Reconhecimento
facial racista: prisão virou mercadoria para empresas, diz pesquisador
Em
abril de 2024, João Antônio Trindade Bastos, jovem negro de 23 anos, foi detido durante um jogo
de futebol de seu time, em Aracaju. Um ano depois, na cidade de São Paulo,
Francisco Ferreira da Silva, aposentado de 80 anos, foi levado à delegacia
enquanto fazia um trabalho voluntário. Ambos foram identificados e confundidos
por meio de sistemas de reconhecimento facial. Eles só conseguiram ser
liberados após a polícia confirmar o erro. Esses casos e outros similares são exemplos
recentes que refletem um padrão histórico de prisões injustas contra a
população negra.
O Pauta
Pública desta semana debate os limites e os riscos do uso da tecnologia de
reconhecimento facial, especialmente quando aplicada à segurança pública. O
entrevistado é Pedro Diogo Carvalho, coordenador de Vigilância e Novas
Tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e
integrante da campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira. Ele vê com preocupação o
aumento da implantação de programas de vigilância digital e defende que mais
tecnologia não significa mais segurança, principalmente quando ela reforça
desigualdades históricas e viola direitos fundamentais.
“Esses
sistemas [de reconhecimento facial] vão reproduzir padrões racistas e atualizam
a vigilância que já existe em relação à população negra e às populações mais
economicamente desfavorecidas. […] A prisão virou uma mercadoria, porque aquilo
ali está funcionando numa lógica muito comercial: é a relação entre Estado,
empresa e tecnologia.[…] Mais armas, mais uso de câmeras não quer dizer uma
melhoria na segurança pública.” Leia os principais pontos abaixo.
·
O projeto Smart Sampa, em São Paulo, prevê a instalação
de até 40 mil câmeras com reconhecimento facial. Como você avalia os impactos
da expansão do uso dessas câmeras de segurança sob o argumento de controle da
criminalidade para os direitos civis, sobretudo de populações negras e
periféricas?
O
projeto Smart Sampa está ligado a uma tendência nacional de implantação dessas
tecnologias de reconhecimento facial em redes de videomonitoramento, que não é
algo novo. Desde 2019 a gente vê essa
tendência, iniciada na Bahia, inclusive. A Bahia foi um estado que se tornou
como protagonista da utilização desses sistemas e foi algo que foi se
espalhando em todo o território nacional e agora ganha bastante destaque com o
uso bem midiático das câmeras a partir da prefeitura do Ricardo Nunes, que usa
o Smart Sampa como um grande elemento eleitoral, um grande elemento de destaque
da sua gestão na prefeitura.
A
sociedade civil como um todo vê o uso dessas câmeras como uma grande
problemática da segurança pública na atualidade, tendo em vista os modos como
esses sistemas levam à expansão das ações policiais, sobretudo em relação à
população negra, mas também pelos processos de discriminação algorítmica que
existem na utilização desses sistemas. Por um lado, a gente vê os problemas dos
falsos positivos, das prisões injustas, mas em especial a gente vê o modo como
esses sistemas atualizam a vigilância que já existe em relação à população
negra e às populações mais economicamente desfavorecidas.
A
assertividade penal, que já é um problema comum ao sistema de justiça criminal
no Brasil inteiro, é atualizado a partir dessas tecnologias de vídeo
monitoramento, que expandem essa lógica. E, por outro lado, tem esse caráter de
reafirmação do discurso populista penal, esse populismo penal, esse senso comum
que é verificado na ideia de mais polícia, quer dizer, mais segurança, o que
vemos cada vez mais como uma não realidade. A gente percebe que mais polícia,
mais armas, mais uso de câmeras não quer dizer uma melhoria na segurança
pública.
·
Por que as câmeras de vigilância são consideradas como
ferramentas racistas? De que maneira elas podem aprofundar essa seletividade
penal?
Sistemas
de reconhecimento facial são construídos por desenvolvedores e eles precisam
ser treinados a reconhecer pessoas. Eles são como uma criança sendo robotizada.
Eles precisam ser treinados a poder fazer identificação, poder fazer
reconhecimento e são os algoritmos que atuam em cada função que eles fazem.Eles
reconhecem pontos na face, identificam padrões. E como eles aprendem a fazer
isso? Eles aprendem recebendo uma base enorme de rostos, de faces. E aí eles
vão aprender a identificar aquilo.
Esse
conjunto de dados é chamado de base de treinamento. O que foi identificado por
vários pesquisadores, é que essas bases de dados eram formadas por processos de
sub-representação e sobre-representação. Ou seja, existiam muitos rostos
brancos nessas bases de dados e existiam poucos rostos negros, assim como
existiam muitos rostos de homens e poucos rostos de mulheres. Isso leva ao quê?
A problemas em identificar rostos de mulheres negras e de homens negros e uma
maior capacidade de identificar rostos brancos. Isso não quer dizer que não
errava com rostos brancos. Isso quer dizer que eles tinham uma taxa de erro
menor em relação aos rostos negros.
Eles
têm problemas em identificar qualquer pessoa. Erros de sistemas tecnológicos
são a base da tecnologia. Toda tecnologia erra, toda tecnologia tem uma taxa de
erro. Então, inclusive, não acredite quando a prefeitura ou o governo do estado
diz que não há erros, porque vai ter erro. E, para além disso, um sistema
tecnológico, ele não pode ser visto fora da realidade social onde ele vai ser
implantado. Então, se você está incluindo um sistema de videomonitoramento com
reconhecimento facial, conectado a uma base de dados de uma polícia que tem um
histórico de violência racial, esse sistema vai produzir padrões racistas.
Isso
quer dizer o quê? Que esse sistema vai reproduzir padrões racistas de
perseguição e de monitoramento. Padrão de perseguição que já está colocado e
que a gente sabe que são as populações negras, são as populações economicamente
desfavorecidas em uma sociedade extremamente injusta como é a cidade
brasileira.
·
A campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira, que você faz
parte, defende o banimento total do uso do reconhecimento facial na segurança
pública. Qual seria o caminho alternativo para garantir segurança pública sem
abrir mão dos direitos fundamentais à privacidade e à não-discriminação?
A
segurança pública realmente é um dos problemas mais sensíveis que tem na
realidade política brasileira atual, e ela toca em muitos clamores e muitos
pontos, mas eu acho que o primeiro ponto que a gente precisa seguir é a ideia
que segurança pública é política pública. E uma política pública precisa de
planejamento, precisa de participação social, de transparência e que os dados
sejam compartilhados com a população, entendendo também as particularidades de
segurança de confidencialidade que existem. Esse é o primeiro ponto que a gente
precisa compreender.
Recentemente,
o LAPIN (Laboratório de Políticas Públicas Internet), que faço parte, e o
Panóptico, que é uma equipe dos Centros de Estudos em Segurança e Cidadania,
que faz o monitoramento de iniciativas de reconhecimento facial pelo território
nacional, fizemos um trabalho em conjunto. Foi sobre o mapeamento de
transparência em iniciativas de reconhecimento facial pelo Brasil. Pegamos mais
de 90 iniciativas e buscamos entender quais eram os graus de transparência que
tinham nessas iniciativas. A gente percebeu que eram muito baixos, no
território nacional, em todos os estados e em todos os municípios. Então, a
transparência mostra como a segurança pública não está sendo vista como
política pública. O caminho alternativo é pensar a segurança pública como política
pública.
O
segundo ponto é que precisamos enfrentar diretamente um paradigma de segurança
pública baseado na guerra de drogas e em uma lógica militarizada de trabalho
policial e de segurança pública. Essa lógica do encarceramento em massa, que é
voltada em relação a guerra de drogas e uma lógica militarizada de polícia, é
um dos grandes fatores do crescimento de organizações criminosas e facções pelo
território nacional. As grandes facções nascem no encarceramento em massa.
Então, essa lógica não funciona para garantir maior segurança para a população.
A gente precisa enfrentar esse paradigma.
Temos
mais de 30 anos de Constituição cidadã. Precisamos pensar que saímos da ditadura
e fomos para a democracia, mas três anos depois da Constituição de 88, tivemos
o massacre de Carandiru. Então, a inauguração da República Brasileira foi com
vários massacres acontecendo. Precisamos questionar esse processo, esse é o
caminho, pensar a segurança pública com política pública e questionar um
sistema de justiça criminal que parece vinculado à violência de Estado como
praxe do que funciona nesse país.
A
sociedade evidencia o populismo penal, evidencia o racismo com base no sistema
de justiça criminal e as heranças da militarização das agências policiais no
Brasil. Não podemos naturalizar a falta de transparência, a falta do
entendimento de segurança pública como política pública. A partir do
reconhecimento facial, podemos começar a construir uma agenda alternativa para
a segurança pública no Brasil.
¨
Prefeitura barrou atuação de coletivos na Cracolândia
dias antes de região ser esvaziada. Por Amanda Audi
Uma
semana antes do esvaziamento súbito da Cracolândia,
no centro de São Paulo, grupos que atuam com práticas de redução de danos foram
impedidos de entrar na região do chamado “fluxo”. A proibição foi fundamentada
por uma diretriz da Prefeitura de São Paulo de dezembro de 2023, que teria sido
aplicada só agora, segundo grupos ouvidos pela Agência Pública.
O documento foi apresentado
por guardas municipais para quem tentasse atuar no local durante a semana
passada, ao menos desde o dia 5 de maio, segunda-feira. No domingo, dia 11, a
Cracolândia amanheceu completamente vazia.
O
ofício impõe que atividades “fora da rotina” que possam causar aglomerações ou
gerar “sons e ruídos adicionais” só podem acontecer após autorização da
subprefeitura da Sé. A medida, segundo o ofício, visa “reduzir conflitos e
perturbação do sossego” de moradores e comerciantes. Ele também determina que
entidades que atuam no local deveriam ser previamente orientadas. Mas os grupos
dizem que foram pegos de surpresa.
O
documento é assinado por Edson Aparecido, secretário de Governo Municipal, e
Edsom Ortega, secretário de Projetos Estratégicos da gestão Ricardo Nunes
(MDB-SP). Ortega é o responsável pela zeladoria e segurança da Cracolândia.
Suas medidas para o local, porém, são criticadas por defensores dos direitos
humanos – como a instalação de grades que ocupam um
terço da rua. Em 2012, quando fazia parte da administração de Gilberto Kassab,
Ortega chegou a proibir a
distribuição de marmitas no centro.
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Dificuldades de acessar a Cracolândia
Grupos
de redução de danos costumam usar atividades culturais ou lúdicas para ganhar a
confiança de pessoas em situação de vulnerabilidade e, assim, trocar ideias
sobre cuidados de saúde, orientações e até a redução do uso de substâncias.
A
reportagem recebeu relatos de que eles vinham sendo impedidos de entrar na
Cracolândia desde o fim do ano passado, sem justificativa. “No começo, os
guardas não sabiam dizer por quê nos impediam de entrar. Depois [a partir de
maio deste ano], apresentaram esse documento [de 2023]. A gente acredita que
esse impedimento já era uma estratégia para o que está acontecendo agora: esse
espalhamento da Cracolândia com violência”, afirma Marquinho Maia, do coletivo
Pagode na Lata, que há oito anos realiza rodas de samba como forma de criar
vínculo com usuários. “Eu conheço pelo menos quatro, cinco pessoas machucadas
pela violência da polícia.”
O veto
também atingiu outros grupos, como o TTT (Teto, Trampo e Tratamento), que faz
atividades circenses, e o Cine Fluxo, de cinema. Flávio Falcone, médico e
integrante do TTT, relata que ele e outros colegas foram obrigados a se retirar
da região após abordagem direta da guarda municipal no último dia 9 de maio.
“O
guarda falou assim: ‘Ligamos agora para o secretário Edsom Ortega e ele disse
que o projeto não está autorizado a fazer atividade no fluxo. Eu peço que vocês
se retirem’”, disse o médico, que acatou a ordem. O Pagode na Lata e o TTT
afirmam que só puderam acessar a Cracolândia nos últimos meses em situações em
que estavam acompanhados da imprensa. “Estamos vivendo uma guerra contra a
redução de danos”, aponta Falcone.
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Esvaziamento suspeito
Nesta
semana, representantes da Defensoria Pública de São Paulo fizeram uma reunião
com integrantes da prefeitura para tentar entender onde foram parar as pessoas
que costumavam permanecer na região. Ouviram, segundo relatos, a mesma
explicação que a prefeitura vem dando: que elas teriam sido encaminhadas a
serviços públicos, sem especificar onde e nem como. Uma pessoa que estava
presente citou o encontro como “bizarro”.
Em
resposta à reportagem, a Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos da
prefeitura respondeu que mantém diálogo com os movimentos e que se reuniu com
representantes deles recentemente. Afirmou ainda que, entre janeiro e março de
2025, foram realizados 7.525 encaminhamentos de pessoas em situação de
vulnerabilidade do fluxo para serviços públicos na região, que seria um aumento
de 20% do que no mesmo período do ano anterior. Ainda segundo a prefeitura, a
média de pessoas presentes no fluxo no período da tarde caiu de 651, em 6 de
maio de 2024, para 103 em 6 de maio de 2025.
A
versão, porém, é contestada por parlamentares e defensores de direitos humanos.
O mandato do deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) oficiou a Prefeitura, a
Secretaria de Assistência Social, a Secretaria de Saúde e o próprio Edsom
Ortega sobre a proibição.
“O
ofício assinado por Ortega determina que as atividades no fluxo só podem
ocorrer com autorização da subprefeitura da Sé, mesmo que se enquadrem na Lei
do Artista de Rua, que dispensa autorização prévia. Isso inviabiliza as ações
dos coletivos, mesmo as que estavam ocorrendo há anos, de forma pacífica e
contínua”, diz Amanda Amparo, pesquisadora e assessora do deputado.
“Tudo
isso indica que o afastamento dos coletivos é mais uma forma de fragilizar
essas pessoas. É um desgaste deliberado, uma estratégia para afastá-las do
território”, aponta.
O Grupo
de Trabalho Interinstitucional na Assembleia Legislativa de São Paulo sobre a
Cracolândia está preparando um relatório com denúncias recebidas de violações
de direitos humanos, incluindo violência física por parte da GCM, revistas
vexatórias, insultos racistas e até casos de dinheiro rasgado na frente dos
usuários. O documento deve ser apresentado nos próximos dias.
Fonte:
Por Andrea DiP, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, Rafaela de
Oliveira, em Agência Pública

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