Do
manicômio psiquiátrico à vida em liberdade
A
história de João ecoa a de muitos outros moradores de hospitais psiquiátricos e
Hospitais de Custódia/Tratamento (HCTP) que entraram pela porta da frente e lá
permaneceram por muitos anos. Alguns ainda estão lá. São 24 anos de promulgação
da Lei 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica brasileira, que buscava
garantir o direito ao tratamento humanizado e à reinserção social de pessoas
com transtornos mentais, além de estabelecer diretrizes para os HCTPs, buscando
alternativas para que indivíduos que cometeram crimes não sejam apenas
excluídos, mas recebam tratamento adequado e tenham a chance de retornar à
sociedade. Mais recentemente, em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
reforçou esse compromisso, instituindo uma política antimanicomial para o Judiciário,
com o objetivo de garantir os direitos das pessoas com deficiência/transtornos
mentais no sistema penal e nas medidas de segurança. A Resolução CNJ 487/2023
determinou, no prazo de 1 ano, o fechamento de unidades penais com
características asilares, mas, até o momento, poucos estados cumpriram
integralmente a medida. São Paulo, por exemplo, onde se concentra grande parte
dos internos (51,3%), solicitou o adiamento do prazo. No Brasil, o total de
pessoas em HCTPs é de cerca de 1750 internos. Um dos principais obstáculos é a
dificuldade em encontrar responsáveis para cuidar desses pacientes, que muitas
vezes perderam o contato com suas famílias e a sociedade, ou moradias, como o
Serviço Residencial Terapêutico (SRT), destinadas a egressos de hospitais
psiquiátricos com internação de longa duração.
Mas há
histórias que tentam romper esse ciclo de abandono – e que mostram, também, os
efeitos persistentes da lógica manicomial, mesmo quando há afeto e presença. É
o caso de João, cuja trajetória também é marcada pela esperança, narrada por
seu irmão, Marcos. Em um sábado à tarde, encontrei Marcos visitando seu irmão
João, um dos moradores de um SRT de São Paulo. A lógica manicomial do descaso o
fez ser transferido, sem muito critério, de um HCTP para um Hospital
Psiquiátrico e, por isso, pôde sair de lá e ir morar em um SRT. Para preservar
suas identidades, os nomes estão alterados. O que quero mostrar é que, mesmo
quando a família não abandona, a lógica do isolamento psiquiátrico pode criar
um muro de distanciamento.
João
passou 27 anos de sua vida em hospitais psiquiátricos/HCTPs. Marcos nunca se
afastou, assim como o pai deles. “Meu pai morreu tentando tirar ele daqueles
lugares”, conta Marcos, com a voz embargada pela emoção.
Quando
João completou 20 anos, começou a apresentar comportamentos “diferentes”. Nessa
mesma época, trabalhava como office boy no mesmo escritório que seu pai,
Gerônimo. Mas um dia, a chefia chamou Gerônimo para informar que João seria
desligado: ele se recusava a sair para atividades externas, falava sobre homens
que o perseguiam e se envolvia em confusões. Em um episódio, invadiu uma
reunião, gritando que o café estava envenenado para matar seu chefe. Após a
demissão, João se fechou em casa. “Chorava dias e dias, ficava no quarto sem
tomar banho”, lembra Marcos. Um dia, Marcos recebeu uma ligação urgente: João
havia atacado sua prima com uma faca. Sua mãe tentou conter e desmaiou ao ver
toda a cena. Ambas ficaram feridas. Desesperado, tentou se matar. A justiça
determinou sua internação em um hospital de custódia, o antigo manicômio
judiciário.
Durante
onze anos, Gerônimo visitou o filho aos sábados, levando café e bolo feito por
Maria, sua esposa. Mas um dia, ouviu a sentença final: João jamais sairia dali.
“Esquizofrênico e com medida de segurança, a justiça o manteria lá”, lamenta
Marcos. Dois meses depois, Gerônimo descobriu um câncer. Antes de morrer, pediu
a Marcos que continuasse as visitas, levando o bolo de cenoura preferido de
João. Marcos cumpriu a promessa.
Marcos
descobriu que João havia sido transferido para outro hospital, mas em uma
cidade no interior de São Paulo. As transferências sem sentido, por discussões
entre internos ou mesmo por superlotação, revelam a lógica manicomial do
descaso no cuidado, uma história de horror nos longos anos de manicômios no
Brasil. E, ao acaso/descaso, a transferência não foi para outro HCTP e sim para
um Hospital Psiquiátrico. As visitas continuaram, agora mensais. As idas foram
se espaçando com o tempo. Marcos se casou dois anos após a morte de seu pai,
seguiu sua vida. Perguntou se João não poderia ir morar com ele, seria mais
fácil que dirigir 300 km para visitá-lo. A resposta foi categórica: ele nunca
será libertado. “Até quando eu aguentaria a promessa feita a meu pai? Já tinham
se passado treze anos desde o primeiro hospital!”, conta emocionado.
Em
2009, vinte anos após o surto psicótico que feriu sua mãe e prima, Marcos soube
que João seria transferido novamente, desta vez para um hospital psiquiátrico
em São Paulo. A equipe do hospital contou sobre a Lei 10.216/01; agora, João
poderia viver com sua família. Marcos fez um acordo com a equipe do hospital.
“Eu o visitava mensalmente, depois ficou difícil com a distância. Eu posso vir
todos os sábados. Minha esposa faleceu. Moro sozinho. Não tenho quem fique com
ele em casa. Cuidem dele aqui.”
Após
sete anos, surgiu a oportunidade de João morar em uma residência terapêutica.
Aos 62 anos, sua vida recomeçaria fora dos muros que, por tanto tempo,
definiram sua existência. Gerônimo se alegraria em saber que o filho teria de
novo uma casa. João retornou à cidade em uma tarde de segunda-feira. E, naquele
sábado, ao conhecer Marcos, em sua primeira visita ao irmão, fui recebido por
perguntas que ecoavam seu sofrimento: quem seria o vilão numa história marcada
por tantas atrocidades? Haveria, de fato, um culpado? Qual o papel do Estado no
destino dos pacientes psiquiátricos? E por que uma lei que promete mudanças só
surge agora? Essas inquietações, lançadas com a voz embargada e lágrimas
correndo pelo rosto de um senhor de setenta anos, tornaram-se também minhas.
Enquanto tentava explicar os caminhos e limites da Reforma Psiquiátrica,
buscava, ao mesmo tempo, acolher a dor de Marcos – uma dor que é também
coletiva.
Naquele
dia, nossa conversa esmiuçou as pequenas questões que se revelam monumentais no
início da jornada de reintegração. João agora desfruta de um guarda-roupa
próprio, uma cama só sua, seus pertences organizados e roupas lavadas com o
cuidado que merece. Começa, também, a lidar com as novidades de uma vida com
mais autonomia: os gastos com o barbeiro semanal, o táxi para consultas e os
passeios que vislumbra. O início dessa nova etapa, no entanto, escancara os
desafios de desaprender hábitos arraigados por anos de internação.
Há, por
exemplo, a insistência em levar para o quarto o prato usado, os restos de
comida escondidos, os chinelos sob o travesseiro – resquícios de um passado
manicomial que teimam em ressurgir. Como lidar com essas manifestações? Talvez
a resposta esteja em reafirmar, a cada gesto, que a Residência Terapêutica é,
antes de tudo, um espaço de resgate: a reconstrução paciente de uma
subjetividade que lhe foi negada por tanto tempo. Apesar do foco na perspectiva
de Marcos, é possível vislumbrar a experiência de João. Ele sorri e interage
com os outros moradores da residência, demonstra entusiasmo ao ir à padaria e à
banca de revistas. Contudo, a adaptação não é isenta de desafios. Por vezes,
João se mostra perplexo diante da modernidade, como ao observar pessoas
utilizando telefones celulares, expressando: “Isso é muito louco!”. Em momentos
de crise, o passado o assombra, manifestando o desejo de retornar à empresa
onde trabalhou ou à casa de sua família. A ausência da mãe também o aflige,
levando-o às lágrimas e a questionando por que ela não o visita.
É
fundamental ressaltar que casos como o de João representam a realidade de
muitos indivíduos com transtornos mentais que, em momentos de crise, cometeram
atos infracionais ou crimes. Longe de serem representativos da totalidade dos
pacientes em HCTPs, os casos de violência que ocasionalmente chegam à mídia
acabam por estigmatizar toda uma população que, em sua maioria, necessita de
cuidado, compreensão e oportunidades de reinserção social. É preciso
desmistificar a perigosa generalização que associa transtorno mental à
violência, reconhecendo que a imensa maioria dessas pessoas, como João, não
apresenta traços de psicopatia ou periculosidade inerente.
Há mais
de um século, pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei são
excluídas da sociedade, privadas de seus direitos e submetidas a tratamentos
inadequados, muitas vezes mais prejudiciais do que benéficos. Essa realidade
evidencia a necessidade urgente de combater o estigma, promover o diálogo entre
saúde e justiça e criar políticas públicas que respeitem os direitos humanos e
priorizem o cuidado adequado dessa população.
E, como
essa história ainda está sendo escrita, resta a certeza de que João poderá,
enfim, viver plenamente em um lar – em sua nova casa, a Residência Terapêutica.
Marcos, ao compartilhar comigo essa trajetória de lutas e a memória constante
do pai, sorri com a esperança renovada: “Agora, João pode voltar a ser um
cidadão!”.
Este
artigo é uma homenagem ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18
de maio. A data nos lembra da importância de lutar por uma sociedade mais justa
e inclusiva, onde as pessoas com transtornos mentais tenham seus direitos
garantidos e possam viver com dignidade e liberdade.
Fonte:
Por José Alberto Roza Júnior, na Cult

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