Data centers: o Brasil se submeterá às big
techs?
Nada como forçar um fato consumado para
sepultar um debate promissor. O Brasil acumula um longo atraso no domínio dos
dados gerados por sua sociedade e na construção dos data centers necessários
para armazená-los, tratá-los e empregá-los em benefício da população. Está em
curso, há anos, um debate promissor sobre como recuperar o tempo perdido. No
último domingo (4/5), porém, o ministro da Fazenda precipitou um movimento que
pode tornar o país ainda mais dependente das big techs e dos Estados Unidos nesse
terreno estratégico para a soberania nacional.
Primeiro, o ministro avistou-se com um dos
assessores mais íntimos de Donald Trump – o bilionário Scott Bessent,
secretário do Tesouro. Sustentou que o governo brasileiro está empenhado num
esforço de “aproximação” com a Casa Branca, algo jamais enunciado antes por
Lula ou pelo chanceler Mauro Vieira. Em seguida, na segunda-feira (5/5),
iniciou visitas a executivos das big techs, o oligopólio de megacorporações
norte-americanas que domina, no Ocidente, os fluxos da internet e as
tecnologias de informação. Esteve com capos da Nvidia, do Google, da Microsoft.
Para estimular seus interlocutores, acenou
com uma oferta. Alardeou que o Brasil prepara-se para lhes propor, por meio de
um programa denominado Redata, isenção total de impostos de importação para os
bens necessários a instalar data centers; zero impostos também na exportação de
serviços; água e energia fartas e baratas. Ao falar a jornalistas, mais tarde,
Haddad mencionou um número místico. Garantiu que as benesses propostas às
corporações atrairão investimentos de “2 trilhões de dólares em dez anos”, um número
que, como se verá, expressa uma fantasia.
O gesto cortês de Haddad ao governo Trump e
às big techs norte-americanas era, porém, uma cotovelada no rosto dos que
refletem, no Brasil, sobre o atraso do país no tratamento de seus dados e na
construção de data centers. O debate sobre o tema é amplo e antigo. Ressente da
falta de canais de diálogo no Estado (inclusive sob Lula). Mas consideram-se
soluções de sentido oposto ao enunciado pelo ministro. Elas incluem
desenvolvimento autônomo, soberania digital, investimento público.
Há algo ainda mais espantoso. A precipitação
de Haddad procura driblar um debate ainda em curso no próprio governo. A ideia
de incentivo à construção de data centers não nasceu no Ministério da Fazenda,
mas no MDIC — a pasta do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, cujo
titular é Geraldo Alckmin. Tinha, porém, características muito distintas.
Fontes muito próximas do assunto, no governo, descreveram a Outras Palavras
como a Fazenda a capturou. De qualquer forma, a decisão está pendente. Lula ainda
hesita em assinar o projeto de lei, ou medida provisória, que enviará ao
Congresso sobre o tema. Entre outras considerações, há a relação do Brasil com
os Brics — vista no governo, ao menos para consumo externo, como
geopoliticamente prioritária. O atropelo de Haddad pode significar, segundo as
mesmas fontes, a tentativa de encerrar prematuramente a polêmica.
* * *
Estima-se que haja hoje cerca de 11,8 mil
data centers no mundo — pouco menos de 200 destes, no Brasil. O número deve
crescer exponencialmente nos próximos anos. Estas estruturas — enormes
construções, cujos corredores podem abrigar dezenas de milhares de computadores
(ou “servidores”, no jargão do setor) — concentram-se no hemisfério Norte, como
mostra o mapa a seguir. A China, por exemplo, desenvolveu-se tanto quanto os
EUA nas tecnologias de informação e comunicação, mas o alcance de suas redes
sociais é incomparavelmente menor.
As plataformas de redes sociais e, mais
recentemente, os sistemas de inteligência artificial, são enormes devoradores
de dados e de data centers. Mas eles são indispensáveis para uma miríade de
outras aplicações da vida contemporânea. Quando alguém lê um texto em Outras
Palavras ou em qualquer outro site, um “servidor”, quase sempre instalado num
data center, é acionado. O mesmo ocorre em qualquer compra online e, mais
criticamente, numa movimentação de conta bancária, na reserva de uma passagem
de ônibus ou avião, ou no preenchimento de uma declaração do Imposto de Renda.
As atividades humanas dependem, e dependerão cada vez mais, de que estas
estruturas reajam, com prontidão e o mínimo de falhas possível, a milhões de
comandos simultâneos.
Esta prontidão e eficiência têm pelo menos
dois preços. Um, no momento, é inevitável. Consomem-se muitos recursos hídricos
e energéticos. Um data center médio usa de 11 a 20 milhões de litros d’água por
dia, o mesmo que uma cidade de 30 a 50 mil habitantes. Estima-se que os data
centers hoje instalados no mundo consumam, em seu conjunto, tanta eletricidade
quanto o Japão, a quinta maior economia do planeta. É possível que, com o
tempo, a própria tecnologia reduza este ônus. Data centers mais modernos, por
exemplo, usam muito menos água. Ao invés de descartá-la, reciclam-na e a
reutilizam incessantemente, o que reduz de modo considerável sua pegada
ecológica.
A segunda conta a pagar é política — por
isso, muito mais grave. Quem controla os data centers exerce controle sobre os
dados que neles circulam. Pode capturá-los, processá-los, vendê-los ou
manipulá-los. Pode utilizá-los para impor comportamentos sociais, de consumo,
eleitorais. Os dados quase infinitos que oferecemos incessantemente, em nossas
interações digitais, por certo “sabem” mais sobre nós do que nós mesmos. Podem
ser empregados, por um lado, para planejar o crescimento harmônico das cidades,
a geração adequada de ocupações ou o descarte e reciclagem ambientalmente
corretos do lixo. Mas servem, ao mesmo tempo, para oferecer a cada pessoa, no
momento certo, a compra que confortará suas pulsões imediatas (ainda que
inteiramente desnecessárias). E para apresentar a cada cidadão a proposta que
instigará seus desejos políticos inconscientes, ou aplacará seus medos
(resultando em eleições nas quais o espaço público e os temas de interesse
coletivo são substituídos pela microssegmentação das mensagens).
O controle sobre os data centers e os dados
que neles circulam é exercido de duas maneiras. A propriedade destas estruturas
está nas mãos de um oligopólio de corporações norte-americanas. Destacam-se
entre elas Microsoft, Google e Amazon Web Services (AWS). Além disso, há leis
extraterritoriais. Nos EUA, sobressai o Cloud Act, que permite ao Estado
norte-americano requisitar dados que circulem ou estejam armazenados em
qualquer empresa com sede no país — esteja o data center no estado da Virgínia,
em Varsóvia, no Cairo ou em São Paulo. Foram precisamente estes dois atores
políticos (as big techs e o Estado norte-americano) que o ministro Haddad
escolheu para seus parceiros preferenciais.
* * *
O grande déficit de data centers no Brasil é
um tema debatido há muito por ativistas, programadores e pensadores envolvidos
com as tecnologias digitais. Faltam recursos e visão estratégica. Nos últimos
anos, foram migrando para estruturas fora do país dados como os das
universidades e institutos de pesquisa; os do Judiciário — inclusive relativos
às eleições; os da Receita e Previdência; os do IBGE; os do SUS. Instituições
públicas tradicionais como o Simpro e a Dataprev estão sendo forçadas a
“parcerias” em que, na prática, privatizam seus data centers — quase sempre em
favor do trio norte-americano: AWS-Google-Microsoft.
Um primeiro gargalo é financeiro: o aluguel
de espaço nos data centers destas empresas é pago em dólares e gera déficit
expressivo na balança comercial. Outro, ainda mais grave, é a perda de
soberania e capacitação. O Brasil teve, até há poucos anos, uma comunidade
vibrante de desenvolvedores de tecnologia de informação e comunicação. Por
falta de políticas para o setor, as empresas nacionais — públicas ou privadas —
perderam pujança. A grande maioria dos profissionais brasileiros que se mantêm
ativos (formados em excelentes universidades públicas no país) foram levados a
trabalhar em transnacionais ou em empresas que delas dependem.
* * *
Baseada hoje em parcerias com as big techs
norte-americanas e a Casa Branca, a proposta do governo brasileiro para superar
o atraso do país em dados e data centers já teve outras configurações. Sua
e(in)volução foi relatada a Outras Palavras por pessoas que se envolveram
diretamente no processo, mas preferem, por razões óbvias, permanecer no
anonimato.
A iniciativa coube ao Ministério do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), de Geraldo Alckmin. É
ele o órgão do governo responsável por implementar o projeto de Nova Indústria
Brasileira (NIB), anunciado com alarde por Lula em janeiro de 2024. A Missão 4
da NIB trata de transformação digital. Desenvolver serviços de nuvem é, em
princípio, meta prioritária no plano de reconstrução industrial do Brasil.
A proposta original construída pelo MDIC a
partir do ano passado incluía o estímulo à entrada de capitais e tecnologia
estrangeiros a partir da instalação de novos data centers e da atualização dos
já em operação no Brasil. Mas o fazia segundo condições que preservavam a
soberania e o desenvolvimento da economia digital do país. Jamais se pensou,
por exemplo, em priorizar os EUA. Os dados estratégicos seriam mantidos em data
centers públicos, controlados pelo Estado. Havia medidas de simplificação regulatória
e a princípios de boas práticas em relação às questões ambientais.
Buscava-se evitar que, nas transformações
tecnológicas em curso, o Brasil figurasse apenas como fornecedor de recursos
naturais abundantes, dados e incentivos fiscais. Já na proposta original se
previu a contrapartida de uma parte da desoneração fosse direcionada para o
Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT) para apoiar
projetos de economia digital. Estimulavam-se empresas brasileiras, que já
mantêm data centers e oferecem serviços de nuvem (como a Magalu Cloud),
pudessem se modernizar.
Abria-se espaço para que milhares de pequenos
operadores de internet, inclusive no interior, pudessem implantar seus próprios
centros de dados, valorizando mão-de-obra local e gerando riqueza ali mesmo
onde os dados são gerados. O mais importante na proposta original era o fomento
ao desenvolvimento da cadeia produtiva à montante e à jusante, incluindo
fabricantes nacionais de equipamentos, e o financiamento dos diferentes tipos
de data centers — não apenas daqueles dedicados à IA, como parece ser o foco do
texto atual.
Em certa altura, ainda em 2024, a agenda foi
capturada. Transferiu-se a discussão para a Casa Civil, do ministro Rui Costa.
Abriu-se espaço para o Ministério da Fazenda. E aí atuaram assessores especiais
lotados diretamente no gabinete do ministro. Não fazem parte do quadro regular
do órgão. São oriundos de empresas do Vale do Silício.
São ainda desconhecidos os termos exatos do
Redata — o programa de incentivos fiscais que o Palácio do Planalto pretende
propor ao Congresso. É possível que haja pontos em aberto. Após ter lido
minutas recentes, nossa fonte relata: foram limadas as cláusulas que
estabeleciam soberania nacional e inovação tecnológica. Surgiu, como
resultante, um conjunto de medidas que se limita a oferecer vantagens às big
techs norte-americanas, sem exigir contrapartidas.
As estimativas de “investimentos de US$ 2
bilhões” são uma espécie de isca, um chute fantasioso, para o qual não foi
apresentado — porque parece não haver — nenhum estudo relevante. A suposta
economia de dólares não foi quantificada adequadamente. Haverá menos gasto com
aluguel de espaço nos data centers, é verdade. Em contrapartida, o país
importará maciçamente chips (que permanecerão sob controle das big techs). E as
empresas remeterão lucros ao exterior. Também não surgiu, ao menos até o
momento, nenhuma avaliação que pese os prós e contras na balança de transações
externas.
A capacidade de geração de empregos dos data
centers é pouquíssimo expressiva. São cerca de cem profissionais, numa
estrutura de dimensões médias. Faltam até mesmo estudos acerca do possível
impacto sobre as fontes de água e energia, nos locais em que forem instalados
data centers. Há poucas semanas, por sinal, o Operador Nacional do Sistema
Elético (ONS) alertou que diversas regiões do país não são capazes de suportar
estas estruturas sem comprometer o abastecimento de seus habitantes e empresas.
* * *
Feita de maneira torta e tardia, a revelação
da existência do Redata joga mais luz sobre os limites de Lula 3 e o cenário
brasileiro. O governo parece pouco propenso a abrir o debate sobre os grandes
temas nacionais — mesmo quando há, como é o caso, vasto acúmulo entre
pensadores, ativistas e profissionais da área. Prefere entender-se, na frieza
dos gabinetes, com os peso-pesados que capturam a riqueza nacional, ou com as
bancadas fisiológicas do Congresso.
Ainda assim, é possível agir. O projeto que
dará institucionalidade ao Renova e o remeterá ao Congresso Nacional ainda não
foi apresentado. Torná-lo conhecido, combater suas concessões inaceitáveis e,
eventualmente, conquistar alguma vitória parcial durante a tramitação no
Legislativo é possível.
Mais árduas são as tarefas de sondar os
caminhos para a soberania digital do Brasil e, de forma mais ampla, a
reconstrução nacional em novas bases. Para isso, será preciso formar
consciência e organização novas, e acumular, pacientemente, força política. Não
é trabalho que caiba neste governo, nem no imediatismo dos calendários
eleitorais.
Fonte: Por Antonio Martins, em Outras
Palavras

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