Douglas Barros: Nem afropessimismo, nem
decolonialismo!
Tenho argumentado que o identitarismo é um
sintoma de época. Entendido em suas miudezas, trata-se mais de uma tentativa de
resposta da gestão, a partir das transformações históricas do capitalismo nos
seus últimos 50 anos, do que de uma relação de agência dos sujeitos. Ou seja,
trata-se mais de uma forma de governamentalidade — para lembrar o velho
Foucault — do que propriamente um ato de escolha dos indivíduos implicados.
Isso não significa que não haja os defensores
do essencialismo identitário como forma de gestão. Nenhum exemplar talvez seja
mais flagrante do que o afropessimismo dos anos 1990. Quando numa entrevista,
ao ser questionado sobre a possibilidade de se solidarizar com os palestinos,
Wilderson — epígono da corrente — afirmou que “a antinegritude é inerente à
formação da vida psíquica árabe”, acabou revelando os limites do apego à
identidade proposta por seus adeptos.
Essa resposta não é só estúpida e falaciosa
(um orientalismo que essencializa toda a vida psíquica de milhares de pessoas
como se não existissem negros árabes), nela também está a interrupção da
solidariedade na lutas por emancipação. Por estes tristes tópicos, também vozes
brasileiras, à maneira de papagaios do intelectual americano, utilizaram o
genocídio em Gaza para fazer propaganda de suas próprias marcas sustentadas
pela violência e racismo policiais. Para estes a identidade racial e o racismo
viraram um grande negócio.
E, assim, no credo comum à corrente, a
desigualdade social e a injustiça racial estão dissociadas; a superação de uma
que leve à da outra tornou-se impossível. Abdica-se, portanto, da ideia de
revolução em nome de farelos derrubados das mesas dos grandes bancos. Como
resultado, temos demandas sociais que se tornam divisas comoditizadas e servem
para encobrir a dimensão concreta das lutas.
É nesse sentido que o livro África vermelha,
retomando o ponto de vista da história das lutas por emancipação no continente
africano, coloca novamente os pingos nos “is” desnudando o caráter reativo que
tem dominado e adocicado a prática antirracista no mundo globalizado.
Quando percebemos que racialismo e racismo
formam um todo dinâmico — quer dizer: o próprio racialismo não apenas gera a
sua contraparte como depende do racismo para garantir seu sentido — percebemos
algumas armadilhas vislumbradas pelo autor. Uma delas é que o tema da
identidade, sequestrado pela lógica neoliberal, que sofre uma deflação de
sentido ao se adequar aos limites necessários à gestão.
E é pensando em tudo isso que Kevin Ochieng
Okoth, em África vermelha, resolve torcer o parafuso da questão: o
neoliberalismo não é apenas uma racionalidade que impõe a semântica dos
movimentos sociais sequestrando a identidade racial, como também é uma prática
política que organizou um novo mecanismo imperialista.
Essa volta no parafuso é fundamental para
apreender os acontecimentos históricos que impediram todas as potencialidades
das lutas de libertação nacional ocorridas no Terceiro Mundo após Bandung. Ao
invés do chororô básico do decolonialismo — corrente ideológica nascida nas
“universidades neoliberais” (a noção é de Ochieng) —, observamos a realidade
concreta das lutas que foram destruídas pelo intervencionismo dos
impérios.
Enquanto os epígonos decoloniais insistem em
dizer que o fracasso das lutas se deu porque os revolucionários operavam no
interior do aparato epistêmico moderno, Ochieng vai aos fatos históricos e
demonstra que a derrota se consolidou por uma verdadeira operação militar que
assassinou a sangue frio diversos intelectuais revolucionários; destituiu
regimes democráticos e conduziu políticas econômicas que tornaram os países —
recém-libertos — dependentes da austeridade neoliberal.
Entretanto, matar Lumumba em 1961, derrubar
Nkrumah em 1966, instaurar e apoiar várias ditaduras pelo continente africano
não bastava; era preciso ganhar os corações e as mentes para um projeto
globalizante de dominação. Projeto que seria realizado quando se sequestrasse a
própria memória das lutas e no seu lugar se instaurassem formas de lê-la pelas
lentes burguesas, organizando a semântica das lutas.
Para esse projeto, a luta pela transformação
da realidade concreta precisava se tornar uma luta pela transformação simbólica
— como se a nossa relação simbólica caísse do céu, não sendo fundamentada numa
realidade histórica. “Basta considerarmos os debates contemporâneos sobre a
decolonização de museus, galerias de arte e universidades”, diz Okoth, “para
termos uma noção de como o campo da decolonização deslocou a ênfase na crítica
da economia política para a questão mais abstrata da decolonização dos saberes”.
Signo da impotência política — sintoma
causado pelo massacre das tentativas revolucionárias — e da impossibilidade de
imaginação utópica, o decolonialismo condena a modernidade ipsis litteris como
se o próprio negro não fosse dela um resultado. O contrário do que é esperado
por essa falsa ingenuidade é que por trás da recusa à modernidade se restitui a
imagem do bom selvagem que clama por um retorno às raízes.
Que a modernidade tenha sido erguida sobre a
violência genocida do colonizador não parece ser algo ignorado por qualquer
crítica com direito ao nome, o ponto fundamental é que há uma dialética à
modernidade que constrói as formas políticas e a consolidação da própria
racialidade; algo que precisa ser posto sob exame crítico possibilitando uma
prática de transformação.
Esse é o lugar fundamental de África
vermelha: o olhar para a modernidade como algo histórico e contraditório que
estabiliza as formas simbólicas pelas quais nos guiamos — não basta disputar
significados sem levar em consideração a raiz da produção deles.
Isso que parece tão óbvio é abandonado quando
grande parte dos autointitulados críticos, como Wilderson, fazem do racismo
algo arraigado ao gene da humanidade e não resultado do desdobramento histórico
radicado na acumulação capitalista. É para isso que Ochieng chama a atenção
quando afirma que o racismo foi consequência da escravidão e não o contrário:
não são as ideias que produzem a relação concreta, são estas que acabam
organizando o horizonte das ideias.
Chegar a essa conclusão não limita a
imaginação política, senão a recoloca sob o prisma das determinações
histórico-sociais para pensar e ir além da realidade posta. Trocando em miúdos:
todo sentido de transformação efetiva parte de uma determinação histórico-social,
mas não se limita a ela.
O que, no avesso da moda decolonial,
significa dizer que sem alterar a base da produção e reprodução da vida social
qualquer mudança epistemológica será instrumentalizada pelo modo de exploração
capitalista. Ou seja, fará do capitalismo um capitalismo perfumadinho e com
rosto humano.
No fundo esse desejo inconfessável de tornar
o lugar de fala rentável se pronuncia nos limites da moda decolonial, e as
críticas que Ochieng lança traduzem esse impasse organizado pela apropriação de
pautas históricas do movimento para o usufruto privado dos epígonos elevados ao
lugar de representante das “minorias”. Se o diabo veste Prada já não podemos
saber, o que sabemos é que muitos representantes sim, mas não há Prada para
todos e, felizmente, há aqueles que se recusam a ceder à sedução comezinha.
Ochieng, portanto, lê o afropessimismo (ou AP
2.0, como ele chama) como uma pacificação da luta antirracista com roupagens
radicais — nem tudo que brilha é relíquia nem joia, já diziam os Racionais.
Para possibilitar essa pacificação foi necessário capturar o maior nome
revolucionário anticolonial: Franz Fanon. Capturar, cortar ao meio e fazer, ao
modo academicista, um Fanon fragmentado e confuso que se perdeu n’Os condenados
da terra. Um Fanon que, nessa ideologia, só tem valor porque supostamente equivale
o negro ao escravo.
Ora, evidentemente essa falsificação de
Fanon, e essa péssima leitura não vêm por acaso: era preciso condenar a
potencialidade revolucionária do martinicano em nome do essencialismo da
identidade a fim de estar à altura do novo tempo do velho capitalismo. A
leitura seletiva de Frank B. Wilderson III mais não faz do que tornar Fanon um
produto de sua própria teoria. Recortando e picotando Fanon ao gosto
particular, Wilderson torna Fanon wildersoniano. “O AP 2.0”, diz Ochieng,
“eleva o que ele (Fanon) diz sobre o racismo antinegro (aparentemente
onipresente) à verdade universal. Uma análise mais atenta do texto em questão
revela, no entanto, algo diferente”.
Ao contrário do que soa, a questão ignorada
pelos epígonos do AP 2.0 é uma das mais importantes para Fanon: a identidade
racial não é um dado essencial. Brancura e negrura não são oposições absolutas,
mas relacionais e, portanto, o mais importante: o racialismo (com seu adendo
racista) é multiforme. O racializado hoje pode ser aquele que não era
racializado até ontem. Isso para muitos crentes do afropessimismo é algo
intragável já que para eles o lugar do negro é sempre o lugar da vítima
privilegiada.
O mesmo não se dava, porém, para Fanon, já
que o seu impulso foi o de tornar esse que foi objetificado (negro) um sujeito
de sua própria história. Amparando-se na sua própria experiência vivida em
Paris, Fanon percebeu que as teias da racialização se desenvolveram por todo o
mundo onde viceja o mundo da mercadoria. Ao contrário do tom provinciano de
Wilderson, Fanon olha para além do umbigo martinicano. Assim, Ochieng recoloca
o lugar da luta fanoniana como a contribuição fundamental daquilo que enforma a
teoria fanoniana. Fanon não ficava só no gabinete…
A questão é: como uma teoria revolucionária
que pensou nos condenados da terra como leitmotiv para a transformação radical
da sociedade foi capturada por um discurso essencialista e
contrarrevolucionário como é o do afropessimismo? A resposta repousa nas
transformações internas ao capitalismo que precisaram inscrever novas formas de
gerir o descontentamento social e, para isso, lapidaram as universidades a
partir da visão de mundo neoliberal cooptando os intelectuais negros.
“Esse uso flagrantemente impróprio de Fanon”,
argumenta Ochieng, “é um exemplo muito irritante de como o pensamento
anticolonial foi distorcido pela universidade neoliberal e esvaziado de seu
conteúdo revolucionário”. A própria noção de universidade neoliberal talvez
ilumine de maneira radical os limites de uma atuação política que coloca a
disputa pseudossimbólica (o “pseudo” se refere, sobretudo, ao fato de que o
simbólico não se separa da realidade material) como centro da ação.
A questão sobre a qual devemos nos debruçar é
que o laboratório ideológico, organizado pelo discurso universitário — que
inclusive funciona para além da universidade, e aqui as fundações são centrais
— prepara a semântica que será usada pelos movimentos.
Pensando bem — na companhia de África
vermelha —, esses intelectuais que recusam o horizonte de transformação comum,
com uma suspeita contrarrevolucionária, em nome da imediatez da pauta, são
aqueles que Fanon já criticava. São, nas suas palavras, “intelectuais nativos”
que raramente se colocam em sintonia com o anseio das massas populares e
frequentemente se tornam colaboradores do status quo.
Evidentemente não é esse Fanon radical que
importa a essa turma, mas um que é imaginado e que cabe em suas teorizações.
Por isso, “ao jovem Fanon, destacado e isolado de qualquer outro pensamento
anticolonial, foi concedido um lugar confortável na torre de marfim”. Também
para sedimentar esse processo violento de apagamento e falsificação de
clássicos da crítica negra, foi preciso enterrar alguns nomes fundamentais à
luta revolucionária, como Amilcar Cabral.
Se Ochieng privilegia o afropessimismo como a
representação fundamental de uma adequação do antirracismo ao modo de operação
neoliberal, nós, dos tristes trópicos, não podemos esquecer que temos nossos
exemplares desse radicalismo negro nada radical: um antirracismo para a classe
média aplaudir.
Para que ele se sustente, porém, foi preciso
construir um imaginário condenatório ante toda busca por alternativas
anticapitalistas. E, portanto, foi preciso criar a ideia de que o comunismo, os
comunistas e, principalmente, os marxistas nunca deram peso às relações
raciais. Uma mentira fodida.
• Uma
África em disputa
Essa falsidade é combatida com veemência em
África vermelha. Resgatando a memória das lutas africanas e dos impasses de
libertação nacional, Ochieng faz da experiência revolucionária no Quênia o
exemplo de como o neoliberalismo capturaria o discurso moldando-o às
necessidades imperialistas do capitalismo.
Essa é, a meu ver, aliás, uma das principais
contribuições fundamentais do livro: o neoliberalismo é uma prática
imperialista que se torna visível em todos os seus contornos no continente
africano ao impor um regime econômico em consonância com os interesses do
Império norte-americano.
Assim, ao analisar os documentos oficiais da
independência do Quênia, vislumbramos toda a instrumentalização semântica
organizada pelas agências externas, pela CIA e, portanto, com ativa ingerência
dos EUA. O caminho do Quênia, segundo a súmula dos capitalistas, deveria ser o
do “socialismo” próprio à África. Nada devendo ao comunismo e ao marxismo.
Na prática, todavia, isso significou uma
política econômica subserviente aos interesses externos dos capitalistas
transnacionalizados que, para ser assegurada, precisava do assassinato
simbólico e corpóreo dos comunistas. Todavia, não bastava só a violência, era
preciso enformar uma visão de mundo que capturasse o desejo dos subalternos e
consolidasse a ideia de que nada fora do capitalismo podia ser melhor.
E eles mataram mesmo os comunistas: “para
garantir que não haveria mais conflitos, Gama Pinto — que foi descrito pelo
último governador colonial do Quênia, Malcolm MacDonald, como ‘um comunista
dedicado e o principal cérebro por trás de Odinga’ — tinha de ser eliminado.
Ele foi assassinado a tiros em plena luz do dia, na porta de sua casa, em
fevereiro de 1965”.
Resgatar a memória das lutas, como faz
Ochieng, não é só importante para apreender como a violência foi determinante
para a derrota dos processos de libertação, mas também para observarmos como a
ideologia, sustentada por muitos epígonos atuais, é conivente com o apagamento
dessa dolorosa memória. Algo que no mínimo deveria nos causar náuseas.
Esse exemplo do Quênia não é o único do
livro, Ochieng vai trazer documentos da Tanzânia, analisar a derrota de Gana,
pensar nos descaminhos da Guiné só para enfatizar o seguinte: a falsidade
promovida pelo discurso que visa apagar a contribuição comunista para a luta
não se sustenta num exame mínimo da história do continente africano no século
XX. Nossa história, a história comunista, é mais profunda, dolorosa e radical
do que é sugerido no discurso que tem dominado movimentos antirracistas mundo
afora.
E, com isso, do socialismo africano, passamos
ao exame do afromarxismo de Cabral, Samora Machel entre outros. De Cabral,
Ochieng captura as lições tiradas de sua compreensão radical do movimento
revolucionário nos países dominados pelo Império português. O papel das
mulheres aparece ao final como central. Andreé Blouin tem sua vida recontada no
vivo interesse de demonstrar que sem as mulheres negras as lutas
revolucionárias no continente africano não teriam se realizado.
Enfim, o destino comum desses revolucionários
foi a morte. As lutas revolucionárias não empacaram pela adesão epistêmica ao
Ocidente branco, como é ensinado em muitos lugares hoje, mas pela radical
violência sustentada num aparato militar gigantesco do imperialismo.
As lições revolucionárias, porém,
(in)felizmente se marcam como ferro em brasa na pele racializada, mesmo a
tentativa de esquecê-las ou falsificá-las, pelos aparatos ideológicos, não
poderá apagá-las. São lições que, se observadas, traduzem os limites e as
formas, quem sabe, de superá-los. Essa é a força de África vermelha, um livro
que não faz concessão ao conformismo.
Fonte: Blog da Boitempo

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