quarta-feira, 21 de maio de 2025

Brasil Plurinacional: um caminho para o reconhecimento real da diversidade indígena

A Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Esse reconhecimento foi um avanço, mas ainda insuficiente diante da complexidade sociocultural que envolve mais de 300 povos distintos no território brasileiro. O artigo 231 da Constituição trata os povos indígenas como um coletivo genérico, ignorando muitas vezes a diversidade de línguas, modos de vida e organizações sociais. Esse mesmo padrão aparece em instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Na prática, isso gera um impasse: como realizar a consulta prévia, livre e informada prevista pela Convenção 169, se o Estado trata os povos como um único sujeito de direito? Deve-se escutar todos os povos individualmente ou considerar uma representação genérica? O desafio é mais que procedimental; é estrutural e exige uma revisão da forma como o Brasil se compreende enquanto Estado.

•        O conceito de Estado plurinacional: aprendizados da Bolívia e do Equador

A plurinacionalidade é uma proposta de reorganização do Estado que reconhece a existência de várias nações dentro de um mesmo país. Bolívia e Equador são exemplos paradigmáticos na América do Sul. A nova Constituição boliviana, de 2009, declara a Bolívia como um “Estado plurinacional comunitário”, reconhecendo 36 povos indígenas como nações com autonomia política, territorial, jurídica e cultural (BOLÍVIA, 2009).

No Equador, a Constituição de 2008 também adota a plurinacionalidade, articulando-a com o conceito de interculturalidade — isto é, o convívio entre diferentes culturas de maneira equitativa e respeitosa (EQUADOR, 2008).

O reconhecimento de um Estado plurinacional implica reformas profundas: no sistema político, na administração pública, no reconhecimento de sistemas jurídicos indígenas e na educação. É um caminho de complexificação democrática que, ao mesmo tempo, fortalece a coesão nacional por meio da valorização da diversidade.

•        Plurinacionalidade no Brasil: demandas e perspectivas

No Brasil, o conceito de Estado plurinacional vem ganhando força sobretudo entre lideranças indígenas, intelectuais e movimentos sociais. Em 2022, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) promoveram o evento “Estado Plurinacional: uma agenda para os povos indígenas no Brasil”, que reuniu lideranças de todo o país para debater a necessidade de uma mudança estrutural na relação entre Estado e povos indígenas (ISA, 2022).

Segundo a liderança indígena Sônia Guajajara, atual ministra dos Povos Indígenas, “reconhecer o Brasil como plurinacional é reconhecer os saberes, os sistemas de vida e de governança indígena como legítimos e constituintes da nação” (ISA, 2022). Para isso, é necessário romper com a visão colonial de tutela e avançar na autonomia dos povos sobre seus territórios, línguas, formas de justiça e modelos de desenvolvimento.

•        Os dados do Censo e a invisibilidade nos centros urbanos

Apesar da importância de tais debates, o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não divulgou o número de povos indígenas no país, o que compromete gravemente a formulação de políticas públicas específicas. A omissão desses dados dificulta a elaboração de ações voltadas às realidades distintas dos mais de 300 povos existentes no território nacional, apagando suas singularidades culturais e políticas.

O mesmo Censo apontou um crescimento expressivo da população indígena, revelando também que a maioria dos indígenas vive fora de seus territórios tradicionais — em cidades, periferias e, sobretudo, em favelas. Essa dispersão urbana indica que grande parte da população indígena está sem acesso a políticas públicas fundamentais, como o direito à terra, à saúde indígena diferenciada, à educação bilíngue e intercultural, e à segurança alimentar.

Esse cenário revela um dos maiores desafios ao Estado brasileiro: garantir os direitos originários a toda pessoa indígena, independentemente de onde ela vive. Como assegurar terra e cultura a quem está nas metrópoles? Como atender às demandas específicas de quem vive nas margens urbanas? Será que um Estado plurinacional daria conta de responder a essa realidade multifacetada? Eis a provocação que se impõe.

•        O impacto jurídico e institucional do reconhecimento plurinacional

Um Brasil plurinacional teria consequências jurídicas e institucionais relevantes. O sistema de justiça precisaria reconhecer formas próprias de resolução de conflitos dentro dos territórios indígenas. As escolas poderiam ser geridas pelos próprios povos, com currículos construídos a partir de suas cosmologias e necessidades locais. Os processos de licenciamento ambiental e consulta prévia deixariam de ser apenas uma formalidade burocrática para se tornarem expressões reais de soberania compartilhada.

A diversidade de povos deixaria de ser apenas cultural ou simbólica para assumir peso político. Como explica Bartolomé Clavero, jurista espanhol e especialista em direitos indígenas, “a plurinacionalidade é um princípio constitucional que impede a homogeneização do Estado sob uma identidade única e hegemônica” (CLAVERO, 2005).

•        Desafios e caminhos possíveis

Ainda que a plurinacionalidade represente uma possibilidade concreta para o Brasil, os desafios não são poucos. Há resistências institucionais, econômicas e ideológicas. A elite política e setores do agronegócio veem a ampliação dos direitos indígenas como ameaça. Além disso, o próprio sistema federativo brasileiro, baseado na autonomia de estados e municípios, precisaria ser revisto para acomodar a existência de “nações” dentro da nação.

Contudo, experiências de etnogênese, ressurgimentos étnicos e fortalecimento das organizações indígenas mostram que esse processo já está em curso, ainda que não formalizado. O reconhecimento de um Estado plurinacional seria, antes de tudo, uma adequação da Constituição brasileira à realidade viva e dinâmica dos povos indígenas.

•        Por um Brasil que se reconhece em sua própria diversidade

Mais do que uma reforma jurídica, a plurinacionalidade é um projeto civilizatório. É o reconhecimento de que não há um único Brasil, mas muitos brasis coexistindo. Reconhecer a plurinacionalidade é um ato de justiça histórica, de reparação e, sobretudo, de abertura para uma democracia verdadeiramente inclusiva.

Como afirmou o jurista indígena Dinamam Tuxá, “não queremos ser incluídos num sistema que nos oprime; queremos transformar o sistema com a nossa maneira de viver, com nossos valores e nossa visão de mundo” (ISA, 2022). O Brasil do futuro começa por esse reconhecimento.

 

Fonte: Por Sassá Tupinambá, no Correio da Cidadania

 

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