Como
teorias esotéricas que negavam a ciência ajudaram a criar o nazismo
Ministro
da Propaganda do regime nazista que vigorou na Alemanha e visto como um dos
mais fanáticos ideólogos da política extremista de Adolf Hitler (1889-1945),
Paul Joseph Goebbels indicou em seu diário, no dia 23 de novembro de 1939, uma
curiosa fonte de inspiração:
"Fui
para a cama cedo. Passei um longo tempo lendo as profecias de Nostradamus,
muito interessantes para nós hoje."
Michel
de Nostredame (1503-1566), o Nostradamus, foi um astrólogo, médico e futurólogo
francês que se tornou conhecido por uma coletânea de 942 pequenos textos
enigmáticos que supostamente previam eventos futuros.
No seu
diário, Goebbels acrescentou que havia falado com Hitler "sobre as
profecias". "Considerando os tempos em que vivemos, elas são
surpreendentes. O Führer está muito interessado", pontuou.
Segundo
estudos do historiador americano Eric Kurlander, professor na Universidade
Stetson, na Flórida, e autor do livro Os Monstros de Hitler - Uma história
sobrenatural do Terceiro Reich, cuja tradução brasileira foi lançada há pouco
pelo selo Zahar, este viés esotérico não é um fato isolado nas bases do nazismo
que devastou a Europa e impactou a história do mundo no século 20.
Longe
das leituras convencionais que abordam o nazismo apenas sob as lentes da
geopolítica, economia ou ideologia racista, Kurlander mergulha no submundo
esotérico que permeou o pensamento e as práticas do regime de Hitler, revelando
como o imaginário sobrenatural foi central para a construção simbólica e
prática do nazismo.
"Eu
mostro que Hitler leu um livro chamado Magia: História, Teoria e Prática, de um
parapsicólogo que claramente lhe enviou o livro do nada", comenta o
historiador, em entrevista à BBC News Brasil. A obra foi escrita por um
excêntrico pensador alemão chamado Ernest Schertel (1884-1958).
De
acordo com Kurlander, o livro integrava a biblioteca pessoal de Hitler e havia
no seu exemplar 66 marcações, provavelmente feitas pelo próprio comandante
nazista.
Entre
as frases sublinhadas estavam "Satã é o guerreiro fertilizador, destruidor
e construtor" e "Aquele que não carrega sementes demoníacas dentro de
si nunca dará à luz um novo mundo".
"Por
que um parapsicólogo que estava envolvido em práticas cabalísticas nuas e em
danças tântricas estranhas na Índia havia decidido que Hitler, dentre todos os
políticos, seria a pessoa para quem ele deveria enviar o livro?", provoca
Kurlander.
"Há
algo na forma como Hitler falava e agia que estava conectado à magia."
Cuidadoso,
o historiador lembra que "não está claro se Hitler acreditava em magia,
mas ele estudava como as pessoas que pensavam como Schertel poderiam ser
manipuladas". E, sobre isso, há outras evidências.
"Em
Mein Kampf ['Minha Luta', livro escrito pelo próprio Hitler], ele diz que não
podemos mais ser um movimento de errantes vestidos com peles de urso. Por que
um político moderno diria isso?', questiona.
"Porque
o movimento folclórico que Hitler conhecia bem, surgido nos anos 1890, tinha um
bando de pessoas indo para a floresta vestidas com roupas de animais, falando
sobre Odin e seus lobos, sobre medicina homeopática, sobre ervas, natureza,
sangue e solo. Ele sabia que daí vinha muito do seu apoio."
Um dos
principais nomes do partido nazista, Heinrich Himmler (1900-1945) era
entusiasta da medicina alternativa, fã do ocultismo e, como frisa Kurlander,
vivia obcecado por curas naturais e por métodos como a homeopatia.
No
livro, Kurlander conta que Himmler era um dos apoiadores de uma "doutrina
extravagante" chamada de "cosmogonia glacial".
Segundo
a postulação, "a história, a ciência e religião poderiam ser explicadas
por luas de gelo que atingiram a Terra em tempos pré-históricos".
A
partir de uma longa pesquisa de cerca de dez anos a partir de "farta
documentação", o historiador diz que "nenhum movimento político de
massas, à exceção do nazismo, recorreu de forma tão consciente e consistente ao
que chamo de 'imaginário sobrenatural'".
Neste
escopo ele inclui o ocultismo, a ciência fronteiriça, o paganismo, as religiões
new age e orientais, o folclore, a mitologia e várias outras doutrinas
sobrenaturais.
De
acordo com Kurlander, esse conjunto de crenças e ideologias foi fundamental
"para atrair uma geração de alemães e alemãs que buscavam novas formas de
espiritualidade e explicações inovadoras para o mundo, situadas entre a
verificabilidade científica e as verdades propagadas pela religião
tradicional".
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O mito da raça superior
O
historiador conta que foi observando a presença de pseudociências e teorias
conspiratórias no meio extremista de direita contemporâneo que ele resolveu
mirar na história e buscar essas raízes na ascensão do nazifascismo.
"As
pessoas não têm levado a sério o papel do pensamento conspiratório, dos
argumentos sobrenaturais e baseados na fé no surgimento do nazismo",
comenta.
A
pesquisa de Kurlander é meticulosa, baseada em arquivos alemães e fontes
primárias que sustentam uma narrativa ousada: a de que o nazismo foi o único
movimento de massas do século 20 a institucionalizar práticas e crenças
sobrenaturais em larga escala.
Se
recentemente o mundo assiste a uma renitente onda de conspiracionistas e
negacionistas, dos que duvidam do benefício de vacinas aos que veem uma trama
persecutória nas instituições públicas, passando pelos terraplanistas, a virada
do século 20 teve, sobretudo na Europa, a coexistência de doutrinas de diversas
vertentes hoje vistas como pseudocientíficas.
A
chamada moderna teosofia — conjunto de doutrinas místicas e ocultistas que
buscavam o conhecimento dos mistérios do universo — havia sido sistematizada
pela russa Helena Blavatsky (1831-1891).
De
origem austro-húngara, o filósofo esotérico Rudolf Steiner (1861-1925) lançava
as bases da chamada antroposofia, da pedagogia Waldorf, da agricultura
biodinâmica e da medicina antroposófica.
Uma
outra vertente era a dos ariosofistas, corrente que se destacava no revival
ocultista alemão que valorizava o misticismo germânico.
Neste
caldo — em geral teóricos da conspiração aderem a um conjunto dessas doutrinas,
e não apenas a uma delas —, proliferou a crença de que uma raça superior de
humanos teria surgido no Vale do Indo, na Ásia, e migrado para o norte da
Europa dando origem ao povo que ali vivia.
Em
agosto de 1918, um grupo de pensadores fundou em Munique a chamada Sociedade
Thule, um união secreta de estudos místicos que pretendia promover antigas
tradições ancestrais europeias. Com ênfase no ocultismo, seus integrantes
enxergavam os alemães como dotados de superioridade racial.
A Thule
está na raiz do que mais tarde viria a se tornar o Partido Nacional Socialista
Alemão dos Trabalhadores, o partido nazista que deu sustentação ao regime de
Adolf Hitler.
De
acordo com Kurlander, não é à toa, portanto, que o símbolo do nazismo tenha
sido um ícone do universo ocultista, a suástica, e não um emblema de apelo
nacionalista.
Quando
os nazistas estavam no poder, houve investimentos no misticismo.
Por um
lado, algumas manifestações ocultistas eram reprimidas ou censuradas —
horóscopos não aprovados pelo partido não eram aceitos. Por outro, ideias
pseudocientíficas contaram com o aparato do Estado.
Por
exemplo as expedições enviadas por Himmler para o Tibete, considerado o refúgio
místico original dos arianos.
Em
1935, Himmler criou um instituto de pesquisa estatal chamado de Comunidade para
a Pesquisa e o Ensino sobre a Herança Ancestral, e era este organismo que
concentrava os aparatos instrumental e intelectual para as investigações
pseudocientíficas que visavam a provar uma suposta superioridade ariana.
De
acordo com Kurlander, a entidade tinha uma divisão especial, com 14
funcionários, dedicado ao estudo das bruxas.
O saber
pseudocientífico era tão valorizado pelos nazistas que o regime chegou a criar,
como aponta o historiador, o Instituto do Pêndulo, dedicado a realizar
pesquisas de radiestesia em tempos de Guerra Mundial.
Radiestesia
é uma técnica de adivinhação de base esotérica que consiste em usar bastões
para encontrar objetos ou substâncias.
Em um
movimento que pode ser considerado a sistematização da irracionalidade,
Kurlander aponta que a pseudociência estava por trás de toda uma série de
experimentos nefastos feitos por alemães durante o regime nazista, utilizando
prisioneiros judeus muitas vezes como cobaias.
Foi o
ápice da pseudociência aplicada ao horror: os experimentos humanos, a eugenia e
o genocídio eram justificados por doutrinas esotéricas de purificação e carma
racial.
A
"ciência monstruosa" do nazismo, ao mesmo tempo moderna e arcaica,
servia para racionalizar o extermínio em nome de uma suposta regeneração
espiritual e biológica.
Ao
longo da Segunda Guerra, astrologia, clarividência, radiestesia e telepatia
foram empregadas para decisões militares e espionagem.
O
regime financiou experimentos e pesquisas esotéricas em plena guerra, tentando
prever movimentos aliados ou encontrar submarinos inimigos com pêndulos.
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Negação ao progresso
O
historiador recorda que desde os anos 1930 há "um debate sobre se o
fascismo estava ligado ao irracional, ao conspiratório ao místico".
"Era
a hora de voltar aos arquivos e ver o que era de fato verdade e o que não
era", diz. "Tanto por interesse intrínseco de minha área quanto pela
relevância atual", acrescenta.
Ele
concluiu que a onda esotérica se desenvolveu como uma reação ao Iluminismo e à
Revolução Industrial.
"Houve
uma reação, romântica, de pessoas, muitas vezes muito inteligentes, que se
sentiam frustradas com a ênfase ao materialismo, à ciência, ao secularismo e às
soluções institucionais para os problemas políticos", afirma.
"Havia
um número considerável de pessoas, a partir da primeira metade do século 19,
negando os avanços tecnológicos e científicos, dizendo 'eu não gosto disso,
isso não combina com a minha intuição, isso não me faz me sentir importante',
contextualiza.
Para
essas pessoas, os avanços tecnocientíficos botavam em xeque a valorização de
suas raízes, a religiosidade e as experiências pessoais. Como se o secularismo
que se desenhava então negasse as "entidades místicas que dariam força,
vigor, sentimento e emoção", diz o historiador.
O
revival místico europeu foi, portanto, uma reação forte ao cientificismo que
grassava.
Por
volta de 1890, configura-se o que ele chama de "um movimento cultural de
pessoas procurando alguma alternativa ao materialismo".
"Elas
começam a recorrer, como argumento, ao que eu chamo de imaginário sobrenatural.
Se você tem uma visão romântica do mundo, você não gosta do materialismo e da
ciência, então você precisa de uma forma de dar sentido ao mundo", afirma.
Kurlander
aponta que essas pessoas acabam constituindo os "pilares do imaginário
sobrenatural". Em outras palavras, apoiam-se em doutrinas ocultistas ou
esotéricas e isso dá espaço para teorias como a antroposofia, a teosofia, a
ariosofia e uma série de manifestações centradas na mitologia.
"Uma
visão de um passado perdido que era maior e mais puro, com gigantes de gelo,
castelos e um mundo não corrompido pela industrialização", diz.
É
quando também se consolida aquilo que o autor classifica como "ciências de
fronteira".
"Gente
dizendo 'somos cientistas mas conseguimos encontrar respostas com raios
secretos sob a terra, poderes mágicos, telepatia, clarividência', coisas que os
cientistas materialistas tradicionais não conseguem encontrar", comenta.
"Tudo
isso surge com muita força antes da Primeira Guerra Mundial, como uma resposta
ao desencantamento do mundo. A religião tradicional desaparece e as pessoas
precisam de algo para preencher esse vazio", analisa.
"Recorrem
à astrologia, à parapsicologia, à teoria da cosmogonia glacial, ao folclore, à
medicina homeopática… Isso estava como uma reação romântica à
modernidade."
Kurlander
então situa que a Alemanha entre as duas guerras mundiais se tornou terreno
fértil para a proliferação dessas teorias por conta da profunda crise e da
sensação local de que havia contra os alemães uma certa injustiça por parte do
restante do mundo. "Isso que os fascistas exploraram. Esse tipo de
pensamento", diz.
A fusão
entre misticismo, racismo e ação política deu origem a uma nova linguagem
simbólica que atrairia milhares de alemães em crise após a Primeira Guerra
Mundial.
O modus
operandi consistia em usar argumentações pretensamente científicas para
justificar um imaginário que, partindo de uma visão alternativa da realidade,
pretendia fazer desmoronar o Estado liberal supostamente neutro.
"Eles
[os líderes nazistas] queriam substituir esse Estado por um Estado leal ao
partido e ao Führer, governado em nome da raça, do povo", explica.
A ideia
então passou a ser "se livrar dos especialistas", substituindo-os por
"pessoas leais ideologicamente a eles", disfarçando tudo com uma
linguagem científica e constitucional, "fingindo que era legítimo".
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Nos dias de hoje
Para
Kurlander, esse mesmo mecanismo pode ser percebido atualmente em episódios
marcantes da extrema-direita.
Ele
recorda especificamente do dia 6 de janeiro de 2021, quando descontentes com o
resultado da eleição que havia então derrotado Donald Trump e eleito Joe Biden
para o governo dos Estados Unidos, invadiram o Capitólio.
"Vimos
isso. Havia o xamã QAnon [como é conhecido o conspiracionista americano Jacob
Anthony Angeli] vestindo peles de animais e um chapéu viking. As mesmas
tradições estão se reproduzindo", compara.
"Homens
brancos irritados no Ocidente estão abraçando a mitologia indo-ariana, ideias
folclóricas, movimentos antivacina, medicina homeopática e retorno à floresta,
de formas que às vezes lembram hippies, bruxas, e outras vezes são de
movimentos violentos e racistas. Talvez misture ambos", diz
O
historiador ressalta que o "fascismo triangula". "Pega elementos
do liberalismo, do conservadorismo e do socialismo e mistura tudo numa
ideologia contraditória e insustentável", afirma. O perigo reside neste
endereço, da mesma forma que Hitler fez chocar o ovo daquelas teorias de
superioridade racial que estavam latentes.
Fonte:
BBC News Mundo

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