Brasil
Plurinacional: um caminho para o reconhecimento real da diversidade indígena
A
Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos originários dos povos
indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esse reconhecimento foi
um avanço, mas ainda insuficiente diante da complexidade sociocultural que
envolve mais de 300 povos distintos no território brasileiro. O artigo 231 da
Constituição trata os povos indígenas como um coletivo genérico, ignorando
muitas vezes a diversidade de línguas, modos de vida e organizações sociais.
Esse mesmo padrão aparece em instrumentos internacionais, como a Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da ONU sobre os
Direitos dos Povos Indígenas.
Na
prática, isso gera um impasse: como realizar a consulta prévia, livre e
informada prevista pela Convenção 169, se o Estado trata os povos como um único
sujeito de direito? Deve-se escutar todos os povos individualmente ou
considerar uma representação genérica? O desafio é mais que procedimental; é
estrutural e exige uma revisão da forma como o Brasil se compreende enquanto
Estado.
• O conceito de Estado plurinacional:
aprendizados da Bolívia e do Equador
A
plurinacionalidade é uma proposta de reorganização do Estado que reconhece a
existência de várias nações dentro de um mesmo país. Bolívia e Equador são
exemplos paradigmáticos na América do Sul. A nova Constituição boliviana, de
2009, declara a Bolívia como um “Estado plurinacional comunitário”,
reconhecendo 36 povos indígenas como nações com autonomia política,
territorial, jurídica e cultural (BOLÍVIA, 2009).
No
Equador, a Constituição de 2008 também adota a plurinacionalidade,
articulando-a com o conceito de interculturalidade — isto é, o convívio entre
diferentes culturas de maneira equitativa e respeitosa (EQUADOR, 2008).
O
reconhecimento de um Estado plurinacional implica reformas profundas: no
sistema político, na administração pública, no reconhecimento de sistemas
jurídicos indígenas e na educação. É um caminho de complexificação democrática
que, ao mesmo tempo, fortalece a coesão nacional por meio da valorização da
diversidade.
• Plurinacionalidade no Brasil: demandas e
perspectivas
No
Brasil, o conceito de Estado plurinacional vem ganhando força sobretudo entre lideranças
indígenas, intelectuais e movimentos sociais. Em 2022, o Instituto
Socioambiental (ISA) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
promoveram o evento “Estado Plurinacional: uma agenda para os povos indígenas
no Brasil”, que reuniu lideranças de todo o país para debater a necessidade de
uma mudança estrutural na relação entre Estado e povos indígenas (ISA, 2022).
Segundo
a liderança indígena Sônia Guajajara, atual ministra dos Povos Indígenas,
“reconhecer o Brasil como plurinacional é reconhecer os saberes, os sistemas de
vida e de governança indígena como legítimos e constituintes da nação” (ISA,
2022). Para isso, é necessário romper com a visão colonial de tutela e avançar
na autonomia dos povos sobre seus territórios, línguas, formas de justiça e
modelos de desenvolvimento.
• Os dados do Censo e a invisibilidade nos
centros urbanos
Apesar
da importância de tais debates, o Censo Demográfico de 2022 do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não divulgou o número de povos
indígenas no país, o que compromete gravemente a formulação de políticas
públicas específicas. A omissão desses dados dificulta a elaboração de ações
voltadas às realidades distintas dos mais de 300 povos existentes no território
nacional, apagando suas singularidades culturais e políticas.
O mesmo
Censo apontou um crescimento expressivo da população indígena, revelando também
que a maioria dos indígenas vive fora de seus territórios tradicionais — em
cidades, periferias e, sobretudo, em favelas. Essa dispersão urbana indica que
grande parte da população indígena está sem acesso a políticas públicas
fundamentais, como o direito à terra, à saúde indígena diferenciada, à educação
bilíngue e intercultural, e à segurança alimentar.
Esse
cenário revela um dos maiores desafios ao Estado brasileiro: garantir os
direitos originários a toda pessoa indígena, independentemente de onde ela
vive. Como assegurar terra e cultura a quem está nas metrópoles? Como atender
às demandas específicas de quem vive nas margens urbanas? Será que um Estado
plurinacional daria conta de responder a essa realidade multifacetada? Eis a
provocação que se impõe.
• O impacto jurídico e institucional do
reconhecimento plurinacional
Um
Brasil plurinacional teria consequências jurídicas e institucionais relevantes.
O sistema de justiça precisaria reconhecer formas próprias de resolução de
conflitos dentro dos territórios indígenas. As escolas poderiam ser geridas
pelos próprios povos, com currículos construídos a partir de suas cosmologias e
necessidades locais. Os processos de licenciamento ambiental e consulta prévia
deixariam de ser apenas uma formalidade burocrática para se tornarem expressões
reais de soberania compartilhada.
A
diversidade de povos deixaria de ser apenas cultural ou simbólica para assumir
peso político. Como explica Bartolomé Clavero, jurista espanhol e especialista
em direitos indígenas, “a plurinacionalidade é um princípio constitucional que
impede a homogeneização do Estado sob uma identidade única e hegemônica”
(CLAVERO, 2005).
• Desafios e caminhos possíveis
Ainda
que a plurinacionalidade represente uma possibilidade concreta para o Brasil,
os desafios não são poucos. Há resistências institucionais, econômicas e
ideológicas. A elite política e setores do agronegócio veem a ampliação dos
direitos indígenas como ameaça. Além disso, o próprio sistema federativo
brasileiro, baseado na autonomia de estados e municípios, precisaria ser
revisto para acomodar a existência de “nações” dentro da nação.
Contudo,
experiências de etnogênese, ressurgimentos étnicos e fortalecimento das
organizações indígenas mostram que esse processo já está em curso, ainda que
não formalizado. O reconhecimento de um Estado plurinacional seria, antes de
tudo, uma adequação da Constituição brasileira à realidade viva e dinâmica dos
povos indígenas.
• Por um Brasil que se reconhece em sua
própria diversidade
Mais do
que uma reforma jurídica, a plurinacionalidade é um projeto civilizatório. É o
reconhecimento de que não há um único Brasil, mas muitos brasis coexistindo.
Reconhecer a plurinacionalidade é um ato de justiça histórica, de reparação e,
sobretudo, de abertura para uma democracia verdadeiramente inclusiva.
Como
afirmou o jurista indígena Dinamam Tuxá, “não queremos ser incluídos num
sistema que nos oprime; queremos transformar o sistema com a nossa maneira de
viver, com nossos valores e nossa visão de mundo” (ISA, 2022). O Brasil do
futuro começa por esse reconhecimento.
Fonte:
Por Sassá Tupinambá, no Correio da Cidadania

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