terça-feira, 20 de maio de 2025

Exportação, mão de obra, mercado interno: guerra fiscal entre EUA e China favorece indústria de calçados do Brasil?

A guerra comercial entre Estados Unidos e China, iniciada com a volta de Donald Trump à Casa Branca, criou perspectivas para as indústrias brasileiras que exportam calçados, mas também trouxe dúvidas e desafios para o setor.

Em tradicionais polos produtores como Franca (SP), já chamada de capital do calçado masculino, a desvalorização da moeda brasileira e a ampliação de taxas para produtos asiáticos ajudaram a elevar em 14% as exportações do primeiro trimestre deste ano, com um faturamento local de US$ 64 milhões, e uma expectativa de ampliar a atuação no mercado norte-americano.

Em contrapartida, o aumento das importações sinaliza para o risco de a própria China ganhar mais espaço no mercado interno.

"O que as estatísticas nos mostram e as vendas nos informam é que vamos ter um aumento com relação ao ano passado nas exportações. (...) A tendência agora é aumentar as exportações, ou seja, com essa situação do tarifaço, a tendência é que a China venha pra cá e vai abrir uma janela pra nós nos EUA e pode aumentar as exportações para aquele país", afirma José Carlos Brigagão do Couto, presidente do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca (Sindifranca).

🔎Com a guerra tarifária, a taxação sobre o calçado brasileiro nos Estados Unidos subiu de 17,3% para 27,3%, segundo dados da inteligência de mercado da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados). Por outro lado, sapatos fabricados na China, Vietnã e Indonésia - que juntos concentram 71% do mercado de importação em território norte-americano - tiveram a mesma taxação de 17,3% elevada para valores cima dos 49%.

🔎Em outras palavras, mesmo sendo alvo de um aumento na taxação, o calçado brasileiro ficou mais competitivo na perspectiva da importação nos EUA, onde atualmente o Brasil tem uma participação abaixo de 1%.

·        Oportunidade: explorar a parcela chinesa no mercado americano

Segundo os representantes do setor, a mudança nos padrões de taxação internacional tende a dificultar a entrada de calçados chineses nos EUA, ao mesmo tempo em que abre espaço para os produtos brasileiros captarem parte dessa demanda.

Nesse contexto, calçadistas estão otimistas com os primeiros resultados de 2025 e projetam uma melhora nos próximos meses. Segundo a Abicalçados, no primeiro bimestre do ano, as indústrias brasileiras exportaram 1,93 milhões de pares para os Estados Unidos, o que representa uma alta de 0,6% na comparação com o mesmo período do ano passado. O faturamento nesse período foi de US$ 37,17 milhões.

"Está tendo venda de 15% a 20% maior que ano passado. É um ano com grandes expectativas. O primeiro semestre tende a ser um pouco mais calmo, e a expectativa de aumentar até 30% agora no segundo semestre", afirma o empresário Rafael Luís Coelho.

·        Desafios: demanda além da capacidade e 'invasão' chinesa

Em contrapartida, os calçadistas acreditam que polos como o de Franca não têm condições de dar conta de toda a demanda de exportação aberta pelo encarecimento dos produtos chineses nos EUA.

Isso porque o setor esbarra em questões como a baixa disponibilidade de mão de obra e não se preparou, ao longo dos últimos anos, para se expandir a tal ponto.

"Não conseguimos abastecer em nível de indústria, de mão de obra, tem um problema na cadeia de suprimentos também, que não se deve conseguir manter esse fornecimento e todo atendimento que seria necessário", analisa a empresária Karina Ferracioli.

Em Franca , por exemplo, a capacidade produtiva já chegou a contar com mais de 30 mil pessoas em 2013, mas hoje não passa de 14 mil funcionários, segundo Brigagão.

"Vamos imaginar que um grupo de empresas resolve se unir pra poder atender um determinado volume de exportação. Primeiro que essas empresas têm que ter histórico, tem que ter tecnologia pra exportar e não é qualquer empresa que tem condições de exportar. Vamos imaginar que essas empresas tenham condições de exportar, mas vão encontrar uma situação difícil que é mão de obra pra suprir essa necessidade", analisa o presidente do Sindifranca.

Além dessas questões estruturais, a reconfiguração tarifária acende um alerta para o mercado interno brasileiro, que pode ser ocupado por mais calçados chineses, mesmo com adoção de medidas protecionistas, como a taxa antidumping, que evita que um país exporte produtor abaixo do preço de mercado.

Triangulações com outros países da Ásia nas exportações, no entanto, podem driblar essas barreiras e prejudicar os fabricantes brasileiros. Segundo a Abicalçados, somente de China, Indonésia e Vietnã - que correspondem a 80% das importações do segmento - , o Brasil importou 6,6 milhões de pares entre janeiro e fevereiro deste ano, o que representou uma movimentação superior a US$ 80,6 milhões.

Mesmo com uma baixa da ordem de 3% nas importações da China, os outros dois países asiáticos ganharam espaço tanto em volume de produtos (alta de até 47%) quanto em recursos financeiros arrecadados (de até 37%).

"Temos o antidumping contra a China e isso tem segurado um pouco a entrada de calçados chineses no Brasil, mas o governo brasileiro nos negou o antidumpig contra Indonésia e Vietnã. (...) Toda a nossa produção do Brasil, 85%, é destinada ao mercado interno, o restante é exportado para vários países, entre eles os EUA. Se entrar uma grande quantidade de calçados chineses aqui, vamos perder parte desse mercado interno. As exportações que poderiam se abrir para nós nos EUA não vão compensar."

·        Estratégias: contatos, vendas online e valor agregado

Com cenário favorável ou não, os calçadistas adotam estratégias, seja para consolidar as vendas no mercado interno, seja para expandir mercados no exterior. Karina Ferracioli descreve, por exemplo, a importância da participação em feiras internacionais de moda ou mesmo grandes eventos do setor realizados no Brasil, com a participação de importadores estrangeiros.

A demonstração da qualidade dos produtos e a abertura de novos contatos é um trabalho, segundo ela, que pode gerar resultados a médio e longo prazo com contratos na Europa, EUA e Oriente Médio.

"Viajamos nos últimos anos, 2023 e 2024, e fomos para a Europa. É um investimento. A fábrica sonhou com esse projeto e viemos nos preparando em termos de produto e tudo mais. (...) Fizemos muitos contatos, muitos amigos, muitos lojistas distribuidores, e foi um grande plantio que a gente está colhendo resultados até hoje desses contatos", diz.

A diversificação dos canais de venda também favorece os negócios. No caso da empresa de Rafael Luiz Coelho, o grande diferencial foi a aposta no comércio online, associado à agilidade nas entregas.

"Hoje a gente fabrica e entrega para o Brasil inteiro, muito prático e seguro. A gente tem alguns meios, tem canais, tanto no marketplace quanto em site próprio, que traz mais segurança para o cliente. (...) Também o que ajuda muito é a velocidade de entrega. Aqui a gente tem a disponibilidade de estar enviando hoje, em alguns meios de entrega o cliente pode receber amanhã ou dentro de uma semana para todo o Brasil. Isso é uma forma de fortalecer o nosso mercado e brigar diretamente com essas importações."

A aposta no alto valor agregado dos sapatos brasileiros também torna-se relevante nesse cenário de indefinições. "Eu valorizo o feito artesanal aqui, a gente valoriza a nossa fabricação, valoriza que é um produto brasileiro, um produto nacional."

¨      Entenda o que é a Nova Rota da Seda e por que o governo brasileiro evita aderir formalmente ao projeto

A Nova Rota da Seda foi lançada pela China em 2013 com o objetivo de expandir sua influência global por meio de investimentos em infraestrutura, comércio e conectividade em dezenas de países.

Até 2024, mais de 100 nações já haviam aderido ao projeto, que movimentou mais de um trilhão de dólares em investimentos.

Apesar da relevância econômica da China como principal parceiro comercial do Brasil, o governo brasileiro tem evitado uma adesão formal à iniciativa, chamada oficialmente de “Cinturão e Rota”.

Em entrevista na China durante viagem do presidente Lula ao país nesta semana, o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT), negou que o Brasil “entrará” na iniciativa. O petista afirmou que a ideia do Brasil é encontrar “sinergia” com a estratégia de investimentos do país asiático.

“A denominação do Cinturão e Rota para a China é a mesma denominação do PAC para nós, uma estratégia governamental de desenvolvimento. E é essa sinergia que buscamos: sintonizar a estratégia chinesa com a brasileira”, disse.

“Do mesmo jeito que eles não entram no PAC, nós não vamos entrar na estratégia deles. O que buscamos é o que integra as estratégias do Brasil e da China. Então, a China tem sua definição autônoma e o Brasil a sua definição. O que se fala de sinergia é isso: buscar onde essa estratégia se encontra”, completou.

<><> A estratégia do Brasil

O uso da palavra “sinergia” permite ao governo brasileiro manter equidistância entre China e Estados Unidos e ao governo de Xi Jinping explorar a imagem de que o Brasil intensificará suas relações com sua estratégia.

Além desta decisão de não aderir formalmente ao movimento chinês, outros dois aspectos são levados em consideração:

  • Regras claras: o Ministério das Relações Exteriores brasileiro argumenta que não há um tratado internacional formal que regulamente a adesão ao programa, o que dificulta uma decisão institucionalizada;
  • Negociação de parcerias específicas: o Brasil identificou que negociar acordos bilaterais com a China em áreas específicas é mais vantajoso.

A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA em 2024 foi usada pelo governo brasileiro como uma ferramenta de barganha nas negociações com a China.

A ideia é extrair concessões mais vantajosas de ambos os lados, sem se comprometer exclusivamente com nenhum deles.

Neste cenário, manter a posição de ambiguidade ajuda o Brasil a ter negociações mais favoráveis, utilizando-se do fato de que tanto para Estados Unidos e China é importante que o Brasil não esteja totalmente alinhado com o outro lado da disputa.

<><> Atração de investimentos

Na mesma entrevista, o ministro Rui Costa afirmou que o governo vai adiantar para empresas da China informações de projetos de infraestrutura que serão leiloados no Brasil.

O ministro disse que um acordo sobre este assunto foi assinado na viagem de Lula à China. O objetivo é possibilitar que as companhias chinesas consigam participar com maior volume de investimentos do setor.

Rui Costa disse que essa não é uma possibilidade exclusiva para os chineses e que empresários de outros países também poderão solicitar o acesso antecipado.

“Vamos montar um fórum, não só para eles, mas para qualquer país que queira conhecer antecipadamente o que vai ser leiloado em 2025, o que vai ser leiloado em 2026, para que eles possam estudar de forma antecipada, aprovar nos fóruns específicos deles”, disse.

O ministro não comentou se este processo afetaria o equilíbrio da concorrência nos leilões em que os chineses terão acesso antecipado aos detalhes dos projetos.

<><> China anunciou investimento de R$ 27 bi

Durante a viagem da comitiva brasileira à China, os dois países anunciaram a previsão de empresas chinesas investirem R$ 27 bilhões em novos projetos no Brasil.

Entre os setores de investimentos estão o de delivery, com a plataforma Meituan; o de carros elétricos, com a montadora GAC, o de energia limpa, com a estatal CGN; e o de mineração, com o grupo Baiyin Nonferrous (veja lista abaixo).

Os R$ 27 bilhões foram citados pelo presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (ApexBrasil), Jorge Viana, após um fórum entre empresários brasileiros e chineses em Pequim.

Segundo a Apex, os investimentos da China incluem:

  • R$ 6 bilhões da GAC, uma das maiores montadoras chinesas, para "expansão de suas operações" no Brasil;
  • R$ 5 bilhões da Meituan, plataforma chinesa de delivery que quer atuar no Brasil com o app "Keeta" e prevê gerar até 4 mil empregos diretos e 100 mil indiretos;
  • R$ 3 bilhões da estatal chinesa de energia nuclear CGN para construir um "hub" de energia renovável (eólica e solar) no Piauí;
  • até R$ 5 bilhões da Envision para construir um parque industrial "net-zero" (neutro em emissões de carbono), com foco em SAF (Combustível Sustentável de Aviação), hidrogênio verde e amônia verde;
  • R$ 3,2 bilhões da rede de bebidas e sorvetes Mixue, que deve começar a operar no Brasil e espera gerar 25 mil empregos até 2030;
  • R$ 2,4 bilhões do grupo minerador Baiyin Nonferrous, que anunciou a compra da mina de cobre Serrote, em Alagoas;
  • a empresa DiDi, que opera no Brasil por meio da empresa de transporte 99, pretende expandir a operação no setor de delivery e pretende construir 10 mil pontos públicos de recarga para veículos elétricos;
  • a Longsys deve aportar R$ 650 milhões para ampliar a capacidade produtiva de fábricas de semicondutores em São Paulo e Amazonas;
  • a brasileira Nortec Química anunciou parceria com a Acebright, Aurisco e Goto Biopharm para construção de plataforma industrial de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) no Brasil, no valor de R$ 350 milhões;
  • a Apex também fechou parcerias para a promoção do café brasileiro com a Lickin Coffe, do cinema do Brasil com a Huaxia Film e de produtos nacionais no varejo chinês com a Hotmaxx.

<><> Ampliação do comércio

A viagem de Lula à China foi pensada para fortalecer a negociação comercial entre os países. A China é o principal parceiro comercial do Brasil, e o governo brasileiro avalia que há espaço para ampliar as exportações para o país asiático.

A avaliação tem relação direta com a guerra comercial entre os Estados Unidos e os chineses. Ministros e empresários acreditam que o Brasil pode surgir como "alternativa" para parte dos produtos americanos importados pela China.

 

Fonte: g1

 

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