Destruição
do licenciamento ambiental ameaça liderança climática mundial do Brasil
Enquanto
o Brasil se prepara para sediar a COP30 da ONU em Belém, evento crucial para o
futuro climático global, o Senado debate um projeto de lei que pode agravar
irremediavelmente a destruição da maior floresta tropical do mundo. O Projeto
de Lei 2159/2021, sob o pretexto de “agilizar” o licenciamento ambiental,
representa um ataque direto à estrutura de proteção ambiental construída nas
últimas décadas. Longe de ser uma modernização, o projeto enfraquece
drasticamente a capacidade do Estado brasileiro de avaliar riscos, prevenir
danos e garantir o equilíbrio ecológico que sustenta a própria economia e
segurança hídrica do país.
Ao
permitir que projetos sejam de médio impacto e se autolicenciem por uma simples
declaração, sem critérios claros e rebaixando a relevância da manifestação de
órgãos como a Funai e o Iphan, este PL basicamente delega ao empreendedor
afirmar se haverá risco ambiental ou não, o que suprime objetivamente os
princípios de precaução e da prevenção, conforme previsto na Constituição
Federal e na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92),
princípio 15:
“Com a
finalidade de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser
amplamente aplicado pelos Estados, segundo suas capacidades. Quando houver
ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de certeza científica
absoluta não deverá ser usada como razão para postergar medidas eficazes e
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”
Impactos
ambientais indiretos, como o desmatamento ilegal, a poluição do ar e a
contaminação de rios, praias e mares advindos desses empreendimentos deixarão
de receber uma análise ambiental criteriosa, mesmo quando envolvam
termelétricas próximas a setores residenciais, hospitais e escolas,
pavimentação de estradas em áreas sensíveis para a fauna silvestre, mineração
em cabeceiras de nascentes e áreas de recarga de aquíferos que abastecem
agricultores – para ficar em poucos exemplos. Caso esse PL seja aprovado,
também os instrumentos de ordenamento urbano e zoneamento ecológico econômico
não mais serão um impeditivo para empreendimentos com impactos negativos
conhecidos em cidades por todo o país.
Assim
redigido, esse PL oferece um salvo-conduto para a destruição ambiental, com
impactos profundos sobre o abastecimento de água, a qualidade do ar, a produção
de alimentos e a saúde das populações no Brasil inteiro – mas não só isso, como
veremos a seguir.
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A floresta no limiar do colapso: o alerta de Carlos Nobre
O
climatologista Carlos Nobre, membro da Academia Brasileira de Ciências e do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), referência mundial
em Amazônia e mudanças climáticas, alerta que a floresta se encontra sob grave
risco de colapso ecossistêmico, o chamado “ponto de não retorno”. Em suas
palavras:
“Estamos
muito próximos do ponto de virada da Amazônia. Se a taxa de desmatamento
ultrapassar os 20% a 25% da cobertura original, a floresta não conseguirá mais
se sustentar como floresta tropical. A transição para uma vegetação semelhante
ao Cerrado será irreversível em grandes áreas.”
Atualmente,
a Amazônia brasileira já perdeu mais de 18% de sua cobertura original, com
outros 17% em processo severo de degradação (MapBiomas, 2023). Diversos
projetos, como o asfaltamento da BR-319, entre Porto Velho (RO) e Manaus (AM),
poderão ser o estopim para esse colapso ecológico. Chico Mendes, seringueiro e
companheiro histórico da atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que deu
sua vida em defesa da floresta amazônica e hoje empresta seu nome ao Instituto
responsável pela gestão de áreas protegidas federais, já advertia sobre essa
estrada nos anos 1980: “A BR-319 vai cortar o coração da floresta. Não é
estrada, é um rastro de morte.”
Apenas
2% a 7% de desmatamento do bioma Amazônia é o que nos separa do ponto de não
retorno. Em português direto, a liberação do asfaltamento dessa única BR basta
para que os impactos indiretos de desmatamento ilegal dela oriundos – a
abertura de estradas vicinais irregulares, as famosas “espinhas de peixe”,
atinjam e rompam o limiar alertado por Carlos Nobre. Essa obra, por configurar
“melhoria de projeto existente”, é uma das que passa a ter aprovação
praticamente automática e sem medidas de mitigação, independente dos graves
impactos previsíveis de sua realização. Caso o licenciamento ambiental no
Brasil seja desfigurado pela aprovação e sanção do PL 2159/2021, a viabilização
deste e de dezenas de outros projetos trará consequências irreversíveis para o
bioma amazônico e a estabilidade climática brasileira.
O
colapso anunciado da floresta não se limita à Amazônia, pois poderá afetar
todos os ecossistemas e biomas conexos não apenas do Brasil, mas também dos
países vizinhos, como as florestas andinas e mesmo os glaciares que abastecem
milhões de pessoas, configurando uma perspectiva de crise climática de escala
continental. A Amazônia e os biomas conexos do Pantanal e Cerrado desempenham
um papel fundamental na regulação climática de toda a América do Sul, ao prover
e conduzir os “rios voadores” de vapor d’água do Norte para o Centro-Oeste,
Sudeste, partes do Nordeste até o Sul do Brasil, que abastecem de água também
países vizinhos como Bolívia, Paraguai, Peru e Argentina. Essa é a dimensão do
risco que o PL 2159/2021 traz ao aprofundar o vetor de desmatamento para um
sistema tão ameaçado quanto vital para a realidade climática com que estamos
acostumados, e que já dá seus primeiros sinais de desequilíbrio.
Para se
ter ideia da escala dos danos climáticos que podem acontecer caso esse sistema
hidrológico-climático seja desequilibrado, basta olhar o mapa mundi e localizar
três estados brasileiros – Mato Grosso do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro.
Traçando um paralelo latitudinal, na África, o deserto da Namíbia é a primeira
parada, seguida pelo deserto australiano, e por fim, o deserto de Atacama, no
Chile. Nessa latitude de aridez, a única faixa verde em todo o globo terrestre
se restringe à faixa contida entre os Andes e o Atlântico, ou seja, as
geografias irrigadas pelos rios voadores e bacias que nascem em sua maioria na
Amazônia.
A
savanização da Amazônia, os incêndios florestais e a seca já vivida em várias
de suas cidades são oriundas do desmatamento e do aquecimento global causado
pela atividade humana, e infelizmente esta não é uma crise isolada desse bioma.
Desde 2023, temos já oficialmente o primeiro deserto brasileiro, com quase
6.000 km². Maior que o Distrito Federal ou que a área das cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo juntas, está situado no centro norte da Bahia e divisa com
Pernambuco, atingindo importantes municípios que dependem da agricultura
irrigada, como Juazeiro. Esse primeiro caso de desertificação consolidada,
identificado pelo Inpe e Cemaden, se insere em outro contexto maior, mapeado
desde os anos 1960, que é a expansão do semiárido brasileiro. Em setenta anos,
aproximadamente 75.000 km² de terras se tornaram semiáridas como consequência
direta do desmatamento e do ressecamento de rios, córregos e aquíferos – o
equivalente à área do Espírito Santo. Uma média de 10.000 km² a cada década.
Tanto
na Caatinga como na Amazônia, o vetor de desmatamento e degradação é o mesmo: a
abertura de novas fronteiras agrícolas. A aprovação do PL 2159/2021 deverá
intensificar significativamente a expansão da agropecuária sobre áreas de
vegetação nativa não apenas nestes, mas em todos os biomas brasileiros, ao
permitir a dispensa automática do licenciamento ambiental para atividades como
pecuária extensiva, cultivo de grãos e manutenção de pastagens. Sob a
justificativa de serem de “baixo impacto”, essas práticas poderão ser
autorizadas sem qualquer estudo de impacto ambiental, mesmo quando realizadas
em áreas recentemente desmatadas. Isso representa, tacitamente, a legalização
do desmatamento para agropecuária.
Segundo
o MapBiomas (2023), cerca de 97% do desmatamento no Brasil é ilegal, e a
pressão crescente sobre as áreas de transição entre o Cerrado e a Amazônia,
atualmente protegidas por exigências legais, será diretamente impactada com a
flexibilização proposta pelo PL 2159/2021 – justamente aquelas áreas na porção
sul da Amazônia, com maior índice de degradação por fogo, maiores percentuais
de desmatamento, e com maior risco de savanização. As perspectivas são de perda
de 50% a 70% da floresta em sua metade sul, do Atlântico à Bolívia, caso seja
atingido o ponto de não retorno do bioma amazônico.
Atualmente,
a valorização de terras desmatadas em regiões de expansão agropecuária
transforma a destruição ambiental em ativo econômico, e terras públicas não
destinadas, inclusive em Unidades de Conservação e florestas protegidas
tornam-se alvo primordial desse modelo. O Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia (Ipam, 2022) estimou que mais de 24 milhões de hectares de florestas
públicas estão sob ameaça direta de grilagem – um risco amplificado pela
eliminação de barreiras legais e pela fragilização dos instrumentos de
licenciamento ambiental.
A
savanização da Amazônia poderá comprometer gravemente o regime de chuvas no
Norte, Centro Oeste e Sudeste, afetando culturas agrícolas essenciais em São
Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará,
Rondônia, Acre e Goiás. Igualmente, com a diminuição das precipitações nas
cabeceiras dos rios glaciares no Peru e na Bolívia, serão impactadas
diretamente diversas regiões e cidades desses países. A recarga das geleiras
dos Andes, hoje já em processo acelerado de derretimento pelo aquecimento
global, poderá ser ainda mais comprometida, colocando em risco o abastecimento
hídrico de milhões de pessoas. Na Argentina e no Paraguai, a agricultura
depende criticamente das chuvas do verão austral, cuja regularidade é garantida
pelos rios voadores e bacias hidrográficas que nascem na Amazônia. Além disso,
eventos extremos como as enchentes no Rio Grande do Sul e as secas históricas
na Amazônia tenderão a se intensificar em frequência e gravidade, segundo os
modelos climatológicos que soam o alerta há anos.
A
destruição da floresta amazônica não apenas ameaça a estabilidade climática
regional, mas poderá desestruturar cadeias produtivas inteiras, forçando
deslocamentos populacionais e gerando insegurança alimentar e energética em
escala continental, sem falar nos danos globais da emissão de gases do efeito
estufa que esse processo pode incorrer. Estudos recentes estimam que a Amazônia
armazena cerca de 200 bilhões de toneladas de carbono (Brienen et al., Nature,
2015).
Caso a
floresta colapse e entre em processo de savanização, grande parte desse carbono
será liberado na atmosfera, acelerando o aquecimento global e convergindo para
os cenários mais agravados de aquecimento, acima de 2 graus. Isso se conectaria
a outros sistemas instáveis, como o degelo do Ártico e o colapso da calota da
Groenlândia, em um efeito dominó de tipping points globais, conforme descrito
por Lenton et al. (Nature, 2019). Segundo esses cientistas, ultrapassar tais
pontos pode levar o planeta a uma nova era geológica desestabilizada, marcada
por temperaturas elevadas e eventos extremos irreversíveis. O colapso da
Amazônia é um dos gatilhos mais próximos e perigosos dessa cadeia, e o Senado
brasileiro está sendo o dedo a apertá-lo.
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PL 2159/2021 e o risco de fracasso do projeto de multilateralismo do Brasil
Para
além das consequências ambientais no curto horizonte de tempo, a eventual
aprovação do PL 2159/2021 trará consigo prejuízos multilaterais e comerciais de
curto prazo ao Brasil, ao direcionar o país à rota de colisão com diversos
compromissos assumidos em tratados e blocos internacionais. Imediatamente, se
destaca o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia,
paralisado justamente por preocupações ambientais. O PL viola frontalmente
cláusulas do acordo, como o respeito ao Acordo de Paris e ao princípio da
precaução. França, Alemanha e Áustria já alertaram que não ratificarão o
tratado caso o Brasil não fortaleça – ao invés de enfraquecer – suas
salvaguardas ambientais.
A OTCA
(Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), baseada na cooperação e
conservação regional, também terá seu funcionamento minado caso o PL 2159/2021
seja aprovado, haja vista o prejuízo reputacional já no curto prazo para o
Brasil junto a seus vizinhos amazônicos, que afetará sua estratégia de
integração e dificultará ações coordenadas contra o desmatamento e em favor do
desenvolvimento sustentável – razão de ser daquela organização. Cabe ressaltar
que esse prejuízo reputacional já foi exposto pela chancelaria colombiana
publicamente, em razão das tensões causadas pela insistência brasileira em
prospectar petróleo na Margem Equatorial, a despeito da fragilidade dos estudos
e diligências de segurança para esse projeto.
A
desfiguração do licenciamento ambiental tende a desestimular investimentos
estrangeiros, especialmente em setores que exigem certificações ESG, com risco
de interromper negociações multilaterais para além do tratado de livre comércio
entre União Europeia e Mercosul, que levou mais de vinte anos para ser
negociado. Além de afetar diretamente exportações agrícolas e industriais, o
Brasil ainda poderá sofrer sanções diplomáticas, comerciais e climáticas, como
barreiras alfandegárias ambientais, e enfrentar processos em instâncias
internacionais como a Organização Mundial do Comércio, comprometendo
irremediavelmente a imagem internacional do país, justo quando ele busca
protagonismo climático em foros tão importantes como o G20, Brics e a própria
ONU.
Por
fim, segundo o Instituto Socioambiental e o Observatório do Clima, o PL fere
compromissos do Acordo de Paris (art. 4º) e da Convenção da Diversidade
Biológica (arts. 6º e 8º), e contraria a jurisprudência da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), especialmente quanto ao direito a um
meio ambiente saudável e à consulta prévia a povos indígenas, prevista na
Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas (art. 32).
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Entre o risco de colapso ecossistêmico e a promessa de liderança na agenda
climática
A
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, §1º, inciso I, impõe ao poder
público, incluindo o Congresso Nacional, o dever de “preservar e restaurar os
processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e
ecossistemas”, o que implica a garantia da sustentabilidade intergeracional,
isto é, assegurar os direitos ambientais não apenas para a presente, mas também
para as futuras gerações.
Sediar
a COP30 em Belém é uma oportunidade histórica de liderança, mas liderança exige
exemplo e coerência. Quando o Brasil conclama o mundo a rever suas
contribuições nacionais determinadas (NDCs) à luz do fracasso do Acordo de
Paris, em um mundo que já rompeu o limite de aquecimento global de 1,5 graus,
em vez de inspirar pelo exemplo, o Senado estará legalizando a degradação, a
poluição atmosférica e o desmatamento ambiental, caso o PL 2159/2021 seja
aprovado. Tamanha contradição comprometerá todos esses acordos necessários e
almejados para a COP30, afastará parceiros internacionais e enfraquecerá o
protagonismo diplomático do Brasil no cenário global, além de prejudicar
irremediavelmente a imagem do governo federal perante a opinião pública
brasileira, com consequências diretas para o pleito de 2026.
Jared
Diamond, em seu livro Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o
sucesso, publicado há vinte anos, lista diversos exemplos históricos de
sociedades que fizeram escolhas civilizacionais que respeitam seus ecossistemas
e recursos naturais, bem como aquelas que fizeram o contrário, e por isso não
mais existem. Estamos hoje, no Brasil, precisamente diante de um destes
momentos históricos. Nas palavras do autor:
“O que
mais me impressiona nas sociedades do passado é que muitas delas cometeram
erros ambientais catastróficos mesmo tendo exemplos prévios diante de si. Elas
sabiam o que estavam fazendo – mas fizeram assim mesmo.”
A
Amazônia não é apenas uma floresta – é um sistema climático vital para a
América do Sul e o planeta. O PL 2159/2021 é mais do que uma proposta
legislativa: é uma sentença de morte para esse bioma, e muito além. O Congresso
Nacional e especialmente o Senado têm a escolha de consagrar o maior retrocesso
ambiental da história e condenar o equilíbrio climático no Brasil e na América
do Sul, ou ser uma força de liderança e responsabilidade para frear a erosão
democrática e a normalização do absurdo, e liderar uma transição econômica e
ecológica que abrirá novas cadeias de desenvolvimento, paz e estabilidade
democrática. O mundo e a sociedade brasileira estão observando.
Fonte:
Por Marcos Woortmann, no Le Monde

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