Donald
Trump – todo poder ao presidente
Desde
que Donald Trump assumiu a presidência dos EUA pela segunda vez, há pouco mais
de cem dias, o mundo tem assistido com perplexidade as ações de um chefe do
Executivo que parece ser capaz de desmantelar diariamente o Estado americano e
reconfigurar a ordem econômica internacional sentado diante de uma mesa e com
uma caneta na mão.
Como é
possível esse exercício imperial de poder em um país cuja arquitetura
institucional foi pensada pelos chamados “pais fundadores” de maneira quase
obcecada pela garantia da divisão e controle dos poderes e em evitar os riscos
da chamada tirania da maioria?
Em
primeiro lugar, deve-se ter em conta que tais medidas não estão ocorrendo sem
contenciosos judiciais. A Casa Branca tem travado uma batalha com juízes de
primeira instância, que entendem que muitos de seus decretos extrapolam os
poderes constitucionais da Presidência. Boa parte do campo conservador, no
entanto, acredita que uma ampliação dos poderes presidenciais é inescapável e
logo será legitimada pela Corte Suprema do país, onde os conservadores possuem
maioria (sies juízes entre nove).
As
intensas ações do presidente americano que têm gerado conflitos entre os
poderes têm se concentrado, do ponto de vista administrativo, em dois tipos de
práticas: Governar por decretos e promover estrangulamento orçamentário em
agências administrativas dotadas de autonomia operacional.
Em
ambos os casos, o alvo preferencial do presidente tem sido a própria estrutura
da burocracia federal, o conjunto de agências autônomas ou relativamente
autônomas e seus funcionários. Um dos decretos, assinado quatro dias após sua
posse, demite cerca de vinte funcionários sem respeitar os procedimentos
previstos em lei.
Em
geral esse conjunto de medidas é justificado em razão da alegada necessidade de
reduzir o déficit federal e, como afirma a retórica neoliberal, reduzir o
tamanho do Estado. Mas o projeto de Donald Trump vai muito além disso.
Abusando
do poder de promover demissões, nomeações e perseguições ideologicamente
orientadas, que não têm poupado nem a prestigiosa Universidade de Harvard,
Donald Trump tem buscado preencher os postos da burocracia apenas com aqueles
que se alinham a seus projetos e visão de mundo. O objetivo de tais medidas é
ampliar o controle e o poder de decisão do presidente sobre órgãos da
burocracia, baseado na “teoria unitária do poder executivo”, há tempos
defendida pelos ultraconservadores, e que visa pôr fim às agências
independentes, incluindo o Departamento de Justiça.
É assim
que pensa e defende a Heritage Foundation, tink tank conservador
que produziu o “Projeto 2025”, documento que serve de matriz programática para
o segundo mandato de Donald Trump. Em uma inversão da lógica presente na
proposta de James Madison e de outros federalistas, preocupados em evitar o
risco da tirania advindo da concentração excessiva de poder no Executivo, o
objetivo é ampliar o poder do presidente e promover seu total controle sobre o
corpo administrativo. O inimigo é a própria burocracia em seu fundamento
moderno, dotada de autonomia relativa diante do incumbente.
O
desmantelamento da estrutura administrativa do Estado e a subserviência
ideológica do corpo de funcionários ao chefe do Executivo, alega-se,
constituem-se apenas como o meio para alcançar um objetivo maior, que é retirar
o poder da burocracia de Washington e devolvê-lo às famílias americanas,
comunidades religiosas e governos locais.
Do
ponto de vista ideológico, estamos falando da “nova direita alternativa”, que
reúne vertentes como libertários, neorreacionários, paleolibertários entre
outros, e que, apesar de heterogênea, se une em uma espécie de frente
antiprogressista e é dotada de projetos de sociedade. Mas quero me ater a
um outro aspecto, mais circunscrito do problema, que diz respeito ao
funcionamento da democracia tal como a conhecemos.
O
objetivo declarado do governo Donald Trump, e exaltado constantemente em seus
discursos, é o de desmantelar a burocracia (“menos Washington”) e obter total
controle sobre o que restar dela para devolver o poder ao povo. Em suma,
trata-se de dar “todo poder ao presidente” para em seguida dar “todo poder ao
povo”, sem deixar claro como se daria a passagem de um momento ao outro.
Sob
esse ângulo, podemos dizer que se trata de expressão do chamado populismo
contemporâneo, que, sob suas mais diversas vertentes e variações contextuais,
veste o figurino da democracia naquilo que aparenta ser seu aspecto mais
democrático, que é o poder da maioria, do voto e do povo, porém encarnados no
líder carismático.
Donald
Trump, ao considerar que seu poder ilimitado pode ser entendido como o poder
das famílias americanas, se assemelha àquilo que Pierre Rosanvallon chamou de
“representação encarnação”, característica da prática populista. O espírito do
trumpismo, se assim podemos chamar, é algo como “O Estado sou eu, e eu sou o
povo”.
A
tendência entre estudos empíricos da democracia ao redor do mundo tem sido
analisar os regimes democráticos a partir de um conjunto cada vez maior de
aspectos desagregados e que compõem as experiências reais de democracia,
compondo um contínuo que vai, para simplificarmos, de modelos minimalistas de
democracia (eleições livres, liberdade de expressão e estado de direito) até
modelos maximalistas.
Já do
ponto de vista de uma tradição teórica normativa, não há como pensar em
democracia se o regime não estiver assentado em dois pilares que, embora
conflituosos entre si, lhe são constitutivos: A noção de soberania popular, que
de alguma maneira se expressa pelo procedimento majoritário do voto popular, e
o arcabouço liberal e do estado de direito, que visa garantir a separação e
contenção dos poderes e a igualdade jurídica e direitos individuais e de
minorias.
Assim,
ao negar o segundo pilar, isto é, se junto ao mecanismo majoritário aplicado à
seleção de lideranças e produção de decisões em instâncias como o Parlamento,
não vier junto o conjunto de garantias de contenção e divisão dos poderes e dos
direitos individuais e de grupos minoritários garantidores do pluralismo, não
há que se falar em democracia.
Teríamos
algo como um autoritarismo plebiscitário. É isso que leva uma teórica como
Nádia Urbinati a afirmar que o populismo opera como um parasita da democracia,
pois é em seu nome que ele age e clama sua legitimidade ao mesmo tempo em que,
impaciente com as mediações institucionais, questiona os mecanismos pluralistas
de representação e as limitações constitucionais do poder, buscando à força
materializar o que entende ser a vontade da maioria em políticas públicas e
subvertendo a ideia de maioria enquanto procedimento de seleção de governos (“majority
rule”) em “tirania da maioria” (“the rule of majority”).
No
entanto, como relevam as pesquisas em opinião pública, nem sempre os eleitores
pensam assim. Em pesquisa publicada em 2021 (“The Americas: When do voters
support power grabs?), Albertus e Grossman testaram por meio de surveys o
grau de apoio que os eleitores estão dispostos a conferir a medidas que
desrespeitem a separação e controle dos poderes, como expurgo de funcionários
públicos de agências independentes quando eles não se alinham ideologicamente
ao governo, e loteamento dos órgãos judiciais.
Os
testes foram aplicados no Brasil, Argentina, México e EUA e revelaram que,
embora não sejam maioria, uma “minoria não negligenciável” tende a apoiar esse
tipo de medida autoritária, porcentagem de varia de 10% a 35% dependendo do
país. O estudo revelou também que essa tendência de apoio é maior quando o
eleitor votou no incumbente e quando o líder em questão é da extrema direita,
como era o caso do Brasil de Jair Bolsonaro e dos EUA de Donald Trump no
momento da realização da pesquisa.
Dentre
os elementos que compõem o que os especialistas chamam de “visão iliberal” de
democracia alguns autores têm destacado a chamada visão “majoritária”, segundo
a qual as ações de governantes que ferem o controle dos poderes e os direitos
de minorias são percebidas pelo eleitor como inerentemente democráticas porque
tomadas pelo líder eleito pela maioria do voto popular, o que tem colocado
o instigante problema da desdemocratização apoiada por eleitores e,
consequentemente, da legitimidade dessas medidas.
Mas
como os americanos têm encarado as ações autoritárias e concentradoras de poder
encampadas por Trump nesse segundo mandato?
Segundo
a recém-publicada pesquisa IPSOS, 55% dos americanos desaprovam a maneira de
Trump governar, enquanto seu percentual de aprovação segue em queda, em atuais
39%. Quando perguntados especificamente sobre a gestão do Governo Federal por
Trump, mais de 57% dos americanos a desaprovam.
Destaca-se
ainda que nada menos de 64% consideram que Donald Trump está indo longe demais
na sua tentativa de ampliar o poder da Presidência, enquanto 29% consideram que
suas decisões estão adequadas. Chama atenção também o fato de que cerca de 62%
dos americanos consideram que Donald Trump não respeita o Estado de direito,
enquanto 60% apontam que Donald Trump age para além da autoridade do
presidente.
Há
várias maneiras de interpretar esses dados. Grosso modo, eles nos revelam que
cerca de 60% dos americanos desaprovam a maneira com que Donald Trump vem
tentando concentrar poder e governar usurpando a autonomia dos outros poderes e
da administração pública. No entanto, o cerca de um terço de aprovação a esse
conjunto de medidas segue sendo sem dúvida uma “minoria não negligenciável”.
Sintomático,
contudo, é o predomínio da visão segundo a qual os partidos políticos são
alheios aos problemas da maioria da população. Quando perguntados se os
partidos estão alinhados às preocupações da maioria das pessoas, o campeão em
reprovação é o Partido Democrata, com 69% dos entrevistados respondendo
negativamente, seguido do Partido Republicano (64%), e Donald Trump com 60%.
Assim,
se Donald Trump se considera a encarnação das famílias americanas, 60% dos
americanos não o vêm assim, mas a situação dos partidos políticos é ainda pior.
Essa desconexão entre eleitorado e classe política, sobretudo partidos
tradicionais, parece ser o forte elemento em comum a boa parte das democracias
contemporâneas, como comprovam diversas enquetes ao longo dos últimos anos.
Quem
captou muito bem essa desconexão foi J. D. Vance, que em sua fala na 61ª
reunião da Conferência de Segurança de Munique em fevereiro afirmou diante dos
dirigentes europeus algo como “Não devemos temer nosso próprio povo, mesmo
quando ele possui uma opinião diferentes de seus dirigentes”. Sua frase, que
parece saída dos questionários de pesquisas que buscam medir o nível de
populismo nos eleitores, soou como provocação ao establishment europeu, que vem
perdendo espaço para os partidos ditos populistas, o que tem desorganizado o
sistema de coalizões que vinha funcionando nas últimas décadas.
Basta
olhar a Alemanha, que viu o partido de extrema direita Afd chegar em segundo
lugar nas eleições de fevereiro, temendo ver ruir a conhecida prática do
“cordão sanitário”. Das eleições emergiu uma frágil coalizão em torno do
conservador Friederich Merz, que pela primeira vez desde a segunda guerra
mundial não obtém maioria absoluta no primeiro turno no Bundestag na
votação que chancela sua vitória eleitoral.
Ou
tomemos o emblemático caso da França de Emmanuel Macron, que experimenta seu
terceiro primeiro-ministro desde a desastrada dissolução da Assembleia Nacional
em julho de 2024, e onde a moção de censura é uma ameaça constante enquanto o
Presidente insiste em formar governo com os partidos derrotados para evitar
partilhar poder com os únicos partidos que parecem entusiasmar os divididos
eleitores franceses, Rassemblement National (RN) à direita
e La France Insoumise (LFI) à esquerda, ambos ditos
populistas.
Mas a
mensagem de D. J. Vance aos líderes europeus foi muito além de apontar uma
desconexão entre dirigentes e eleitores. O que o católico ultraconservador
afirmou de forma explícita foi uma ruptura radical dos EUA com o modelo
globalista e de democracia liberal, afirmando a necessidade de se dar uma nova
direção à civilização.
Oficialmente
abandonado pelos EUA, esse projeto ficaria então à cargo do establishment
europeu, que afirma defendê-lo enquanto adota medidas impopulares sob o
pretexto de que os cidadãos precisarão realizar esforços para uma eventual
guerra com Vladimir Putin, e enquanto exige ainda mais poder de decisão à
burocracia supranacional de Bruxelas, contra a qual as urnas têm gritado cada
vez mais contra?
Retorno
então ao ponto que coloquei no centro da reflexão: A democracia como a
conhecemos. Nesse momento Donald Trump expande seu poder presidencial ao
arrepio da consagrada doutrina dos “pais fundadores” para, de mãos dadas com os
donos do capital das tecnologias, implementar seu projeto autoritário e
intolerante de sociedade, e ainda se sente à vontade para mandar recados sobre
a verdadeira democracia aos europeus.
Os
partidos tradicionais europeus, por sua vez, juram serem os arautos da
verdadeira democracia e dos direitos humanos, enquanto seguem perdendo nas
urnas e evitando a qualquer custo que a influência do povo, da maioria e do
voto – ao que chamam de populismo – exerça alguma influência sobre o rumo das
coisas. Se tem razão Urbinati ao afirmar que o populismo é o parasita da
democracia representativa, o antídoto que os europeus têm aplicado a ele
tampouco tem sido democrático.
Na
atual fase do capitalismo e do rearranjo de poder global, a democracia-liberal,
com seus dois pilares, tem parecido um fardo que não passa mais sequer pelo
crivo das urnas. Diante disso, nos parece cada vez mais necessário para a
ciência política ser capaz de conectar seus ricos achados empíricos com as
questões teóricas que os informam, se quisermos dar conta das metamorfoses das
democracias contemporâneas.
Fonte:
Por Felipe Calabrez, em A Terra é Redonda

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