", analisa a
empresária Karina Ferracioli.
Em
Franca , por exemplo, a capacidade produtiva já chegou a contar com mais
de 30 mil pessoas em 2013, mas hoje não passa de 14 mil funcionários, segundo
Brigagão.
"Vamos
imaginar que um grupo de empresas resolve se unir pra poder atender um
determinado volume de exportação. Primeiro que essas empresas têm que ter
histórico, tem que ter tecnologia pra exportar e não é qualquer empresa que tem
condições de exportar. Vamos imaginar que essas empresas tenham condições de
exportar, mas vão encontrar uma situação difícil que é mão de obra pra suprir
essa necessidade", analisa o presidente do Sindifranca.
Além
dessas questões estruturais, a reconfiguração tarifária acende um alerta
para o mercado interno brasileiro, que pode ser ocupado por mais calçados
chineses, mesmo com adoção de medidas protecionistas, como a taxa antidumping,
que evita que um país exporte produtor abaixo do preço de mercado.
Triangulações
com outros países da Ásia nas exportações, no entanto, podem driblar essas
barreiras e prejudicar os fabricantes brasileiros. Segundo a Abicalçados,
somente de China, Indonésia e Vietnã - que correspondem a 80% das importações
do segmento - , o Brasil importou 6,6 milhões de pares entre janeiro e
fevereiro deste ano, o que representou uma movimentação superior a US$ 80,6
milhões.
Mesmo
com uma baixa da ordem de 3% nas importações da China, os outros dois países
asiáticos ganharam espaço tanto em volume de produtos (alta de até 47%) quanto
em recursos financeiros arrecadados (de até 37%).
"Temos
o antidumping contra a China e isso tem segurado um pouco a entrada de calçados
chineses no Brasil, mas o governo brasileiro nos negou o antidumpig contra
Indonésia e Vietnã. (...) Toda a nossa produção do Brasil, 85%, é destinada ao
mercado interno, o restante é exportado para vários países, entre eles os EUA.
Se entrar uma grande quantidade de calçados chineses aqui, vamos perder parte
desse mercado interno. As exportações que poderiam se abrir para nós nos EUA
não vão compensar."
·
Estratégias: contatos, vendas online e valor agregado
Com
cenário favorável ou não, os calçadistas adotam estratégias, seja para
consolidar as vendas no mercado interno, seja para expandir mercados no
exterior. Karina Ferracioli descreve, por exemplo, a importância
da participação em feiras internacionais de moda ou mesmo grandes
eventos do setor realizados no Brasil, com a participação de importadores
estrangeiros.
A demonstração
da qualidade dos produtos e a abertura de novos contatos é um trabalho,
segundo ela, que pode gerar resultados a médio e longo prazo com contratos na
Europa, EUA e Oriente Médio.
"Viajamos
nos últimos anos, 2023 e 2024, e fomos para a Europa. É um investimento. A
fábrica sonhou com esse projeto e viemos nos preparando em termos de produto e
tudo mais. (...) Fizemos muitos contatos, muitos amigos, muitos lojistas
distribuidores, e foi um grande plantio que a gente está colhendo resultados
até hoje desses contatos", diz.
A diversificação
dos canais de venda também favorece os negócios. No caso da empresa de
Rafael Luiz Coelho, o grande diferencial foi a aposta no comércio online,
associado à agilidade nas entregas.
"Hoje
a gente fabrica e entrega para o Brasil inteiro, muito prático e seguro. A
gente tem alguns meios, tem canais, tanto no marketplace quanto em site
próprio, que traz mais segurança para o cliente. (...) Também o que ajuda muito
é a velocidade de entrega. Aqui a gente tem a disponibilidade de estar enviando
hoje, em alguns meios de entrega o cliente pode receber amanhã ou dentro de uma
semana para todo o Brasil. Isso é uma forma de fortalecer o nosso mercado e
brigar diretamente com essas importações."
A
aposta no alto valor agregado dos sapatos brasileiros também torna-se
relevante nesse cenário de indefinições. "Eu valorizo o feito artesanal
aqui, a gente valoriza a nossa fabricação, valoriza que é um produto
brasileiro, um produto nacional."
¨
Entenda o que é a Nova Rota da Seda e por que o governo
brasileiro evita aderir formalmente ao projeto
A Nova
Rota da Seda foi lançada pela China em 2013 com o objetivo de expandir sua
influência global por meio de investimentos em infraestrutura, comércio e
conectividade em dezenas de países.
Até
2024, mais de 100 nações já haviam aderido ao projeto, que movimentou mais
de um trilhão de dólares em investimentos.
Apesar
da relevância econômica da China como principal parceiro comercial do
Brasil, o governo brasileiro tem evitado uma adesão formal à iniciativa,
chamada oficialmente de “Cinturão e Rota”.
Em
entrevista na China durante viagem do presidente Lula ao país
nesta semana,
o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT), negou que o Brasil “entrará” na
iniciativa. O petista afirmou que a ideia do Brasil é encontrar “sinergia” com
a estratégia de investimentos do país asiático.
“A
denominação do Cinturão e Rota para a China é a mesma denominação do PAC para
nós, uma estratégia governamental de desenvolvimento. E é essa sinergia que
buscamos: sintonizar a estratégia chinesa com a brasileira”, disse.
“Do
mesmo jeito que eles não entram no PAC, nós não vamos entrar na estratégia
deles. O que buscamos é o que integra as estratégias do Brasil e da China.
Então, a China tem sua definição autônoma e o Brasil a sua definição. O que se
fala de sinergia é isso: buscar onde essa estratégia se encontra”, completou.
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A estratégia do Brasil
O uso
da palavra “sinergia” permite ao governo brasileiro manter equidistância entre
China e Estados Unidos e ao governo de Xi Jinping explorar a imagem de que
o Brasil intensificará suas relações com sua estratégia.
Além
desta decisão de não aderir formalmente ao movimento chinês, outros dois
aspectos são levados em consideração:
- Regras claras:
o Ministério das Relações
Exteriores brasileiro
argumenta que não há um tratado internacional formal que regulamente a
adesão ao programa, o que dificulta uma decisão institucionalizada;
- Negociação de
parcerias específicas: o Brasil identificou que negociar acordos
bilaterais com a China em áreas específicas é mais vantajoso.
A
vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA em 2024 foi usada
pelo governo brasileiro como uma ferramenta de barganha nas negociações com a
China.
A ideia
é extrair concessões mais vantajosas de ambos os lados, sem se comprometer
exclusivamente com nenhum deles.
Neste
cenário, manter a posição de ambiguidade ajuda o Brasil a ter negociações mais
favoráveis, utilizando-se do fato de que tanto para Estados Unidos e
China é importante que o Brasil não esteja totalmente alinhado com o outro
lado da disputa.
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Atração de investimentos
Na
mesma entrevista, o ministro Rui Costa afirmou que o governo vai adiantar para
empresas da China informações de projetos de infraestrutura que serão leiloados
no Brasil.
O ministro disse que um acordo sobre este
assunto foi assinado na viagem de Lula à China. O objetivo é
possibilitar que as companhias chinesas consigam participar com maior volume de
investimentos do setor.
Rui
Costa disse que essa não é uma possibilidade exclusiva para os chineses e que
empresários de outros países também poderão solicitar o acesso antecipado.
“Vamos
montar um fórum, não só para eles, mas para qualquer país que queira conhecer
antecipadamente o que vai ser leiloado em 2025, o que vai ser leiloado em 2026,
para que eles possam estudar de forma antecipada, aprovar nos fóruns
específicos deles”, disse.
O
ministro não comentou se este processo afetaria o equilíbrio da concorrência
nos leilões em que os chineses terão acesso antecipado aos detalhes dos
projetos.
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China anunciou investimento de R$ 27 bi
Durante
a viagem da comitiva brasileira à China, os dois países anunciaram a previsão
de empresas chinesas investirem R$ 27 bilhões em novos projetos no Brasil.
Entre
os setores de investimentos estão o de delivery, com a plataforma Meituan; o de
carros elétricos, com a montadora GAC, o de energia limpa, com a estatal CGN; e
o de mineração, com o grupo Baiyin Nonferrous (veja lista abaixo).
Os R$
27 bilhões foram citados pelo presidente da Agência Brasileira de Promoção de
Exportações (ApexBrasil), Jorge Viana, após um fórum entre empresários
brasileiros e chineses em Pequim.
Segundo
a Apex, os investimentos da China incluem:
- R$ 6 bilhões da
GAC, uma das maiores montadoras chinesas, para "expansão de suas
operações" no Brasil;
- R$ 5 bilhões da
Meituan, plataforma chinesa de delivery que quer atuar no Brasil com o app
"Keeta" e prevê gerar até 4 mil empregos diretos e 100 mil
indiretos;
- R$ 3 bilhões da
estatal chinesa de energia nuclear CGN para construir um "hub"
de energia renovável (eólica e solar) no Piauí;
- até R$ 5 bilhões
da Envision para construir um parque industrial "net-zero"
(neutro em emissões de carbono), com foco em SAF (Combustível Sustentável
de Aviação), hidrogênio verde e amônia verde;
- R$ 3,2 bilhões
da rede de bebidas e sorvetes Mixue, que deve começar a operar no Brasil e
espera gerar 25 mil empregos até 2030;
- R$ 2,4 bilhões
do grupo minerador Baiyin Nonferrous, que anunciou a compra da mina de
cobre Serrote, em Alagoas;
- a empresa DiDi,
que opera no Brasil por meio da empresa de transporte 99, pretende
expandir a operação no setor de delivery e pretende construir 10 mil
pontos públicos de recarga para veículos elétricos;
- a Longsys deve
aportar R$ 650 milhões para ampliar a capacidade produtiva de fábricas de
semicondutores em São Paulo e Amazonas;
- a brasileira
Nortec Química anunciou parceria com a Acebright, Aurisco e Goto Biopharm
para construção de plataforma industrial de Insumos Farmacêuticos Ativos
(IFAs) no Brasil, no valor de R$ 350 milhões;
- a Apex também
fechou parcerias para a promoção do café brasileiro com a Lickin Coffe, do
cinema do Brasil com a Huaxia Film e de produtos nacionais no varejo
chinês com a Hotmaxx.
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Ampliação do comércio
A viagem de Lula à China foi pensada
para fortalecer a negociação comercial entre os países. A China é o
principal parceiro comercial do Brasil, e o governo brasileiro avalia que há
espaço para ampliar as exportações para o país asiático.
A avaliação tem relação direta com a
guerra comercial entre os Estados Unidos e os chineses. Ministros e
empresários acreditam que o Brasil pode surgir como "alternativa"
para parte dos produtos americanos importados pela China.
Fonte:
g1

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