A
produção de petróleo no Brasil
Sila e
Caribdes eram dois monstros mitológicos no tempo da Grécia antiga. Viviam no
estreito que separa a Sicília e a península italiana e ameaçavam os navegadores
com ventos e correntes marinhas violentos, levando-os a se chocarem com os
rochedos de um lado ou outro da passagem. O mito foi esquecido por muitos, mas
a expressão ficou na linguagem de muitos países para designar situações de
dupla ameaça. Fugir de Sila significa poder ser atingido por Caribdes e
vice-versa.
Traduzindo
para a realidade da produção de petróleo, Sila é a tendência mundial de
produção de petróleo e Caribdes é a tendência mundial do consumo de petróleo.
Esta
dupla ameaça implica em uma radical modificação do contexto da indústria
petroleira no mundo. Até os últimos anos, a ameaça era a diminuição da oferta
de petróleo, mas surge com força entre os especialistas do setor a ameaça de um
“pico de demanda”.
O
debate sobre o “pico” da produção de petróleo, conhecido internacionalmente por
“pick oil” começou nos anos 1950 com a previsão do geólogo americano King
Hubert, indicando que a produção americana, então uma das maiores do mundo,
chegaria a um máximo no ano de 1970 quando iniciaria um descenso contínuo.
Explicando
para os não especialistas: todo poço de petróleo tem uma vida bem definida cuja
duração depende do tamanho das reservas do poço explorado, da velocidade da
extração, da tecnologia utilizada e da relação entre os custos operacionais e
os preços do produto no mercado. Depois de um tempo, ao ser alcançada a
exploração da metade da reserva útil (o que pode ser extraído com lucro), a
produção começa a cair até se tornar economicamente inviável. Usa-se no setor
as expressões de poços maduros e de poços em senescência.
Estendendo
o conceito para o conjunto dos poços de um país, no caso citado os Estados
Unidos, King Hubert avaliou a evolução dos poços em produção e a evolução das
descobertas de novos poços e de seu potencial para mostrar que haveria uma
tendência de queda contínua de oferta a partir de um “pico” em 1970.
Chegar
a um pico não significava uma interrupção brusca do fornecimento, mas uma queda
paulatina inevitável. O pico de Hubert ocorreu precisamente no ano indicado. No
entanto, a explosão dos preços do petróleo em 1973 e a criação da OPEP
(Organização dos Países Produtores de Petróleo) permitiu que a indústria
americana de petróleo pudesse esticar a exploração dos poços maduros e em
senescência por mais tempo, já que os custos maiores nesta operação de “raspar
o fundo do tacho” ficaram, por algum tempo, abaixo dos preços de mercado.
King
Hubert fez o mesmo cálculo para o resto do mundo e previu um pico mundial de
produção o ano 2000. Este pico não ocorreu e a produção de petróleo continuou
em ascensão depois daquela data, levando muita gente a crer que a ameaça de um
pico mundial era incorreta. No entanto, os estudos de inúmeros especialistas
compartilhando a análise de King Hubert indicavam que os dados usados por ele
eram menos precisos do que os disponíveis para a indústria americana e que o
pico ocorreria em algum momento no horizonte de décadas, no máximo.
O tempo
mostrou que a hipótese de King Hubert era válida e o pico ocorreu muito mais
cedo do que se esperava. A produção de petróleo dito convencional (objeto dos
cálculos do geólogo) alcançou um pico em 2006, levando os preços para um
patamar inimaginável de 149,00 dólares por barril, gerando uma profunda e ampla
crise econômica. Entretanto, a oferta de petróleo continuou subindo depois de
ficar em um patamar limite por alguns anos. A previsão falhou?
O que
ocorreu foi uma radical mudança na oferta de petróleo no mundo. Até as crises
de 1973 e 1979 o petróleo produzido era o chamado “convencional”, um óleo leve
conhecido como tipo Brent, com menores custos de extração e de refino e maior
qualidade.
Os
preços mais elevados, que passaram de cinco dólares por barril para flutuar
entre um mínimo de trinta e um máximo de cento e cinquenta entre 1973 e 2006,
com uma média de sessenta, permitiram que começassem a ser exploradas de forma
mais intensa outras possibilidades.
Primeiro
o petróleo convencional encontrado em alto mar e, mais tarde (contribuição
brasileira), o encontrado em águas ultraprofundas e sob camadas de sal do fundo
do mar, o pré-sal. Por outro lado, muitas empresas se voltaram para a
exploração de petróleo de xisto (Estados Unidos) e das areias betuminosas
(Canadá). Estas possibilidades eram bem conhecidas, mas só se tornaram viáveis
com os preços mais elevados que dominaram o mercado de petróleo na segunda
metade da primeira década deste século.
A
oferta de petróleo, a partir da secunda década deste século, passou a ser
garantida pelo óleo dito pesado, sendo que a produção americana garantiu,
sozinha, a cobertura entre a demanda sempre crescente, o estancamento da
produção convencional de petróleo leve e o constante fiasco na busca de novos
poços.
Isto
ocorreu com um enorme subsídio do governo americano, combinado com um aumento
em 54% da eficiência da extração do óleo de xisto com novas tecnologias.
Registre-se que nada disso se garante sem um preço superior a 60,00 USD/barril,
tanto para a extração do convencional em águas profundas como os óleos pesados
ou o de xisto.
O
debate sobre um pico da oferta de petróleo foi posto de lado ao longo da década
de 2010, com o otimismo contaminando tanto os produtores de petróleo como os
consumidores. Mas já no final da década começaram os sinais de que um pico
geral dos óleos combustíveis estava próximo.
O
primeiro sinal foi a rapidez com que os poços americanos foram se esgotando,
obrigando a investimentos em novos poços em um ritmo frenético. Por outro lado,
a indústria americana teve que encarar custos crescentes e lucros estagnados ou
em queda a partir de 2018, levando especialistas a preverem um pico (alguns em
2025, outros em 2030) inexorável.
Apenas
a Agência Americana de Energia esticou a previsão para 2035. As reservas de
óleo das areias betuminosas de Alberta, no Canadá, são bem maiores do que as
estimativas para o petróleo de xisto americano, mas este petróleo é, de longe,
o mais caro e o de pior qualidade.
Para
piorar o quadro da oferta de petróleo, a década passada mostrou que os picos do
petróleo convencional foram ocorrendo em vários países grandes produtores,
notadamente na Rússia e na Arábia Saudita (segundo e terceiro maiores
produtores do mundo).
No
momento presente as previsões de vários players do negócio do petróleo vão se
multiplicando para apontar o risco de uma quebra de oferta. A Agência
Internacional de Energia calcula que ela vai ocorrer em 2030, a empresa
francesa Total na segunda metade da presente década e a revista especializada
Rystad International em 2035. Os únicos a manter o discurso da oferta
suficiente no médio prazso são os dirigentes da OPEP, colocando um horizonte de
segurança até 2050.
As
únicas boas notícias neste quadro vêm do Brasil. A Petrobras anunciou estes
dias uma nova descoberta que pode ampliar as reservas brasileiras entre 50 e
70%, apenas em um novo campo na região de Santos. Por outro lado, a empresa tem
planos de investimento em 51 novos campos, 25 nas margens sul e sudeste, 15 na
margem equatorial e 11 em terra firme, totalizando 7,9 bilhões de dólares.
Estes
novos campos não deverão entrar em produção antes da próxima década, mas o
investimento nos campos já próximos de exploração ou em exploração está orçado
em 66 bilhões de dólares. O propósito é triplicar a produção exclusiva da
empresa, com a entrada em operação de 14 novas plataformas até 2029 para
extrair 3,2 milhões de barris de óleo equivalente (petróleo e gás) por dia.
Além
disso, há ainda a produção em consórcio com empresas privadas e a produção
independente destas últimas. Não encontrei previsões para a produção expandida
destas últimas, mas elas devem ser significativas e podem levar a produção
total do Brasil para perto de sete ou oito milhões de boe/dia no final da
década.
Esta
expectativa de aumento de produção no Brasil é importante e pode levar o país,
se tudo der certo, para um patamar mais alto entre os países (e empresas)
produtoras de petróleo, colocando-nos entre os cinco maiores. No entanto, sabendo-se que a demanda mundial
deve chegar em 2030 a 104 milhões de boe/dia, a oferta do nosso pré-sal não
terá a capacidade de cobrir as quedas em curso em quase todos os campos
convencionais (inclusive os de águas profundas em outros países) e o
estancamento da produção do petróleo de xisto nos Estados Unidos.
A única
alternativa não avaliada até agora para cobrir a demanda é a expansão da
exploração das areias betuminosas do Canadá, mas esta possibilidade vai
depender de imensos investimentos e de preços do petróleo acima dos 100,00
dólares por barril, o que causaria um impacto gigantesco na economia de todo o
mundo.
Para
concluir esta análise sobre a crise de oferta de petróleo, vou lembrar um dado
capital divulgado pela própria AIE: o gasto mundial em subsídios diretos e
indiretos para a produção de petróleo é da ordem de um trilhão de dólares por
ano. Não existe melhor indicador do que este para mostrar o quanto esta
indústria está desequilibrando a economia internacional, sugando recursos que
seriam importantíssimos para financiar um desenvolvimento sustentável e a
transição para energias renováveis. Tudo para manter o sistema em produção
por mais tempo a preços toleráveis pelos
consumidores.
A
ameaça de Sila (o pico mundial de oferta de petróleo), parece ser terrível para
todo o mundo, mas aparentemente um bônus para o Brasil. Resta ver agora a
ameaça de Caribdes (o pico de demanda).
Segundo
alguns avaliadores, entre eles a Associação Internacional de Energia (que foi
por muitos anos uma representação dos interesses da indústria do petróleo), a
demanda de combustíveis fósseis vai ter um pico em 2030 e a multinacional
British Petroleum, em 2025 (isso mesmo, neste ano).
No
entanto, prevalece na grande maioria das avaliações que o movimento de
substituição dos combustíveis fósseis por energia eólica e solar, embora tenha
dado um salto espetacular nos últimos cinco anos, mal e mal cobriu uma parte do
aumento total de consumo de energia no período. Há uma redução perceptível
neste consumo apenas nos países da União Europeia, no Japão e, em menor escala,
nos Estados Unidos.
Mesmo
na China, de longe o maior investidor em energia renovável, o consumo de
combustíveis fósseis (inclusive o super poluente carvão) continuou crescendo
com taxas significativas.
Por
outro lado, quase todos os países que se comprometeram a reduzir as emissões de
Gases de Efeito Estufa no Acordo de Paris ficaram longe de cumprir as metas e
as emissões cresceram significativamente nos países em desenvolvimento. Não há
qualquer possibilidade de que a redução da demanda de petróleo seja uma
realidade, mesmo dilatando os prazos para 2040. A OPEP calcula que a demanda só
vai se estabilizar em 2050!
A
atitude das empresas petroleiras indica que elas estão dispostas a reduzir a
prospecção de novos poços de petróleo (até porque os custos estão cada vez mais
importantes e os resultados cada vez mais frustrantes), mas também que vão
vender as suas reservas até o limite da rentabilidade para recuperar gastos
anteriores.
Para
finalizar, os pesados investimentos da Petrobras em prospecção e extração de
petróleo podem ter que enfrentar as duas ameaças mundiais: a queda da demanda
(bastante improvável) e a queda da oferta (bastante provável).
No
primeiro caso, se o mundo reagir a tempo às ameaças do aquecimento global e
investir pesadamente na substituição do uso dos combustíveis fósseis por
energia renovável e com baixa emissão de Gases de Efeito Estufa, a demanda de
petróleo (e seus preços) vão cair e todo o investimento na expansão da nossa
oferta vai virar um mico.
No
segundo caso, apesar da Petrobras ser privilegiada por preços mais elevados
provocados pela carência mundial de petróleo, quando seus novos poços vão
entrar em produção na primeira metade da próxima década, o impacto do déficit
mundial de produção de energia vai provocar um caos na economia e um pesado
freio na globalização, em particular pela pressão de custos sobre o transporte
de mercadorias.
Poderemos
sobreviver nesta situação? A nossa vantagem relativa vai nos ajudar a fazer uma
transição? Faz sentido nos empenharmos em aumentar a produção de petróleo (e
das emissões de Gases de Efeito Estufa), torcendo para que o mercado continue
em demanda crescente?
Estas
perguntas são respondidas positivamente por todos os defensores de uma
Petrobras 2.0, mas ela ignora o outro problema capital para o futuro da
humanidade: a emergência climática provocada pelo aumento das emissões mundiais
de Gases de Efeito Estufa, provocadas pelas emissões oriundas sobretudo pelo
uso de combustíveis fósseis, inclusive as nossas.
Fonte:
Por Jean Marc von der Weid, em A Terra é Redonda

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